quarta-feira, 29 de abril de 2009

Linha 20

Pensei num post de três parágrafos, mas fui me estendendo e terminei escrevendo esse breve ensaio.

A crítica de Octavio Paz é cheia de riscos. Segundo Sebastião Uchoa Leite, é crítica "de freqüente indagação do ato poético e do mundo em que está inserido" — e, embora seja difícil discordar dessa definição, é curioso perceber como os seus ensaios se desenvolvem, na verdade, por meio de afirmações constantes: uma profusão de sentenças curtas que, a princípio, denunciariam um questionável nível de certeza. As afirmações cortantes de Paz, no entanto, têm seu prosaísmo cercado e corroído por um posterior desenvolvimento que arrola significações e exemplos que, mais do que explicativos, são imagéticos, verdadeiramente poéticos. Talvez por isso sua prosa não se ofereça tanto ao debate e aos desdobramentos em textos de outros analistas. É Paz quem escreve "O sentido da imagem, pelo contrário, é a própria imagem: não se pode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que quer dizer." Assim funciona também a sua crítica: lemos "A imagem" ou "A consagração do instante" e nos sentimos desarmados como desarmados ficamos diante de um bom poema.

Seu texto, portanto, não é exatamente didático ou propositivo, mas esclarecedor. Ainda assim, o contato com a prosa crítica de Paz, aqui considerando um leitor sensível, não parecerá uma marcha da qual não se pode participar ativamente, restando a desagradável opção de ser empurrado ou, em casos extremos, esmagado — ao contrário: a leitura será, como a própria crítica, uma "freqüente indagação" (seja do ato poético, crítico ou filosófico do autor) da qual se poderá aproveitar, no mínimo, a experiência do criador, do erudito e do leitor atento de poesia. A principal busca de Octavio Paz é por uma unificação que não simplifique (aproximando-se, assim, do distante Auerbach). Essa atitude é nítida, por exemplo, na sua percepção da proximidade entre o romance moderno e a poesia, do percurso do verso inglês moderno em busca da latinização ou da unidade literária existente entre os países hispânicos.

Sebastião Uchoa Leite fala da "busca de relações analógicas entre os signos" e completa afirmando que "Por isso procede por superposições e paralelismos, parecendo perder-se num labirinto verbal". Trata-se de uma análise exemplar — à qual, no momento, eu pouco poderia acrescentar. Desvio-me, portanto, para um aspecto específico dessa sanha unificadora e analógica do pensamento e da poética de Paz — aspecto que, num determinado momento, modificou e ampliou profundamente a minha noção e a minha apreensão do fazer poético, desencadeando uma reformulação tanto crítica quanto artística que, pouco a pouco, gera tanto a crítica quanto a arte que me proponho a fazer.

Por uma decisão a princípio um tanto arbitrária, mas que depois percebi ser bastante plausível, resolvi que toda leitura de obra crítica que eu fizesse teria, em paralelo, a companhia da leitura poética. Octavio Paz, no caso, foi acompanhado pela experiência única de percorrer a Poesia Completa e Prosa de Murilo Mendes. A rigor, é possível alongar-se a respeito de diversas afinidades entre o pensamento de Paz e a poesia de Murilo. Uma das relações mais frutíferas se refere a uma possível união entre palavra poética e ação. No seu ensaio "Murilo Mendes ou a poética do visionário", José Guilherme Merquior toca brevemente no assunto ao citar o poema "A marcha da história" e, mais especificamente, o verso "E onde se fundem verbo e ação". Tanto Merquior quanto Paz indicam, como catalisador dessa união, o surrealismo, percebido enquanto movimento herdeiro e continuador de uma postura do romantismo. Discordam apenas quanto à vertente romântica original: para Merquior, a poética de ação dos surrealistas é fundada pelo romantismo francês de Hugo; Paz, ao contrário, acredita que o princípio de Breton e seus seguidores nasce "do projeto de Schlegel e seus amigos: tornar poética a vida e a sociedade". Ao leitor brasileiro, a visão de Merquior soará perfeitamente aceitável. Fruto, sobretudo, da experiência romântica nacional, na qual os poetas da chamada terceira geração são denominados hugoanos e definidos como autores engajados e ativos enquanto que os seus antecessores imediatos, os chamados ultra-românticos, costumam ser percebidos como poetas alienados em suas subjetividades e emuladores das tradições germânica e saxã.

No entanto, pretendo ater-me a um outro aspecto de ligação entre Murilo e Paz. No já referido "A imagem", o mexicano escreve que "toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si" para concluir, algumas páginas depois, que "[...] o poema não só proclama a coexistência dinâmica e necessária de seus contrários como a sua final identidade". Trata-se, afinal, daquilo que Uchoa Leite já explicou.

É natural que Paz também tenha a sua definição particular de imagem — que está distante da idéia que os leitores imaturos costumam possuir (equívoco perfeitamente compreensível, por sinal) e que, por isso, precisa ser considerada. Imagem não é (ou melhor: não é apenas) a reprodução verbal de uma realidade pictórica, mas a criação verbal que concerne à poesia. Nas suas palavras, "toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que unidas compõem um poema". Assim que, no famoso "The red wheelbarrow", William Carlos Williams não produz imagens apenas nas últimas três estrofes:

so much depends
upon

também é imagem.

