domingo, 18 de outubro de 2009

Linha 36


Gosto de "O século sério", ensaio de Franco Moretti. Meu posicionamento é claro: estou contra a sua premissa básica. Mas ainda assim aprecio o seu texto. Talvez eu não devesse resumir, simplificar e, de certa forma, assassinar o ensaio, mas é necessário: Moretti está preocupado em desvendar causa e efeito da mediocridade reinante no grande romance realista europeu. É óbvio que aqui se fala da mediocridade cotidiana, da neutralidade narrativa e das centenas de páginas desses romances que, a bem dizer, nada acrescentam ao desenrolar das tramas (impressionantes 97% em Orgulho e preconceito, calcula Moretti). Nessa investigação, o crítico italiano se desloca em dois níveis: 1) parte de duas categorias textuais propostas por Barthes e faz uma análise estrutural irretocável e 2) especula sobre a relação entre essa nova forma de narrar (e de ler) e a consolidação de uma burguesia rica, conservadora e cheia de "tempo livre". Não seria novidade afirmar que o ponto 1 está claramente evidenciado por meio de exemplos muito bem colocados e que o ponto 2 não possui evidência possível. Claro: mais do que legítimo, é até mesmo necessário especular sobre as relações entre ideologia e forma — no entanto, que fazer desse risco tão constante que é a perda de uma medida justa (seja para o lado dos formalismos ou dos sociologismos)?


Moretti, por exemplo, ao refletir sobre a utilização do discurso indireto livre em Orgulho e Preconceito, escreve: "'His understanding and temper, though unlike her own, would have answered all her whises'... Quem fala, aqui? Elizabeth? Austen? Talvez nem uma nem outra, mas a voz do contrato social que se obteve: a voz do indivíduo socializado. O compromisso foi obtido — e, ainda uma vez, sob o signo da seriedade: sem mais os dramas nem as burlas das narrações didáticas. Um pouco de ironia, um pouco de melancolia, e assim por diante". Logo em seguida, Moretti destaca Austen de entre os romancistas do período: ela utiliza esse discurso porque, tendo começado a escrever 10 anos mais tarde que seus contemporâneos, já não teme a revolução (já não escreve romances antijacobinos) e já não acredita na necessidade de doutrinar através do romance; descrê da sua função didática, do seu papel na conservação de uma ordem. Austen, portanto, é conservadora — porém destemida ao ponto de deixar que seus personagens falem livremente. Surge aqui, então, a idéia central do ensaio de Moretti: esse personagem, que se supõe que fale livremente, fala em nome de uma ideologia. É justamente esse o "indivíduo socializado" — que só viria a se consolidar com Flaubert: "(...) personagem e narrador perdem suas vozes distintas e são suplantados um pouco em toda parte pelo tom abstrato e sempre igual da ideologia corrente".


"O século sério" é puro engenho. Um ensaio exemplar, de fato: bem articulado, erudito, bem amparado por todos os lados. Não acredito que seja possível negar observações feitas a respeito das particularidades temporais de certas formas: é óbvio que não se poderia escrever, hoje, Dom Quixote — assim como um contemporâneo de Cervantes não escreveria um romance de Gertrude Stein. Moretti potencializa esse pressuposto: são 10 anos para que Austen revolucione o romance inglês e europeu. Nesses 10 anos, o que possibilita a revolução formal é o arrefecimento dos ânimos da revolução social. Mas é necessário dizer: acho perfeitamente justificável que um leitor peça a palavra e, tendo-a, ria dessa explicação. Ria, ainda que admire a análise estrutural feita anteriormente, que agradeça a coleção de exemplos e explicações tiradas dos romances. A justificativa de Moretti pressupõe determinado posicionamento teórico do leitor para a aceitação devida — quase uma empatia.


Subordinar a escrita de Austen (ou de qualquer outro artista) aos programas ideológicos de sua época sempre parecerá uma simplificação desnecessária. Os mecanismos culturais são inegáveis, mas a sua própria dinâmica histórica comprova a sua maleabilidade e, mais, a sua fraqueza. A grande obra é feita quase sempre a partir da ruptura (e não é a própria escritora inglesa evocada por Moretti — e justo da forma como é evocada por Moretti — uma prova irrefutável?). Ainda que se aponte a divisão entre baixa e alta cultura (essa última restrita a pouquíssimos), será estranho pensar, por exemplo, em Dostoievski ou Austen como produtos de uma ideologia dominante da época. Entenda-se: eu acredito que os dois são autores profundamente ligados à ideologia e à cultura dominante do século XIX, mas essa ligação é muito mais ativa do que passiva, muito mais construída através dos contatos de suas sensibilidades e intelectualidades com esse discurso consolidado do que por ele determinada.


A teoria estética de Adorno me parece pertinente nesse ponto. O temido alemão escreveu que "A arte é a antítese social da sociedade, e não deve imediatamente deduzir-se desta." Esse caráter de resistência que Adorno percebe na obra de arte, no entanto, em momento algum se confunde com um ideal despropositado de arte pura ou de arte pela arte. Essa confusão, naturalmente, seria uma contradição séria demais, que faria ruir todo o pensamento de Adorno. Acredito que a idéia de tensão é fundamental, sobretudo em pontos e momentos decisivos para modificações específicas na arte: assim com a poesia de Baudelaire ("A verdade que encerra a obra de Baudelaire não pode ser extraída dessa ou daquela confissão, nem de tal ou qual verso evidente, mas apenas das tensões, para as quais a chave mais segura são suas contradições" escreveu Michael Hamburguer), a música de Stravinsky, a pintura de Matisse ou o romance de Jane Austen e Flaubert. Daí, então, a minha desconfiança diante do caráter pacífico que as conclusões de Moretti sobre o preenchimento e o discurso indireto livre encerram.


Mas, já que estou longe de ser um estudioso de Jane Austen e do romance realista do século XIX, não vou me arriscar a oferecer saídas e/ou opções ligeiras e toscas às conclusões de Franco Moretti — e nem seria o caso de fazer isso: o que me interessa aqui é mais a percepção de que os estudos literários quase sempre tendem a se polarizar, tornando-se uma espécie de futebol intelectual que, desgraça maior, nem tem o prazer do gol. Os formalistas buscaram uma ciência e uma exatidão que o leitor, no geral, ignora — e por motivos óbvios e justificáveis. Moretti paga seu tributo aos formalismos e estruturalismos que tanto nos assombraram, mas também demarca muito claramente o terreno ideológico do seu trabalho. Não creio que se trate necessariamente de ecletismo ou falta de critério, mas da noção de que delimitar é quase sempre distorcer. Claro que, pelo que escrevi nos parágrafos anteriores, eu acredito que, através do seu método de trabalho, também houve uma distorção — mas é por isso que, acredito, a crítica precisa ser observada. A crítica só sobrevive sob o jugo da crítica. Ou então cai no registro de opiniões e perde o sentido.