terça-feira, 31 de março de 2009

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Trecho do ensaio "Poesia, Romance e Vanguarda: Visões de Octavio Paz e Roberto Bolaño".

A transição do contexto latino-americano para a tradição poética anglófona parte, sobretudo, da incapacidade que, segundo os realistas viscerais, a poesia canônica da América Hispânica, historicamente rural, anacrônica e pouco cosmopolita, parece ter para lidar com a realidade da megalópole moderna e da confluência de idiomas, corpos e espíritos que nela se dá. Daí que seu embate maior seja contra os chamados poetas camponeses, arquétipos dos versos inadaptados à brutal realidade da América Latina modernizada e subjugada às ditaduras militares. Essa interpretação histórica da poesia hispano-americana pareceria equivocada a Octavio Paz, para quem o traço ideológico e estético que marca a maturidade da literatura do continente é exatamente o seu desenraizamento — que, em suas palavras,

"não é acidental. É a conseqüência de nossa história: termos sido fundados como uma idéia da Europa. Ao assumi-lo plenamente o superamos. Quando Rubén Darío escreve Cantos de vida y esperanza não é um escritor americano que descobre o espírito moderno: é um espírito moderno que descobre a realidade hispano-americana".

Não por acaso, os realistas viscerais elegem Octavio Paz como o inimigo maior da vanguarda: sua condição de poeta laureado, poeta nacional, incomoda-lhes profundamente. Não se pode afirmar, categoricamente, que o projeto formal ou estético do Realismo Visceral destoe das realizações de Paz, já que nenhum poema dos jovens escritores é criado e transcrito por Bolaño. Como parâmetro, pode-se utilizar a única produção de Cesárea Tinajero, que é estritamente visual e de recitação impossível, muito próxima à poesia concreta brasileira. Reluto em tomar-lhe como exemplo pelo fato de que existem inúmeras passagens do romance em que os jovens realistas viscerais recitam os seus poemas — daí que a sua aproximação da misteriosa poeta dos anos 20 talvez seja muito mais ideológica do que estética. A rigor, há escassa literatura nas reflexões de Ulisses e Arturo: voltam-se contra instituições ou figuras, lutam por utopias espirituais — de poesia, pouco ou nada falam. A esse respeito, por exemplo, lê-se no depoimento de Alfonso Pérez Camarga, dado em 1981: "Belano e Lima não eram revolucionários. Não eram escritores. Às vezes escreviam poesia, mas também não creio que fossem poetas. Eram vendedores de drogas". No caso específico de Octavio Paz, contudo, é possível que se incomodem com versos como os que abrem o poema "Visitas":

"A través de la noche urbana de piedra y sequía
entra el campo a mi cuarto
."

Espécie de nostalgia imperdoável, talvez. Haveria, ainda, uma impressão de anacronismo nas suntuosas imagens desses escritos, sobretudo dos poemas de sua primeira fase — livros como Calamidades y milagros ou, sobretudo, Semillas para un himno estariam baseados numa relação entre natureza e erotismo que, aos realistas viscerais, seria descabida: sua volúpia encontra-se e funde-se com edifícios, auto-estradas, elevadores. Trata-se, contudo, de uma incompreensão: a poesia de Paz situa-se, em relação à natureza, num limiar entre a atração e o temor, a brutalidade ignara do natural e a configuração racional e sentimental do humano ("Hay jardines en donde el viento mismo se demora/ Por oírse correr entre las hojas/ Hablan con voz tan clara las acequias/ Que se ve al través de sus palabras").

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Acima, um dos mais belos poemas de Nicanor Parra.

A prosa de Roberto Bolaño justifica tanto barulho em torno do seu nome. Seu trabalho (que é, acima de tudo, poético) embaralha todos os tipos de categorias e instâncias da narrativa — para, dessa confusão, construir um texto de estrutura original e preciosa. Curioso, no entanto, é que esse aspecto formal tão rico não induz nenhuma perda na qualidade vital dos romances. É como em Joyce, em Rosa, em Proust. Cada livro de Bolaño é uma prova contundente de como gritam em vão (e a partir da ignorância ou da má fé) todos os detratores da poética, da teoria literária — esses leitores, cheios de idéias e princípios primários, acreditam que questões formais implicam esterilidade.

