sábado, 28 de fevereiro de 2009

Linha 7


Gosto de ter o Cancioneiro da Ajuda em mãos. As centenas de cantigas medievais disponíveis no volume permitem uma leitura prazerosa e prolongada, sobretudo pelas eventuais dificuldades de compreender o vocabulário ou certas particularidades da estrutura do galego-português (o mais engraçado, nesse caso, é que nós, falantes de português, podemos tirar dúvidas através das paráfrases alemãs na edição crítica organizada pela sra. Carolina Michaëlis de Vasconcelos).

Ainda assim, lamento só ter tido acesso a esse Cancioneiro — que é, notadamente, o menos completo. A falta das cantigas de escárnio e, sobretudo, das cantigas de amigo são defeitos quase imperdoáveis — visto que era aí que vicejava a maior originalidade dos nossos trovadores. Ainda assim estão lá, por exemplo, canções belíssimas como a "Cantiga da garvaya":

No mundo non me sey parelha
mentre me for como me vay
ca ja moyro por vos - e ay
mnha senhor, branca e vermelha,
queredes que vus retraya
quando vus eu vi en saya.
Mao dia me levãtey,
que vus enton non vi fea

O trovadorismo galego-português, porém, só parece ganhar a devida autonomia artística em relação à arte dos provençais nas cantigas de amigo. A superação do eu empírico e a voz dada à figura feminina produziram os poemas mais belos do nosso lirismo medieval. As duas cantigas de amigo mais conhecidas e debatidas, acredito, são a "Baylia das avelaneyras" e a "Flores do verde pino" — que por acaso, são também as minhas favoritas. Por motivos distintos, as duas se destacam e se tornam representativas da poesia que houve e da poesia que haveria. E foi "Baylia das avelaneyras" que me tornou um leitor do trovadorismo galego-português, fazendo-me compreender o seu valor artístico, mais do que a importância e a obrigação histórica de conhecê-lo superficialmente.

Baylemos nos ja todas tres, ay amigas,
so aquestas avelaneyras frolidas
e quen for velida, como nos, velidas,
se amig' amar
so aquestas avelaneyras frolidas
verraa baylar.

Baylemos nos ja todas tres, ay irmanas,
so aqueste ramo d' estas avelanas
e quen for louçana, como nos, louçanas
se amig' amar
so aqueste ramo d' estas avelanas
verraa baylar.

Por Deus, ay amigas, mentr' al nõ fazemos,
so aqueste ramo frolido baylemos
e quen ben parecer, como vus parecemos,
se amig' amar
so aqueste ramo so 'lo que baylemos
verraa baylar.

Esta cantiga, atribuída a Ayras Nunes de Sant'Iago, é surpreendente em sua simetria e em seu paralelismo — musicalmente, devia funcionar à perfeição. Sua estrutura rítmica é facilmente delineável. A sua fluência, parece-me, parte do fato de cada estrofe ser uma única sentença perfeitamente metrificada e acentuada — algo para o que contribui, ademais, a utilização magistral das vogais.

Dificilmente me esqueço de Roger Fry escrevendo, no ensaio Arte e Vida, que

"Quando contemplamos as obras de arte do passado, costumamos considerá-las não só como objetos de deleite estético, mas também como sedimentos sucessivos da imaginação humana. Essa concepção das obras artísticas como história cristalizada explica, na verdade, muito do interesse que a arte antiga desperta naqueles que possuem pouco senso estético e nada encontram de atraente nas obras de seus contemporâneos, nas quais a motivação histórica está ausente, pois diante delas encontram-se face a face apenas com valores estéticos."

Algo absolutamente verdadeiro. No entanto, assim como é importante enfrentar a produção contemporânea e buscar os seus valores, parece-me absolutamente imprescindível entrar em contato com as "obras artísticas como história cristalizada" e, além de compreender aquilo que, afinal, as tornou dignas de interesse tanto tempo após a sua produção, desvendar e desenvolver uma sensibilidade adequada às suas qualidades particulares. É uma questão essencial de originalidade.