Pode-se afirmar que não há originalidade no que Paz afirma. Que se trata, basicamente, da idéia baudelaireana das correspondências. Que a diluição de traços na pintura moderna e, num outro sentido, a decomposição de formas complexas em direção às formas geométricas mais simples trabalham nesse mesmo esquema. É possível, a partir dessa acusação, iniciar um debate interminável acerca de "originalidade" — que iria desde a etimologia do termo (que, se considerada, indicaria uma originalidade inegável na idéia de Paz) até a visão pertencente ao senso-comum de originalidade como inovação. Por um lado, recebe o apoio de Hegel (que chegou a afirmar que "Não possuir maneira própria foi sempre a única grande maneira e foi porque assim procederam que Homero, Sófocles, Rafael, Shakespeare podem ser considerados originais"); por outro, a justificativa num sem número de desentendimentos gerados pela assimilação (ou, em certos casos, mesmo pela proposta) equivocada dos movimentos de vanguarda. De qualquer modo, as leituras de Paz não parecem se interessar pela inovação — pois é ele mesmo quem traça a história daquilo que desenvolve em termos próprios, amparando-se no seu sólido conhecimento de filosofia e poesia (tanto ocidentais quanto orientais). Motivo suficiente, aliás, para pensar a sua relação com a tradição, a ruptura e a tradição da ruptura, temas aos quais dedicou tanto tempo e atenção.


Toda essa rede de signos análogos, feita ao longo de "A imagem", mostrou-se real e acertada durante a leitura paralela de Murilo Mendes — particularmente no "Poema da tarde", do ótimo Poesia Liberdade:

A tarde move-se entre os galhos de minhas mãos.
Uma estrela aparece no fim deste meu sangue,
Minha nuca recebeu o hálito fino de uma rosa branca.
Todas as formas servem-se mutuamente,
Umas em pé, outras se ajoelhando, outras sentadas,
Regando o coração e a cabeça do homem:

E dentre os primeiros véus surge Maria da Saudade
Que, sem querer, canta.

A ligação é clara e inegável.

(Mas, antes, um aparte: é impressionante a sonoridade de "Poema da tarde" e o modo como Murilo se aproveita das consonâncias. Através de mãos/sangue/branca/mutuamente e de sentada/homem/canta, acentuadas ainda pela recorrência dos pronomes possessivos da primeira pessoa nos três primeiros versos, marca a utilização das consoantes nasais. Ao mesmo tempo, aproxima ainda os tt e dd de mutuamente/sentadas e Saudade/canta. São, portanto, dois caminhos sonoros que, em diversos momentos, se confundem.)

Murilo trabalha explicitamente a relação entre "as formas": os galhos das mãos, a estrela no fim do sangue, o hálito da rosa — cada uma das imagens reflete "a coexistência dinâmica", explícita no verso "Todas as formas servem-se mutuamente". Algo idêntico pode ser lido no já citado "A marcha da história":

Onde o homem e a mulher são um,
Onde espadas e granadas
Transformaram-se em charruas,
E onde se fundem verbo e ação.

É compreensível, sobretudo no caso de Murilo, que tais procedimentos se liguem ao surrealismo, movimento geralmente situado no limite dessas relações. Leia-se, a título de exemplo, um verso magnífico de "Le miroir d'un moment", de Eluard:

L'oiseau s'est confondu avec le vent,

É necessário esclarecer, no entanto, que não se trata de uma prática essencialmente surrealista. Não está ligada a uma corrente literária ou a uma poética específicas — segundo Paz, é próprio da poesia, de toda poesia, encontrar relações semelhante: "Nossa poesia é consciência da separação e tentativa de reunir o que foi separado". Essa, por exemplo, é uma das obsessões de alguns dos melhores poetas italianos da modernidade. Cesare Pavese, na última fase de sua produção, compôs uma série de poemas no qual observa essa união elementar:

Anche tu sei collina
e sentiero di sassi
e gioco nei canneti,
e conosci la vigna
che di notte tace.
Tu non dici parole.


A visão de Paz (unificadora, como sempre) não se constrói no vazio. Ainda que se ignorasse todas as referências que traz, acredito que a natureza poética de coexistência, correspondência e analogia se revela e se afirma num nível ainda mais elementar, que está na própria definição da poesia. Trata-se, obviamente, das relações entre som e sentido e entre conteúdo e forma. Não a investigação semântica da relação entre formas naturais, mas o trabalho formal e estético efetuado ainda na própria linguagem. No ensaio, Paz não chega a investigar profundamente esse aspecto — o que não deixa de ser surpreendente, visto o nível avançado que a análise som-sentido já havia alcançado (vide Jakobson) e o eterno e polêmico debate acerca do conteúdo-forma.