Roberto Bolaño, essencialmente poeta, escreveu estes versos — que se encontram no segundo dos seus "Siete Poemas Breves", algumas das minhas peças preferidas de sua produção:

Se ríen los trovadores en el patio de la taberna
La mula de Guiraut de Bornelh El cantar oscuro
y el cantar claro Cuentan que un catalán prodigioso...
La luna... Los claros labios de una niña diciendo en latín
que te ama Todo lejos y presente
No nos publicarán libros ni incluirán muestras
de nuestro arte en sus antologías (Plagiarán
mis versos mientras yo trabajo solo en Europa)
Sombra de viejas destrucciones. La risa de los juglares
desaparecidos La luna en posición creciente
Un giro de 75o en la virtud Que tus palabras te sean fieles

segunda-feira, 30 de março de 2009

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A poesia espanhola moderna é algo de inevitável. Para o leitor, o crítico e o poeta. Conhecer e estudar as suas particularidades (que dificilmente possuem paralelo no modernismo de outras nacionalidades) é uma atividade enriquecedora e, afinal, deslumbrante. Desde Antonio Machado até Jorge Guillén e os outros poetas de 27, o verso espanhol possui alguns enigmas que já há algum tempo me provocam.

Tenho lido avidamente tudo o que posso: Lorca em voz alta, Salinas antes de dormir, Jiménez quando acordo. Conceitualmente, nada se definiu ou esclareceu, muito embora os poemas, em separado, me transmitam tanto. Li pouco a respeito e o pouco que li não me parece forte o suficiente para agrupá-los — sei das amizades, das atividades em grupo, mas pouco sei da poesia de Lorca se ligando à poesia de Guillén.

Buscando saídas, fui ler Benedetto Croce. Desnecessário apontar o meu equívoco: procurasse Ortega y Gasset e não um sisudo filósofo italiano. Mas Croce me permite, no mínimo, duvidar dos tais agrupamentos sob as "características gerais" da época. Isso eu aprendo, muito embora a sua Estética, em certos pontos centrais, ainda me pareça incompreensível ou — se for permitida a ousadia — insustentável.

Num certo trecho, Croce confirma a utilidade dos estudos de poesia baseados nas famigeradas características ou no espírito da época — mas apenas na medida em que nos servem para discernir "a arte dos verdadeiros artistas da dos semi-artistas, dos não-artistas e dos que da arte fazem seu negócio" e, sobretudo, para através dele perceber as "dificuldades que [os grandes artistas] precisaram superar e as vitórias que obtiveram sobre a dura matéria que tomaram como objeto de seu trabalho e elevaram à condição de conteúdo artístico".

A julgar por tais idéias, que me parecem muito ajeitadas, a Espanha, entre os anos 1900 e 1930 viu surgir uma quantidade assustadora de grandes poetas — e, se pensarmos que por lá ainda apareceram artistas como Pablo Picaso e Joan Miró, como parecerá pouco falar de um novo siglo de oro. Lorca, Cernuda, Salinas, Alberti, Guillén e mais uns outros, ainda que em níveis distintos, obtiveram a vitória sobre a dura matéria referida por Croce: suas ligações, até que eu consiga me convencer do contrário, dizem mais respeito à formação de um grupo de amigos do que a de um grupo de artistas com ideais estéticos e poéticos semelhantes.

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Abaixo, um dos meus poemas preferidos de Jiménez, do enigmático e incompreendido Piedra y Cielo. Esses versos representam muito do caráter dúbio de sua obra inteira — que se configura como um elevado desafio intelectual e, ao mesmo tempo, um admirável monumento da intuição. Nesse sentido, vejo mais relações dele com Lorca do que com seus seguidores mais féis — a saber, Guillén e Salinas. Mas, a respeito destes poetas, tudo ainda me soa como mera impressão.