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Há um site precioso dedicado ao cancioneiro do trovador Martin Codax. É possível lê-lo e ouvi-lo aqui.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Linha 6


Pergunto-me se a minha leitura de Ungaretti está condicionada à inevitável relação do poeta com a guerra. Pergunto-me, então, se isso se revelaria um problema. Até que ponto é perdoável ou compreensível a ingenuidade de se crer numa relação inocente com o poema? Talvez até o ponto em que a interpretação e a compreensão são arruinadas e o sentido subvertido — não se trata de cercear a autonomia do leitor, mas de dar-lhe parâmetros suficientes para não se enganar. Ampliar os sentidos do texto não é nenhum problema (ao contrário: é uma das funções e prazeres do leitor) — o equívoco se dá a partir do momento em que essa liberdade significa moldar o texto de maneira a encontrar nele aquilo que lhe interessa.

Conhecer o contexto da produção de Paul Celan, portanto, não é condicionar a leitura de "Todesfuge" ou de qualquer outro poema seu, mas esclarecê-la. O mesmo, acredito, se dá com Ungaretti. Para exemplificar esse ponto, tome-se "Stasera", um dos seus curtos poemas escritos em meio à Primeira Guerra Mundial, exatamente a 22 de maio de 1916.

Balaustrata di brezza
per appoggiare stasera
la mia malinconia

A rigor, concebo duas interpretações possíveis. Uma delas, inocente e descontextualizada, é absolutamente amena: o sujeito poético entregue a uma melancolia serena, próximo ao mar — versos diletantes de alguém sem maiores preocupações. A outra, que acredito mais acertada, observa apenas a distância de casa, a melancolia não apoiada na brisa, mas sem lugar para apoiar-se, perdendo-se no vazio do exílio. Nesse caso, portanto, a inversão completa do sentido do poema seria, de fato, uma possibilidade válida?

Ungaretti é particularmente propício a enganos semelhantes.

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Tradução minha e de C.L. para o poema "Peso", de Giuseppe Ungaretti. Original aqui.

O camponês
se fia na medalha
de Santo Antônio
e segue leve

Mas sozinha e desnuda
sem ilusão
levo minha alma

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Linha 5


Tive um contato problemático com a obra de Langston Hughes (1902-1967). Conheci-o na aula de Literatura Norte-Americana junto a Ezra Pound, Williams, Moore e Wallace Stevens, poetas dos quais, em maior ou menor grau, eu já gostava bastante. Minha primeira reação, ao ler os versos de "I, too", foi indiferença: sua conotação, que acreditei política, não me interessava. Estava tudo muito óbvio e nítido naquele poema — sua crueza me parecia desleixo.

No entanto, a menção feita pelo professor a uma Harlem Renaissance me fez prosseguir: busquei seus poemas e, a certa altura, encontrei "The Weary Blues", "The negro speaks of rivers", "Night funeral in Harlem", "Minstrel Man" e "Let America be America again" — súbito, Hughes me ensinava algumas coisas sobre ritmo. Porém, mais importante do que ler seus poemas, foi escutá-los na voz do próprio poeta: era o blues, o blues que eu gosto de ouvir nas vozes de Skip James, de Charlie Patton ou de Blind Willie Johnson. A mesma cadência, as mesmas síncopes. Tudo exposto na profunda leitura de "The negro speaks of rivers" (ouça aqui).

Sua oratória, seus temas e seus ritmos remetem de imediato a Walt Whitman:

Let America be America again.
Let it be the dream it used to be.
Let it be the pioneer on the plain
Seeking a home where he himself is free.

(America never was America to me.)

Let America be the dream the dreamers dreamed--
Let it be that great strong land of love
Where never kings connive nor tyrants scheme
That any man be crushed by one above
.

(It never was America to me.)