Quanto ao primeiro nível citado, o "Poema da Tarde" é exemplar — e o próprio Paz insinua outra possibilidade ao afirmar que o ritmo do poema é o sentido do poema; é o mesmo princípio de Tao, que o autor analisa no seu ensaio: isto é aquilo. Quanto ao segundo, é preciso dizer que o ensaísta mexicano indica um caminho possível para discuti-lo ao refletir sobre a impossibilidade da verdadeira imagem desfazer-se em arbitrariedade e gratuidade de correlações. Considere-se, no caso, que a arbitrariedade semântica implicaria, necessariamente, na impropriedade da forma.

A justa apreciação da teoria (de correspondências, coexistência, afinidades ou o que for), ao contrário, indica a condensação da forma. Não se confunda, porém, condensação e pobreza — muito embora, no limite (aceito por Paz), esse caminho conduza ao silêncio. A título de exemplo, tome-se o seguinte soneto de Kilkerry, intitulado "Ritmo eterno":

Abro as asas da Vida à Vida que há lá fora.
Olha... Um sorriso da alma! — Um sorriso da aurora!
E Deus — ou Bem! ou Mal — é Deus cantando em mim,
Que Deus és tu, sou eu — a Natureza assim.

Árvore! boa ou má, os frutos que darás
Sinto-os sabendo em nós, em mim, árvore, estás.
E o Sol, de cujo olhar meu pensamento inundo,
Casa multiplicando as asas deste mundo...

Oh, braços para a Vida! Oh, vida para amar!
Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar...
Alvor, turquesa, ondula a matéria... É veludo,

É minh'alma, é teu seio, e um firmamento mudo.
Mas, aos ritmos da Terra, és um ritmo do Amor?
Homem! ouve a teus pés a Natureza em flor!

Em que pese a sua perfeita ligação semântica às idéias de Octavio Paz, o poema, no qual Augusto de Campos vê a ênfase do "seu acento panteísta" (notável em outras composições suas como "O muro" e a obra-prima "É o silêncio..."), interessa ainda por sua estrutura formal que também se ajusta à teoria.

O poeta baiano, na maioria dos versos, em todas as estrofes, adota um procedimento de reiteração bastante sutil. Perceba-se, já no primeiro quarteto, as repetições de "Vida" e "sorriso" nos dois primeiros versos e de "Deus" nos dois últimos; o mesmo princípio continua com "árvore", na segunda estrofe, "vida" e "mar" (no belíssimo "Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar...") no primeiro terceto e "ritmo" na estrofe final. É notável, ademais, que mesmo nos versos onde essa repetição não é tão explícita, o processo de reiteração se dê de uma outra forma, sobretudo sonora: é o caso de má/darás e casa/asa no segundo quarteto (asa repete-se ainda ao início e ao fim dos quartetos), as assonâncias eu uu no verso final do primeiro terceto e no verso inicial do segundo terceto; ao fim, outra sutil assonância, dessa vez com oo fechados (homem/ouve/flor).

Esse procedimento, a rigor, serve para acentuar, de forma bastante incisiva, a coexistência daquilo que as palavras nomeiam. Não por acaso, as palavras que se repetem são indicativas, sobretudo, de elementos da natureza: mar, árvore, etc. Trata-se de uma realização justa e extrema do princípio taoísta: "Isto é aquilo" — que é ainda mais simplificado e condensado por Kilkerry: isto é isto; o poeta se dispõe a reunir aquilo que, em verdade, já é parte de uma mesma matéria, apenas percebido de formas separadas: o sorriso da alma é o sorriso da aurora, a Vida particular é também a vida que há lá fora, todas as ilusões, do homem ou do mar, são as mesmas. Tudo, enfim, num compasso semelhante, no ritmo igual e eterno indicado no título. Acredito que o poema dê a medida de que a aplicação do sistema indicado por Paz leva, ao contrário do que se imaginaria, à correção formal.

A crítica de Octavio Paz, portanto, fornece ao leitor um princípio de leitura e análise — que, naturalmente, ninguém acreditará ser o único. Impossível, no entanto, é descartá-lo como fruto de abstrações desinteressadas: seu método nasce de uma nítida experiência constante e profunda com a arte poética, seja através da prática ou da análise. E é essa, afinal, a teoria que importa conhecer.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Linha 19


A certa altura de um dos ensaios de O último leitor, Ricardo Piglia propõe esta definição do personagem-leitor de Borges: "alguém perdido numa biblioteca, alguém que passa de um livro para outro, que lê uma série de livros e não um livro isolado. Um leitor disperso na fluidez e no rastreamento e que tem todos os volumes a sua disposição. Vai atrás de nomes, fontes, alusões, passa de uma citação para outra, de uma referência para outra". Na página seguinte, completa: "A versão contemporânea da pergunta 'o que é um leitor?' se instala nesse lugar. O leitor perante o infinito e a proliferação. Não o leitor que lê um livro, mas o leitor perdido numa rede de signos". Queimar bibliotecas, portanto, é libertar-se. Eu completaria afirmando que uma biblioteca é pouco: incendiar a internet é libertar-se.

