quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Linha 35



Algumas anotações ligeiras e descompromissadas sobre uma prosa e uma poesia recentes.

El Entenado, de Juan José Saer: um diálogo com os relatos de viagens de descobrimentos e explorações à América me pareceria, a princípio, extremamente entediante. Óbvio que errei. O livro de Saer consegue a proeza de equilibrar as diversas possibilidades de interesse do leitor: lemos avidamente para saber o desfecho da história do europeu perdido em meio aos canibais; lemos avidamente também para acompanhar o desenvolvimento de uma linha de pensamento filosófico que rasteja ao longo das memórias do europeu que se perdeu em meio aos canibais e voltou transformado à Europa; lemos avidamente, ainda, para não perder esse fio estilístico tão nítido que se alonga pelo livro, um traço de inegável alcance poético e uma marca de narrativa oral.

O narrador de Saer trata bem o seu idioma para especular sobre o idioma alheio. À maneira de Borges (sempre ele?), está concentrado na função daquilo que narra e numa curiosa língua que não lhe pertence e que só compreende parcialmente. Há uma desconfiança generalizada diante do domínio de um idioma. A certa altura, o narrador esclarece (?): "Lo desconocido es una abstración; lo conocido, un desierto; pero lo conocido a medias, lo vislumbrado, es el lugar perfecto para hacer ondular deseo y alucinación" — como a dizer que, dessa maneira, restam ainda algumas opções para a criação. Há quem se lance ao mágico e há quem (e essa parece ser a opção de Saer) prefira aquilo que é real, ainda que parcialmente ignorado.


Lawrence Ferlinghetti: conhecia Ferlinghetti de nome e de lenda. A primeira e brevíssima leitura, feita ainda na livraria da rodoviária de Salvador, me surpreendeu. Eu havia viajado com uma coletânea do e.e. cummings na mochila e, de início, achei que voltava com duas coletâneas de e.e. cummings na mochila — algo que, como se pode imaginar, não me incomodou. Sobretudo os poemas líricos de Ferlinghetti me passavam essa impressão: "(...) I saw Vaucluse again/ in a summer of sauterelles/ its fountains full of petals/ and its river thrown down/ through all the burnt places/ of that almond world/ (...)/ but couples going nude into the sad water/ in the profound lasciviousness of spring/ in an algebra of lyricism/ wich I am still deciphering". A influência é inegável: lirismo e natureza são indissociáveis. As distinções entre Ferlinghetti e cummings, ainda que, por ora, eu as permaneça decifrando, já se tornaram perceptíveis nas leituras seguintes: o retalhamento linguístico do poeta beat é menor no nível sintático ou mesmo inexistente no âmbito morfológico.

Suas "Oral Messages", feitas para a leitura com acompanhamento jazzístico, interessam sobretudo na medida em que indicam caminhos de composição seguidos por muitos poetas e músicos dos períodos posteriores. A extensão dos poemas termina exigindo os ganchos que nos acostumamos a ouvir nas canções de Bob Dylan ou Patti Smith, por exemplo — algo que não chega a ser um refrão tal como o conhecemos das canções dos trovadores medievais ou dos compositores mais ordinários da música popular. O poema é composto por meio de um processo constante de reiteração de um tema específico. É o mesmo procedimento da improvisação do jazz. "I am waiting" repete "I am waiting" e "Dog" repete "The dog trots freely in the street". Mas é "Autobiography" que parece mais simbólica desse processo: utiliza o pronome "I" e uma variação delimitada de verbos conjugados no passado ("saw", "have seen", "had", "thought", etc.) indicando experiências diversas — e, vez ou outra, surge um taxativo "I am", representação final desse eu-lírico repleto de visões e vivências. Algo muito semelhante foi feito por Bob Dylan em "A hard rain's a-gonna fall", pra citar apenas um texto que se aproxima. Importante mesmo, no entanto, é que eu permaneci lendo Lawrence Ferlinghetti pelos dias seguintes e assim continuo.