Como se vê, não há obscuridade, não há fantasia ditatorial ou coisa que o valha. Hughes não parece possuir desprezo algum pela realidade — a arte pura, aos seus olhos, deve parecer uma frivolidade à qual ele jamais poderia se ater. Portanto, utilizar-se dos parâmetros críticos do alto modernismo europeu para analisar a sua obra é uma espécie de crime — e, se esses parâmetros não alcançam sequer todos os poetas europeus da época (cite-se, por ora, Dylan Thomas, Antonio Machado ou mesmo Maiakóvski), que dizer de uma obra composta num Harlem que ressurgia (ou surgia?) no contexto cultural norte-americano? Exigir obscuridade e elipse de um artista que trabalhava onde e quando Langston Hughes trabalhava é exigir o impossível e desprezar a historicidade que guia a poesia.

Daí que Hughes (e tantos outros poetas) desmonta clichês e métodos analíticos engessados — nos provoca a escutá-lo com a devida atenção dispensada às suas particularidades, sejam elas admiráveis (como as que já citei) ou questionáveis (por exemplo: talvez o panfletarismo tenha alcançado os seus versos, diminuindo-os).

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Se não me engano, não há nenhum volume de Langston Hughes traduzido e disponível no Brasil.

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Francisco José Tenreiro, poeta de São Tomé e Príncipe, escreveu um "Fragmento de blues" dedicado a Langston Hughes:

Vem até mim
nesta noite de vendaval na Europa
pela voz solitária de um trompete
toda a melancolia das noites de Geórgia;
oh! mamie oh! mamie
embala o teu menino
oh! mamie oh! mamie
olha o mundo roubando o teu menino.

Vem até mim
ao cair da tristeza no meu coração
a tua voz de negrinha doce
quebrando-se ao som grave dum piano
tocando em Harlem:
– Oh! King Joe
King Joe
Joe Louis bateau Buddy Baer
E Harlem abriu-se num sorriso branco
Nestas noites de vendaval na Europa
Count Basie toca para mim
e ritmos negros da América
encharcam meu coração;
(...)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Linha 4


No fim do ano passado, num questionável procedimento futebolístico aplicado à poesia, afirmei a um amigo que Max Martins era o maior poeta brasileiro vivo. Por mais que a minha declaração não tenha tido, à época, nenhuma justificativa ou explicação, eu buscava acreditar naquilo que falava. Há algumas semanas, no entanto, tive notícia da sua morte (10/01/2009). A bem dizer, conheço uma parte mínima da sua obra — que consiste no livro Caminho do Marahu e numa série de poemas esparsos que encontrei na internet.

É comum a informação de que a sua obra se divide muito nitidamente a partir do terceiro livro, H'era, no qual Max inicia seu contato e suas experimentações com as produções modernistas. Indo até este site e fazendo o percurso linear na pequena amostra da sua bibliografia, percebe-se como se dá a evolução — que se caracteriza, antes de tudo, por uma aceleração da prosódia, uma diversificação de ritmos. Em O estranho e Anti-retrato o poeta maranhense se escreve (pois então o seu lirismo era tradicional quanto à preservação de um sujeito poético — sabe-se lá se empírico ou não, mas incontornável) com a lentidão tradicional de certos versos de Drummond (o Drummond das vidas bestas):

A velha matriz branca
De portas largas
Sozinha na praça
Olhando o rio sujo.


Montaria dançando. Tarde preguiçosa.
Rua quieta. Jornal do prefeito
Com santo na primeira página.

E a usina bufando, bufando,
Engolindo lenha.

Na janela do posto do Correio
um cacho de bananas balançando.

(Mauná da Beira do Rio)

ou

(...)

Lavo as mãos.
Mas tenho de pôr a gravata,
E salvo a moral. Abano-me.

Rola o poema e o mundo.
E eu mudo.