O exagero de citações não será gratuito: adiante, lê-se que "Nesse universo saturado de livros, em que tudo está escrito, só é possível reler, ler de outro modo. Por isso, uma das chaves desse leitor inventado por Borges é a liberdade no uso dos textos (...) Uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossíveis." Quem já teve contato com a obra crítica e ensaística de Borges sabe que esse procedimento não é privilégio de seus personagens, sendo assumido também pelo autor. Caso clássico: Kafka reinventando Bartleby.

O ensaio de Piglia, no entanto, mais do que esclarecer certas particularidades da ficção borgeana, provoca reflexões inevitáveis sobre a situação e a formação do leitor contemporâneo. Há alguns posts, fiz anotações sobre o leitor esporádico de poesia — baseado puramente em observações descompromissadas, percebi sua insegurança e exagero ao lidar com a poesia. Dessa vez, no entanto, utilizo a minha própria experiência de leitor — e tudo isso para concluir, afinal, que o leitor contemporâneo é, de fato, o leitor criado por Borges. Não me refiro, nesse caso, somente à situação de estar perdido entre signos, mas sobretudo à construção e à percepção histórica de quem lê.

Assim que a história da literatura é montada ao revés, num movimento curioso: da modernidade à antiguidade. Exemplifico: sempre fui um leitor exageradamente fiel de T.S. Eliot. Entre as minhas preferências, como é fácil imaginar, estava "The Waste Land": lia o poema e lia a respeito do poema. Dele, alguns versos me comoviam mais do que os outros:

Unreal City,
Under the brown fog of a winter dawn,
A crowd flowed over London Bridge, so many,
I had not thought death had undone so many.

Tempos após lê-los e relê-los, deparei com a Comédia — óbvio: deparei com os versos de onde Eliot havia retirado os seus versos.

e dietro le venía sí lunga tratta
di gente, ch'i non averei creduto
che morte tanta n'avesse disfatta
.

O primeiro pensamento que me ocorreu foi o de que Dante citava Eliot. No entanto, mais do que essa impressão absurda e passageira (que, acredito, também tem seu valor — ao menos como anedota), importa que toda a minha leitura da Comédia se deu num compasso determinado por Eliot. É como Kafka e Melville — que, no meu caso, foi idêntico: primeiro Kafka, depois Bartleby.

Leitores se fazem sozinhos. Portanto, não há sentido em acreditar que a inversão cronológica parta de sistema de ensino ou coisa que o valha. A escola não forma leitor algum e, lá dentro, a literatura é ensinada de maneira cronologicamente sensata: a comparação entre as canções do exílio parte de Gonçalves Dias, tudo segue em seu curso óbvio. Descartando a participação do colégio, resta apenas a biblioteca.

E, nas prateleiras imaginárias das quais peguei emprestados meus primeiros livros, as obras modernistas estavam mais à mão. Motivos, diversos: certo desprezo pelo antigo, um deles; meu fascínio pelo novo, outro; e o maior, provavelmente, essa necessidade de identificação imediata do leitor imaturo e a constatação óbvia (e também imatura) de que tal ligação seria mais natural e fácil numa obra escrita no século que, embora se encerrasse, ainda era o meu. Não se trata, afinal, de assumir uma postura conservadora: ao conhecer posteriormente as obras mais antigas, não me enfureci contra as modernas. Acredito, aliás, que postura semelhante denunciaria, ao contrário, uma leitura um tanto arbitrária e tendenciosa dos antigos — tendenciosa na medida em que credita reacionarismo ao que, cronologicamente, antecede ao contemporâneo; na medida em que despreza as relações e as conexões entre os dois pólos — se é que faz algum sentido perceber a história da literatura de forma tão binária e estratificada.

Não sei até que ponto é possível observar essa formação como "defeituosa". Prefiro percebê-la, na verdade, como inevitável. A quantidade de páginas que nos separa dos antigos cresce desenfreadamente (e ler também é questão física, questão de espaço): será cada vez mais natural começar onde, supostamente, se deve encerrar. As páginas não serão seguidas à risca — mas é difícil saber até que ponto isso indica atemporalidade ou apenas outra forma particular de cronologia.

Resta, portanto, assumir e trabalhar a situação de forma a torná-la frutífera e confiável — assim considerado, Borges segue como antecipador ou, no mínimo, disseminador de uma nova forma de conceber a literatura e as suas relações históricas. Um novo leitor formado, faz-se conseqüentemente um novo escritor — e aí, então, surge a necessidade de formar também uma nova crítica, uma maneira diversa de escrever a própria história. Isso, no entanto, não se dá ou dará de forma pacífica: não será um leitor, em sua solidão, conhecendo Villon através de Pound. Restam, enfim, as opções de perceber contextos e se renovar ou de ignorar mudanças e seguir um curso orgulhoso de conservadorismo datado e autismo intelectual.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Linha 18


Permito-me mais uma fuga da poesia à prosa e posto esse trecho do meu ensaio interpretativo "Alucinação e Morte de Maupassant". A rigor, a idéia do blog era concentrar-se no verso, mas isso me parece uma idéia um tanto redutora — além disso, o ensaio, embora seja relativamente antigo, está em sintonia com alguns dos outros posts, sobretudo aquele a respeito de Ortega y Gasset.