Me buscas, te me opones
como la imajen
del chorro, al chorro, en el espejo de agua

¿Cómo hallaré el camino eterno
que da el espejo al alma de mis ojos
si vienes tú del fin de ese camino,
con igual fuerza que este afán sin cuna,
que, como tú de ti, no sé de dónde, de mí salta?

¡Todo, en torno, es de luz.
Mas yo no puedo ir a ese sinfín que anhela el alma,
por este punto — ¡el suyo! — a que me sales
tú al encuentro!

¡Ay, fuerza de mi imajen — ¡vida! —
más poderosa que yo, ay!

(Yo y Yo, Juan Ramón Jiménez)

sábado, 14 de março de 2009

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Percebo algumas tendências nos leitores esporádicos de poesia. Quando digo "esporádicos", refiro-me aos leitores que atravessam os cursos de Letras e demonstram um interesse relativo por poemas. Não tenho pretensão de delinear o pensamento de faixas etárias, gerações ou coisa parecida — apenas anoto aquilo que percebo e que, ademais, me preocupa.

A principal característica desses leitores, a meu ver, é a tentação incontrolável de buscar significados que, por falta de termo melhor (e utilizando-me de uma palavra cara a todos eles), chamarei de "metafísicos". A partir dessa concepção, chega-se ao ponto de desconsiderar a possibilidade de que um poema se refira ao homem em sua condição mais banal. Compreendo perfeitamente que alguém não se contente com a pedra de Drummond e crie significações diversas para o objeto — no entanto, esse procedimento acaba se tornando central na interpretação poética.

Para citar um exemplo real, observe-se o seguinte trecho do poema "Shampoo", de Elizabeth Bishop:

The shooting stars in your black hair
in bright formation
are flocking where,
so straight, so soon?
-- Come, let me wash it in this big tin basin,
battered and shiny like the moon.

Em sala de aula, presenciei algumas interpretações descabidas e exageradas — mas nenhuma delas superou aquele que negava a referência do sujeito poético a uma pessoa. Segundo o leitor, o cabelo não lhe trazia à mente uma figura humana, mas algo maior. Afora a possibilidade da existência de uma entidade mística cabeluda, não compreendo como se pode escapar da situação descrita no poema, que é a de um banho. A rigor, o leitor não aceita que o poeta gaste tinta e papel para a descrição de uma cena corriqueira — ainda que tão carregada de afetividade e de imagens.

Sylvia Plath, também vista em sala de aula, me pareceu particularmente problemática para esses leitores. Sua poesia, repleta de referências físicas, de cortes, cicatrizes e contrações de parto, provoca uma confusão elementar. Não acreditar que o poeta possa se referir a tais experiências, tidas como ordinárias, pressupõe uma espécie de desprezo profundo pelo humano: como se a dor física de um aborto não fosse digna de se tornar matéria poética — à qual estaria reservada a reflexão existencial da perda do filho.

E não apenas a poesia moderna sofre com tais enganos. Mesmo um soneto de Camões, tão fechado em seu sentido, tão linear e nítido em seus caminhos, transforma-se num amontoado de referências metafísicas descabidas: não pode ser apenas a camponesa caminhando na relva, a "verdura" não é apenas o campo, a "graça" não é só a beleza.

Se fosse possível, num espaço tão curto e desleixado como esse, ensaiar qualquer tipo de investigação sobre as motivações de tais leitores, eu poderia afirmar que não se trata de um fenômeno que se possa aceitar como intuitivo ou inevitável ao leitor imaturo. Pelo contrário: denota muito mais a pretensão de compreensão erudita e original do poema.

Trata-se, ao que parece, de um fenômeno que se desenrola de cima para baixo, das classes intelectuais e eruditas para o leitor médio ("cima" e "baixo", aqui, sem tolas conotações elitistas), uma consequência nefasta da especialização e da interpretação acadêmica — que, até certo ponto, são de fato necessárias.