(Poema)

Na sequência de sua obra, esse prosaísmo é completamente abandonado, por exemplo, nos poemas visuais — de reprodução impossível neste blog —, embora persista em outros momentos, já subvertido e redimensionado por uma pressa lingüística e existencial. Tudo muito claro nos belíssimos "Exílio 2" (de Caminho do Marahu) e "Num bar" (de O risco subscrito). E mesmo quando seu verso retorna à lentidão, à expressão clara e linear, com o sujeito poético se revelando aquela espécie de sábio, observador e conselheiro dos primeiros poemas, como em "A Cabana", resiste a novidade, a ânsia de uma experiência (poética ou não) sempre distante do óbvio:

É preciso dizer-lhe que tua casa é segura
Que há força interior nas vigas do telhado
E que atravessarás o pântano penetrante e etéreo
E que tens uma esteira
E que tua casa não é lugar de ficar
mas de ter de onde se ir

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Em tempo:

Não se encontra Max Martins nas livrarias. Dificilmente seus volumes são encontrados nas bibliotecas. Já são algumas gerações esbanjando nosso poeta.

Linha 3


Trecho do ensaio "e.e. cummings: ética, estética, etcetera":

Essa espécie de chamado à vida espontânea pode ser notada na maior parte de sua obra: está presente no poema "since feeling is first" (no qual a primavera reaparece) e, sobretudo, no enigmático "being(just a little)", ao longo do qual um casal, "too tired from kissing/ for thinking or anything/ except dreaming", sente-se integrado ou, mais que isso, tragado pela natureza (aqui representada no pôr-do-sol, no oceano, na terra, nas ondas e nas rosas). Estando em suspensão, "between the ocean and the world", cada um deles profere uma obscura e bela sentença. O homem afirma:

(...) of these five waves the wave

which waits is more great

Ela, então, diz:

of these nine roses,you
reply seriously,she who chiefly hides
herself is deepest

A despeito da multiplicidade de significações, que deve ser reconhecida e respeitada, as imagens citadas podem ser encaradas, de certa forma, como indicações ou convites às sensações, prazeres e conhecimentos que desafiam a obviedade — símbolo mesmo, afinal, da própria poesia de cummings, espécie de rosa escondida e profunda diante da qual o leitor deve perseverar e esperar, visto que não se trata de uma obra de fácil assimilação, muito embora esteja longe de ser uma produção estéril ou sem interesses além da originalidade estética.

Perceba-se, aqui, uma das principais características notadas por Hugo Friedrich na estrutura da lírica moderna: “A poesia (e a arte) moderna não é de se admirar nem de se rejeitar a priori. Como um fenômeno constante do presente, ela tem o direito de ser apreciada pelo reconhecimento”. As flores, utilizadas por cummings no seu poema, aparecem também nas produções de outros poetas do período associadas a essa espécie de obscuridade da poesia moderna. No caso específico da poesia brasileira, podem ser citados os versos de Ferreira Gullar, do poema “P.M.S.L.”, a respeito da difícil apreciação das orquídeas (sempre furtivas, insidiosas em suas verdades):

Na orquídea busca a orquídea
que não é apenas o fátuo
cintilar das pétalas: busca a móvel
orquídea: ela caminha em si, é
contínuo negar-se no seu fogo, seu
arder é deslizar

Símbolo e obscuridade, portanto, parecem se desenvolver em conjunto. No ensaio "Quatro tipos de obscuridade", do crítico italiano Alfonso Berardinelli, lê-se que “Simbolismo e hermetismo nascem da emigração dos poetas para as terras do mistério”. Em muitos casos, sobretudo nos provocadores movimentos da vanguarda européia (e nas experimentações das neo-vanguardas, já após os anos 1950), essa obscuridade resultou numa obra fadada à não-comunicação ou, ainda, à reflexão puramente lingüística — o que não passa de uma exacerbação ou desvirtuamento do modernismo, agora transformado em jargão e clichê, poesia de linguagem engessada e, mais que indecifrável, oca de significados.

E o já citado Berardinelli define tal situação: “A linguagem não é veículo, mas objeto obscuro, inquietante, misterioso e, finalmente, ornamental: decoração do habitat cultural pós-moderno”. Pois é aqui, portanto, que essa produção se distancia da poética de cummings: sua obscuridade e sua obra de “reconhecimento” (mais do que de “apreciação”) utilizam-se do símbolo e da imagética cifrada para instigar e multiplicar a significação — longe de ser mero ornamento, a linguagem não é pensada e questionada por meio de conceitos, mas da sua própria forma no poema. A flor oculta de cummings (assim como a de Paul Celan e a de Ferreira Gullar) não se esconde por inépcia ou abandono: sua função é acenar para a necessidade de convivência com a obra, povoar o mistério com possibilidades — que, como se percebe, são inúmeras.