Seguindo nos apontamentos de Maupassant, porém, chega-se, no prefácio ao romance Pierre et Jean, à seguinte afirmação: "J'en conclus que les Réalistes de talent devraient s'appeler plutôt des Illusionnistes. Quel enfantillage, d'ailleurs, de croire à la réalité puisque nous portons chacun la nôtre dans notre pensée et dans nos organes. Nos yeux, nos oreilles, notre odorat, notre goût différents créent autant de vérités qu'il y a d'hommes sur la terre". Seria um equívoco considerar tais observações como revolucionárias ou contraditórias aos procedimentos ficcionais e críticos do autor. Em realidade, percebe-se que se trata de um desdobramento natural — através de termos como "yeux", "oreilles", "odorat" e "goût" vê-se que o Naturalismo, com toda a sua fixação nos instintos e sentidos humanos e animais, continua presente nas idéias de Maupassant. Há, contudo, uma individualização que o Naturalismo mais tradicional não abarca — o olhar, o olfato, a audição e o paladar são reconhecidos como variáveis, fato que torna o mundo (e, por conseqüência, as interpretações dos acontecimentos naturais e sociais) mais complexo do que supunham as teses do romance da época.

A rigor, é esta mesma prática que, na pintura francesa, provocará as revoluções protagonizadas por Monet, Degas e outros tantos — o Impressionismo, parece-me, rompe com o Realismo não necessariamente renegando a observação, mas aceitando as distorções provocadas pela variação que cada homem apresenta em seus sentidos, sobretudo a visão. No caso específico da ficção de Maupassant, tais distorções passam a ser constantes e, quando potencializadas, representadas por meio dos delírios e alucinações que permeiam os seus chamados contos fantásticos. É perceptível, portanto, a simultaneidade das revoluções que se deram, em graus diferentes, nos diversos campos artísticos da época.

Ainda no prefácio a Pierre et Jean, é esclarecedor ler que, para Maupassant, "Chacun de nous se fait donc simplement une illusion du mond, illusion poétique, sentimentale, joyeuse, mélancolique, sale ou lugubre suivant sa nature" — o que não significa, no entanto, que a ficção deva, necessariamente, ser construída a partir das idiossincrasias de cada autor. É exemplar o caso do próprio Maupassant: em seus contos, há ilusões poéticas que são sentimentais, outras que são alegres, algumas ainda melancólicas — difícil crer que isso se deva a uma natureza tão variada por parte do escritor e não a uma capacidade intelectiva e imaginativa de desenvolver personagens que não possuíam apenas as visões e tendências do próprio autor. É nesse fato, por sinal, que Maupassant revela certa impessoalidade, característica que tanto admirava na obra de Flaubert (a quem classificava como "le plus ardent apôtre de l'impersonnalité dans l'art"): dividindo-se, pretendia aniquilar a sua própria individualidade, tornando-se, portanto, impessoal. Procedimento que a nós, leitores de início do século XXI, não nos parecerá questionável ou mesmo surpreendente.

(...)

Se em contos como "Qui Sait?" e "Lui?" o fantástico decorre da alucinação que decorre da solidão dos personagens, nas obras dos autores modernos o irreal já é instaurado desde sempre. Maupassant retrabalha a realidade, fantasiando-a, através de uma técnica e de uma teoria que vêem as distorções como conseqüências de predisposições físicas e psíquicas determinadas (a solidão, a sífilis, etc.) — fator que serve, ademais, para religar o autor ao seu Naturalismo de origem. Assim, parece-me um tanto equivocada a idéia de que Maupassant tenha sido um precursor do realismo mágico: embora as fantasias existam em ambos, elas são de naturezas absolutamente distintas, auto-excludentes. Ainda por conta disso, é também um erro classificar os contos do autor francês como contos "de terror" - já que o medo, na sua obra, não é do sobrenatural, mas de si mesmo. Em "Lui?" o narrador confessa "Je n'ai pas peur d'un danger (...) Je n'ai pas peur des revenants; je ne crois pas au surnaturel. Je n'ai pas peu des mort (...) Eh bien! j'ai peur de moi! j'ai peur de la peur; peur des spasmes de mon esprit qui s'affole (...)" Parece-me, aliás, que tais procedimentos são desenvolvimentos naturais (e, de certa forma, previsíveis) da obra de Poe: o que uma época romântica classificava como fenômenos sobrenaturais, uma época cientificista percebia como fenômenos psíquicos passíveis de explicação.

domingo, 12 de abril de 2009

Linha 17


Após escrever o último post, fui até as minhas anotações de Benedetto Croce e encontrei:

"É pois indiferente, [...], apresentar a arte como conteúdo ou como forma, conquanto se entenda sempre que o conteúdo é formado e a forma é preenchida, que o sentimento é sentimento figurado e a figura é figura sentida"

e

"[...] a crítica pede para ser, e quer ser e é outra coisa: não invadir a arte, não descobrir a beleza do belo e a feiúra do feio, não apequenar-se em face da arte, mas, ao contrário, fazer-se grande em face da arte também grande e, em certo sentido, superior a ela"

e

"A verdadeira crítica de arte é certamente crítica estética, não porque desdenha a filosofia como pseudo-estética, mas, ao contrário, porque opera como filosofia e concepção da arte [...]"