Um leitor imaturo, como a experiência de qualquer observador atento pode comprovar, tende à paráfrase do poema — sua apreensão e sua explicação para o amor ser um contentamento descontente ou será muito clara, uma espécie de repetição do verso, ou não será absolutamente nada, diante da obviedade do que ele lê. No outro extremo, situa-se o devaneio incontrolável e infrutífero do leitor mais familiarizado com poesia e crítica, mas inseguro de sua capacidade intuitiva de interpretação do poema — seu contato escasso e parcial com a crítica o faz crer que poesia é uma questão de disputa interpretativa.

Ele tende a não aceitar que Álvaro de Campos se desestruture ao ver uma pequena comer chocolates ou que a cidade de Gullar esteja repleta de galinhas e porcos — ele não acredita que o poeta esteja ligado à vida. Sua visão do artista é mística — segundo esse princípio, uma poeta não se prende às miudezas de um aborto, considerado uma experiência menor.

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Trecho do "O homem e a província no poema", ensaio acerca da poética de William Carlos Williams.

Grande parte dos estudos e das teorias que buscaram definir (ou, ao menos, discernir) as fronteiras e os limites da poesia moderna parecem incorrer, em maior ou menor grau, nos equívocos da parcialidade, seja ela histórica ou interpretativa. Dessa forma, são ignorados poetas fundamentais que, na primeira metade do século XX, produziram obras de relevância inquestionável, mas que não se enquadram nos parâmetros previamente estipulados para uma obra modernista; e dessa mesma forma, ademais, alguns poetas têm seus textos deturpados por interpretações comprometidas — subterfúgio cuja utilização é facilitada pela típica obscuridade da arte moderna, algumas vezes confundida com a possibilidade infinita e anárquica de apreensão e interpretação. William Carlos Williams (1883-1963) teve a sua poesia diminuída e desconfigurada por esses dois fatores. Os preconceitos e os mal-entendidos dos quais foi vítima podem ser resumidos na informação dada por José Paulo Paes no seu "A arte de ficar em casa": citando Thom Gunn, o poeta, crítico e tradutor brasileiro afirma que "na Inglaterra" a poesia de Williams, por um bom tempo, "foi considerada algo assim como uma oleogravura meio kitsch de 'casas de tijolos vermelhos, esposas suburbanas, alegres interiores padronizados'".

Nascido em Rutherford, Nova Jersey, o poeta possui uma biografia relativamente desinteressante quando comparada à de contemporâneos seus (tome-se Ezra Pound e T.S. Eliot como parâmetros — eles e seus posicionamentos políticos questionáveis e polêmicos, por exemplo): não se expatriou e não se tornou figura central nos debates artísticos na Europa. Parece-me justo, portanto, que essa opção pela vida nos Estados Unidos seja levada em conta ao analisar a sua obra: não se trata de mera curiosidade biográfica, sobretudo se a compararmos com o exílio de Pound e Eliot e os seus respectivos contatos e envolvimentos com culturas e linguagens alheias, desenvolvidas a partir de uma espécie de desprezo ou descrença relativos à tradição literária norte-americana, notadamente recente quando comparada à européia ou, no caso específico de Pound, chinesa. Não por acaso, Williams escreveu que "Há uma fonte, na América, para tudo quanto pensamos ou fazemos." Tal opção, ao longo de sua obra, desenvolve-se em todas as esferas e níveis possíveis do poema: vocabulário, tema, sintaxe e ritmo remetem a essa aludida fonte norte-americana, criando uma poesia com data e local específicos — o que não significa uma poesia passível de se tornar datada ou insignificante quando transplantada a outras paragens. No entanto, mais do que recorrer ao lugar-comum que refere a criação do universal através do local, uma verdade tornada por demais óbvia e já consolidada pela crítica, interessa-me considerar a longevidade de Williams por outros meios, quais sejam, a intrincada relação entre localismo e internacionalismo que acredito existir em sua obra, como ponto inicial, e a sua grande influência na poesia norte-americana da segunda metade do século XX enquanto demonstração dessa longevidade.