Linha 2


Ao fim da segunda seção de A verdade da Poesia, intitulada justamente "A verdade da poesia", Michael Hamburguer surpreende com a seguinte observação:

"Um grau extraordinário de alienação quanto à linguagem, mesmo como um meio de comunicação simples, tornou-se cada vez mais difundido nas sociedades 'avançadas', como se pode ver nas entrevistas na tevê com jovens incapazes de articular uma oração simples e curta sem apoiar-se em expressões como 'tipo' e 'entende?'. As causas dessa falta de articulação podem muito bem estar estritamente ligadas ao "ceticismo da palavra" que fundamenta muitas das práticas dos poetas modernos (e que Hofmannsthal atribuiu a uma cisão básica entre as convenções da linguagem e a realidade das coisas particulares)."

Anteriormente, fala-se do que se convencionou a chamar "função social da poesia". Ezra Pound, citado por Hamburguer, afirma que "Quando essa obra se corrompe — com isso não quero dizer quando eles expressam pensamentos indecorosos, mas quando o próprio meio, a própria essência de sua obra, a aplicação da palavra à coisa, se corrompem, i.e., se tornam sentimentais e inexatos, excessivos ou inflados —, toda maquinaria do pensamento social e individual e da ordem se perdem". A rigor, percebe-se que Hamburguer e Pound observam o mesmo fenômeno de formas distintas: o primeiro concebe uma relação paralela entre a poesia e a sociedade; o segundo, a seu modo, condiciona a sociedade à poesia.

A concepção do poeta norte-americano pode parecer, a primeira vista, uma tolice romântica — e essa primeira impressão é o equívoco fundamental da crítica e da poesia contemporânea: o poeta educador é, em essência, o poeta grego, clássico. O pensamento binário que caracteriza a crítica e a história literária brasileiras, ao que parece, não permite a percepção e a aceitação de tendências contraditórias dentro de um único contexto — e o exemplo maior, nesse caso, é o ensino de poesia dominante no país, esse método grosseiro que impõe a escola literária ao poeta e ao leitor. O classicismo, portanto, é ascético, cerebral e, no seu limite, constrói o parnasiano, o artista puro; o romantismo, passional e descerebrado, cresce arraigado àquilo que é visceral. Para desmontar tais clichês (que são, diga-se, inversões criminosas), basta recordar-se de Borges indicando a índole clássica de Poe e a índole romântica dos gregos: o primeiro privilegia o cálculo, os segundos inspiram-se nas Musas. Trabalhar com conceitos errados de classicismo e romantismo é errar todo o resto.

A relação de Pound com as tradições grega e românica talvez esclareça o seu posicionamento — e seu questionável desdém pela tradição germânica, tão identificada com o romantismo. Em Paidéia, Jaeger afirma que "A concepção do poeta como educador do seu povo — no sentido mais amplo e profundo da palavra — foi familiar aos Gregos desde a sua origem e manteve sempre sua importância" e "A não-separação entre a estética e a ética é característica do pensamento grego primitivo. (...) Para Platão, ainda, a limitação do conteúdo de verdade da poesia homérica acarreta imediatamente uma diminuição no seu valor." A poesia de Pound, nesse sentido, desenvolve-se em sua sanha histórica e educativa — desde "Hugh Selwyn Mauberly" até seus "Cantos", sua trajetória contradiz as famigeradas características essenciais da poesia moderna (entre elas, o suposto desprezo pela realidade e pela verdade), engessadas por estudos como os de Hugo Friedrich.