===

Textos recomendados:

"Poetas à beira de uma crise de versos", ensaio de Marcos Siscar reproduzido na Modo de Usar & Co.

Jonas Lopes sobre George Steiner.

Ao reler Carpeaux, Dirceu Villa detecta equívocos e manias da crítica literária brasileira — sobretudo no que se refere às leituras sociológicas, ponto que não cheguei a tocar no post anterior.

sábado, 11 de abril de 2009

Linha 16



Arte pela arte. Poesia pura.

Vez ou outra o debate poético retorna a essas questões. A meu ver, a maioria dos pontos de vista a respeito permanece no senso comum da impossibilidade de praticar uma arte ascética, auto-centrada. Há, no entanto, a necessidade de ir um tanto além: a idéia da arte pela arte revela um conceito de arte questionável, para dizer o mínimo. Parte da premissa de que arte/trabalho artístico resumem-se às particularidades formais — premissa que, embora questionável, ainda tem bases nas quais se amparar e erguer. O ideal conteudista, por seu turno, já não pode se manter — afora a persistência no gosto de diletantes, não encontra respaldo crítico que se possa tomar a sério.

No que se refere a um tipo de formalismo obtuso, no caso brasileiro, é fácil discernir a motivação para a sua persistência: o escasso debate estético que existe no país. Afinal, uma coisa é o crítico afirmar que a engenharia formal de João Cabral de Melo Neto penetra e desenvolve o conteúdo dos seus versos — outra, muito mais difícil, é propor um debate acerca das relações entre forma e conteúdo. O que qualifico de "obtuso", nesse caso, é a crítica formal que se contenta com fórmulas — afinal, se algo nos falta é exatamente crítica preparada e disposta a lidar com aspectos formais. Nosso debate continua sem resistir às tentações da síntese de um assunto numa sentença, do resumo de uma obra numa orelha, do esgotamento de um poema numa resenha. Trata-se do caminho natural e tranqüilo até o lugar-comum e a repetição de verdades que se tornaram verdades por preguiça intelectual.

Seria interessante, por exemplo, induzir os ideais da poesia pura até certas contradições. Pedro Salinas, na conferência Mundo real y mundo poético, escreve que "Mundo, demonio y carne son los enemigos del alma; la poesía, cosa del alma, tiene por gran enemigo al mundo". A rigor, essa é uma definição tão purista quanto romântica — afinal, que é o romantismo senão esse voltar-se completamente às "coisas da alma" (dentre as quais a poesia ocupa o lugar central), esse desprezo pelo mundo que, afinal, é o próprio aspecto sensível da vida, o aspecto formal da arte? Hegel, evocado no post anterior, indica como mérito da arte romântica a chegada à Idéia perfeita — muito embora esteja aí também a sua danação: do seu desprezo pelo mundo, da sua crença na impossibilidade de unir forma sensível e conteúdo ideal vem a sua incapacidade de entronar-se como arte definitiva e inquestionável (o anti-romântico Baudelaire, num ensaio que confesso não ter agora em mãos para citar, já percebia tudo isso nitidamente). É um conceito de poesia pura divergente do conceito de arte pela arte que se pensa e se ensina no Brasil (onde tomamos por base, sobretudo, a poesia parnasiana), embora muitos confundam os dois. Hugo Friedrich, por seu turno, conduz sua idéia de poesia pura pela suposta desumanização do poema, algo que, a meu ver, pode ser observado da forma exatamente oposta — baseando-se na declaração e na obra de Salinas ou mesmo de Guillén, outro artista caro às suas teorias.

No caso da pintura, a respeito da evolução do Impressionismo, Ortega y Gasset anota: "Em vez de pintar os objetos como se vêem, pinta-se o próprio ver. Em vez de um objeto, uma impressão, pode-se dizer, um montão de sensações. A arte, com isto, retirou-se completamente do mundo e começa a atender à atividade do sujeito". Trata-se, afinal, de um mesmo percurso — percurso que se costuma apontar como uma contundente resposta ao romantismo quando, em realidade, mais se assemelha a uma continuação.

O poeta Ricardo Domeneck, um dos editores da ótima revista Modo de Usar & Co., costuma insistir numa idéia resumida na grafia est-É-tica. Baseado na sentença de Wittgenstein, segundo a qual "Ética e estética são uma só", Domeneck propõe um debate crítico e filosófico que se situa além de questões meramente formais ou conteudistas. E que não se intua, por outro lado, nenhum desprezo pelo debate formal nessas posições — mas exatamente o oposto.

O que me agrada, nos seus textos e suas declarações, é a insistência em temas que a poesia e a crítica brasileira tradicionalmente ignoram. A visão de Wittgenstein, em que pese a sua simplicidade, não é de fácil assimilação: pode pender tanto para a politização explícita quanto para a alienação igualmente declarada. São as conseqüências de uma adoção desse preceito quando feita a partir de visões conformadas com a preguiça intelectual que apontei. Pois que assim se decidirá que ética confunde-se com política e que a escrita de Domeneck, presa, como em suas "Seis Canções Óbvias", ao inferno pessoal que é uma cama, revela sua alienação também através de uma linguagem hermética e fragmentada. Seria optar pelo óbvio.

Um óbvio que não pensa na frase de Wittgenstein com justeza: "Ética e estética são uma só" não é o mesmo que "Ética e estética são como uma só" ou algo que o valha. Essa posição pressupõe uma identificação absoluta entre os dois pólos — e não uma relação estreita que permita uma fácil decodificação ou separação. Algo como Orides Fontela a escrever que "Não há piedade nos signos". Observando a arte e a poesia dessa forma (e não como um monstro montado mecanicamente a partir de duas instâncias distintas), tanto a arte pela arte quanto a poesia pura não se configurariam como absurdos ou despropósitos: seriam o definitivo.

Não se trata de atacar ou atracar-se para a defesa de visões que irão permitir à poesia brasileira encontrar a definição inquestionável da arte e desenvolver-se em meio à calmaria — já que da calmaria pouco se desenvolve. A necessidade é de debate intelectual verdadeiro — mais do que polêmicas entre escolas e grupos.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Linha 15


Na sua Poética, Todorov escreve que "Posso falar da beleza que para mim têm as obras de Goethe; posso falar, quando muito, da beleza que elas têm aos olhos de Schiller ou de Thomas Mann. Mas não tem sentido uma questão que incida sobre a beleza em si". Trata-se de uma crítica perfeitamente aceitável e compreensível às visões idealistas da Estética. Ao longo da sua obra, o filósofo búlgaro sempre alertou para o perigo que o seu próprio método de estudo representava — aquilo que ele classifica como "sobreteorização", movimento que induz o teórico à total ignorância das obras literárias e à dedicação exclusiva e exaustiva às teorias literárias. Numa entrevista reproduzida na Folha de São Paulo, afirmou que já faz algum tempo "que, na escola, pararam de refletir sobre o sentido dos textos e passaram a estudar de preferência os conceitos e métodos de análise". Como se percebe, é uma das suas preocupações constantes — o que não significa, no entanto, que ele mesmo não cometa o que considera deslizes.

No seu Curso de Estética dedicado ao estudo do Belo, Hegel pensa e trabalha a possibilidade de um método científico aplicado às artes. A única saída vislumbrada, no seu caso, foi a da Idéia: a Idéia do Belo é o ponto para o qual convergem o cientista e o filósofo que se propõem a refletir sobre a arte — permitam-me tal simplificação, sobretudo nesse ambiente propício de um blog e de um post dedicado à anotação de dúvidas. Nesse sentido, ele mesmo provoca o movimento que induz o filósofo, se não à ignorância, à superação das obras artísticas e à dedicação exclusiva e exaustiva às teorias idealistas da arte. O próprio Hegel, em diversos momentos, afirma que se trata de um método estranho à arte: "A ciência busca o pensamento, o universal absoluto, não tem por objeto o que encontra diretamente no que existe, vai além do imediato. Não procede assim a arte, que não vai além do objeto que lhe é dado e, tal como lhe é dado, o toma por objeto". Existem longas páginas para justificar a necessidade e a importância dessa "fuga" ao princípio da apreciação artística, dentre as quais as mais significativas e interessantes se concentram na diminuição do valor dado à arte nas sociedades industrializadas e modernas — tema e dúvida para outro texto.

É óbvio que as teorias e as idéias de Torodov e Hegel não se desenvolvem com as mesmas intenções e nem sequer no mesmo campo. Na Poética, Todorov pouco se dedica à Estética — em certo momento demonstra ironia ao considerar as idéias de Hegel e, na sentença citada no início desse texto, encerra a questão. Hegel, por seu turno, não se dedica à elaboração de parâmetros sistemáticos para a análise exclusiva dos textos literários. Ambos coincidem, no entanto, na tentativa de dotar a crítica de rigor e métodos científicos. Assim, em diversos momentos, Todorov mostra-se profundamente hegeliano na sua intenção de definir os limites da Poética: "[...] o seu objectivo já não é a descrição da obra singular, a designação do seu sentido, mas sim o estabelecimento de leis gerais de que este texto particular é o produto" ou "Não é a obra literária em si mesma que é o objecto da poética: o que esta interroga são as propriedades desse discurso particular que é o discurso literário. Qualquer obra é então apenas considerada como a manifestação de uma estrutura abstracta muito mais geral, de que ela não é senão uma das realizações possíveis".