Pouco importa se o projeto de Pound foi bem-sucedido ou se revelou um fracasso absoluto: sua visão de poesia e sociedade não foi apenas sua (em menor medida, também está presente em William Carlos William ou, no Brasil, em certas facetas de Murilo Mendes e Drummond). Hugo Friedrich, em suas generalizações, simplifica e, portanto, distorce uma poesia (a moderna) que não resiste diante de diminuições. Michael Hamburguer, muito mais abrangente e disposto a reconhecer cisões significativas numa teoria do poema moderno, preserva essa variedade que, ao fim, é a essência mesma das produções modernistas. Pound, com sua obra infindável, permite-se demonstrar, escrever e viver suas próprias contradições — pois é ao poeta, mais que à crítica, que cabe definir o seu poema.


Linha 1


Lembro-me que, enquanto encerrava a leitura de uma tradução de Madame Bovary, inspirado na histórica declaração de Flaubert ("Madame Bovary c'est moi") e em outras boutades que à época ocupavam a minha mente, resolvi também eu criar a minha sentença eterna. Pois foi assim que, ao final da leitura, fechei o livro e falei às paredes: "Eu nunca li Madame Bovary". Não foi eterna, naturalmente, mas refletia o segundo ou terceiro assombro da minha vida de leitor: eu, que me nutria basicamente de literatura estrangeira traduzida, desconfiei de que, em realidade, nenhuma dessas leituras tinham acontecido de fato.

Desse impasse, iniciei meus estudos irregulares de línguas estrangeiras. Logo em seguida, munido da arrogância típica do aprendiz dos vernáculos alheios, considerei inútil e impossível a tradução — e foi preciso muito José Paulo Paes, muito Augusto de Campos e muito Paulo Rónai para que eu me convencesse do contrário. Hoje em dia, cuido um respeito pela atividade tradutória — sobretudo por conta da minha incapacidade de praticá-la. Exercício de paciência e de inteligência, a tradução é parte essencial da cultura poética de uma língua — do mesmo modo que a crítica e a criação.

Reconhecer a sua importância, no entanto, não pode ser desculpa para louvá-la de forma exagerada ou equiparar a sua leitura à leitura do original. Poucas coisas me marcaram tanto quanto ler "The Love Song of J. Alfred Prufrock" em inglês — coisa que fiz muito tempo depois de ter conhecido a tradução de Ivan Junqueira. A certa altura, ficou-me a impressão de que não conhecia aquele poema — impressão absolutamente correta: a opção de Junqueira (que, afinal, é válida) tira do poema toda a sua musicalidade e fluência.

As minhas malogradas experiências na tarefa de traduzir também me serviram para compreender o valor dessa atividade — proporcional à sua dificuldade. E é por isso que apresento, nesse post, tentativas mais ou menos mal-sucedidas de verter para o português poemas escritos originalmente em espanhol, inglês e francês e tento, em comentários, apontar equívocos, possibilidades e impossibilidades. Não se trata, de forma alguma, de um exercício de modéstia pública (repito: não sou tradutor, nunca o serei), mas de contato com formas e tradições alheias — algo que sempre nos enriquece.

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Tradução do poema "Vaso".


A porta
aberta para a noite,
e o pássaro sonâmbulo nos bosques
bebe
estas auroras rubras.

Os deuses brancos de tua boca
afogando-se no copo.

Aquele mar é tão profundo
que se agitavam os barcos.
Sigamos.

Meus olhos entre a fumaça.
E nas margens do mundo,
tua mão
estendida aos naufrágios.

Agora ninguém canta.

O planeta vazio que dormia na taça
está em minha garganta.
Pequeno rouxinol.


Esse poema do chileno Vicente Huidobro (que você pode ler, no original e com a disposição correta dos versos, aqui) atesta uma obviedade: não se perde tanto ao verter do espanhol para o português. Essa obviedade, contudo, costuma ser potencializada, desenvolvendo certas inverdades.

A primeira é a de que não existe perda alguma: considere-se, por exemplo, os dois primeiros versos deste poema. No original, lê-se:

La puerta
abierta hacia la noche,

A sequência de ditongos (puerta, abierta, hacia) é absolutamente impossível em português, assim como a inexistência de um vocábulo específico que traduza perfeitamente a palavra "hacia" no contexto específico deste verso. É verdade que um tradutor experiente poderia encontrar uma saída muito mais eficaz do que esse ordinário "para", mas não chegaria à correspondência absoluta.