O mais curioso, portanto, é perceber a forma pela qual Todorov transportou para a análise formal do texto literário (sobretudo de prosa) os métodos desenvolvidos (ou popularizados) por Hegel para a análise científica da Estética em geral. A tentativa de ambos recai sobre a abstração, sobre a tentativa de superar a interpretação na busca pela conceituação.

Questões insolúveis, por certo, mas nunca infrutíferas.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

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Gosto de acreditar em Ortega y Gasset quando ele afirma que só os pintores conhecem pintura. E devo dizer que não sou pintor: minhas investidas plásticas estão longe dessa categoria chamada arte. A afirmação de Ortega, no entanto, não condena a pintura aos pintores: basta perceber que admirar alguma coisa não implica necessariamente em conhecê-la. Um extremista diria, ainda, que só é possível admirar o desconhecido — mas isso já não é idéia que me interesse; fico contente em me manter distante dessas espécies e subespécies de ditaduras que combatem pelo mesmo direito de subjugar e simplificar.

Toda a grande arte que conheço veio-me através de reproduções técnicas — e que Benjamin nos perdoe a todos. Graças a esse tipo de subterfúgio, tenho aqui um Van Gogh pendurado no meu quarto. Graças a esse tipo de subterfúgio, procuro reproduções pela internet e me desespero com as enormes diferenças de cor que um Vermeer apresenta de uma fotografia para outra — são as dificuldades necessárias. Ainda assim, acredito que construí um gosto relativamente sólido, consolidando até mesmo preferências que, em certos graus, irão interferir nas minhas visões e no meu discurso. Por exemplo: preferência pelo nu — do clássico até Modigliani e o hediondo Schiele; preferência pelas cidades e pelas árvores do próprio Schiele; atração sombria pelos desenhos de Van Gogh, pelos traços de Monticelli e pelos retratos de Singer Sargent; um gosto pouco cultivado por Miró e pelos rabiscos de Matisse. E, afinal, um respeito tremendo pela arte que me é mais incompreensível: Velázquez, Goya, Renoir, Caravaggio, El Greco.

A rigor, o parágrafo acima é apenas um itinerário do meu gosto pessoal. Algo também feito (com muito mais propriedade, naturalmente) por Ortega y Gasset no ensaio a que me referi anteriormente ("Adão no paraíso") — ao lado da humildade que demonstra ao reconhecer sua posição de não-pintor, está sua indicação de que não se trata de um orangotango, de que possui conceitos e preconceitos sedimentados com os quais pode lidar de maneira inteligente e proveitosa. Munido disso, aprecia a arte. Munido disso, compõe o fenomenal ensaio "Sobre o ponto de vista nas artes" — no qual traça um histórico particular e instrutivo da pintura no ocidente. Um desses raros textos obrigatórios.

"O tema ideal da pintura é, em conseqüência, o homem na natureza. Não este homem histórico, não aquele outro: o homem, o problema do homem como habitante do planeta. Reduzir esse problema a um tipo, o nacional, é rebaixá-lo à proporções de uma anedota" (de "Adão no Paraíso")


"El Greco deu a última pincelada na tela, e desde então uma das coisas mais reais do mundo, uma das coisas mais coisa, é o Homem com a mão no peito" (de "Adão no Paraíso")

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E o ensaio, nos últimos dias, ganhou uma poderosa defensora: serrote, revista que ainda não li. Entre as suas motivações, a saudável tentativa de livrar o gênero do academicismo — muito embora eu acredite que as noções de academia e ensaio corram um perigo tremendo quando consideradas de forma exagerada: o acadêmico como mais rodapé do que texto; o ensaio como profusão desenfreada de interpretações sem embasamento. Há muito mais a considerar — erudição e fluência, por incrível que pareça, ainda são traços acadêmicos, assim como adereços inúteis e idéias rasteiras enchem as páginas dos supostos livre-pensadores. O anti-academicismo, admitamos ou não, é apenas mais uma face do anti-intelectualismo que nos marca.

Acredito, de fato, que a academia produza aberrações diariamente: textos nos quais Alfredo Bosi é citado para a indicação de que o conto deve ser "conciso", por exemplo. Algo esdrúxulo, desnecessário. No entanto, não sei se a atual força da cultura ensaística e crítica do nosso país, aqui pelos anos 00, nos permite esnobar setores inteiros dessa forma: não há poder suficiente para sobrepor-se ao ensaio acadêmico — não nos jornais, não nas revistas mensais. Sobrevive, de forma algo surpreendente, em revistas ou cadernos editados entre distantes e vazios meses, anos.

Outro campo, naturalmente, é o das resenhas interpretativas — que, vez ou outra, produz grandes textos nesses periódicos mais ligeiros citados anteriormente. Na edição de março da Bravo!, por exemplo, um caso exemplar: Cristovão Tezza resenhando o romance Questões de Honra, de Louis Begley. Ainda assim, todos nós sabemos que não há espaço suficiente para tanto e com tanta freqüência. Por isso, que não se enganem sobre o que eu disse: jamais negaria boas-vindas ao serrote — que, pelo menos no nome, não se equivocou.