Do verso "estas auroras rubras" resta-me uma dúvida. No original o poeta escreve "estas auroras rojas" e, a princípio, existe a perda da aliteração do r vibrante castelhano, mas a opção pelo termo "rubras", a seu modo (deslocando a aliteração para a sílaba seguinte) a conservaria.

Uma outra inverdade, por fim, é a de que a tradução da poesia em espanhol é desnecessária. Aqui, no entanto, a discussão sai do campo poético e artístico para chafurdar na ignorância pura e simples, motivo pelo qual que não me alongarei nessa questão.

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Tradução do poema "The Warning"


Por amor-eu poria
uma vela atrás dos olhos
após partir
a sua cabeça.
O amor morre em nós
se esquecemos
as virtudes de um amuleto
e rápida surpresa.


"The Warning", de Robert Creeley, já foi devidamente traduzido por Rodrigo García Lopes (responsável por ótimas versões lusófonas de Walt Whitman e Sylvia Plath) e você pode lê-lo aqui. A minha tradução, como se percebe, já começa questionável: ninguém fala ou escreve "poria" — muito menos um poeta como Robert Creeley.

Procurando conservar a localização exata das rimas, inverti a ordem do segundo, do terceiro e do quarto versos — o que me parece, ainda, uma boa idéia, embora má realizada. Fiquei indeciso se considerava "o amor morre" uma solução de mau gosto ou, pelo menos, aceitável — mas, no caso específico, não me parece uma boa saída. Por fim, gostaria de apontar um elemento mínimo que demonstra a autonomia do verdadeiro tradutor: no verso

the virtues of an amulet

eu traduzo "as virtudes de um amuleto", algo literal, enquanto Rodrigo García Lopes opta pela definição do artigo, que transforma o verso em "as virtudes do amuleto", algo muito mais condizente com o ritmo original, embora não exatamente fiel.

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Tradução de "Familiale"


A mãe faz o tricô
O filho faz a guerra
Mas isso é natural pensa ela
E o pai o que o pai espera?
Ele trabalha
Sua mulher faz tricô
Seu filho a guerra
Ele trabalha
Isso é tudo o que ele espera
E o filho e o filho
O que pensa o filho?
Não pensa absolutamente nada o filho
O filho sua mãe faz tricô seu pai trabalha ele batalha
Quando acabar a guerra
Trabalhará com seu pai espera
Continua a guerra a mãe tricotando
O pai continua vai negociando
O filho está morto já não seguirá
Pai e mãe vão ao cemitério
Isso é natural pensam os velhos
A vida continua a vida com tricô e guerra e trabalho
O trabalho a guerra o tricô a guerra
O comércio o comércio o comércio
A vida com o cemitério

Trata-se de um pequeno poema do menosprezado (não se enganem: por mim também) Jacques Prévert. Traduzi-o há uns quatro anos e, embora tenha continuado estudando o francês, jamais procurei aperfeiçoá-lo — por motivos óbvios de desinteresse pela obra do poeta e por minhas próprias traduções. A despeito de tudo isso, é um poema perfeito para ilustrar as dificuldades do tradutor.

Há uma versão feita por Silviano Santiago, que tampouco me agrada e que pode ser lida aqui. Nesse caso, Silviano aposta numa tradução fiel, mais literal, enquanto eu procuro conservar rimas e sons, por vezes deixando o poema com tom ainda mais coloquial. Acho engraçado como "Ils trouvent ça naturel le père et la mère" se transforma em "Isso é natural pensam os velhos".

No mais, ainda que eu tenha buscado a equivalência dos sons, ela não existe: no original, todas as palavras mais recorrentes insistem no som "aire"/"ere", enquanto na tradução há mais variação — o que significa que a unidade sonora original que compõe o poema inteiro foi dividida em pequenas células na versão brasileira.