quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Linha 41


Eu não pretendo transformar o blog num amontoado de anotações sobre romances, mas é tudo o que tenho a oferecer por ora.

Vidas novas, de Ingo Schulze: acho um tanto constrangedora a atual ânsia que editores, escritores e críticos possuem pelo épico. Um dos sinais mais claros desta mania é a classificação de "épico" dada a qualquer romance que ultrapasse as quinhetas páginas. A qualidade épica, portanto, agora é questão de quantidade. Günter Grass, por exemplo, percebe um sabor épico em Ingo Schulze e, ao que parece, isso deveria ser louvado. Mas não acreditem: o que Schulze tem de melhor é banal. Não quero me meter numa destas intermináveis discussões hegelianas sobre o caráter da arte moderna, mas apenas registrar que os contos reunidos em Celular, por exemplo, são muito melhores do que o romance Vidas novas lido como um romance. Porque é possível lê-lo como uma sucessão de episódios ou de contos muito competentes, mas não como um romance com uma coesão artística que a confecção de um calhamaço exige e que pouquíssimos calhamaços alcançam. É claro que no que diz respeito ao mercado editorial, o romance, e sobretudo o romance extenso, tem um êxito que outros tipos de obra (como uma coleção de contos de duas páginas, coitada) jamais alcançariam, mas que importância artística isso poderia ter? Ainda não me deram uma justificativa plausível para que um romance seja considerado necessariamente uma obra superior a um conto ou a um único verso: tudo acaba se resumindo à capacidade de, em mais páginas, abordar mais temas ou algo deste tipo, coisa que não vejo como digna de consideração. Vidas novas é cheio de temas e de cenários e de discussões, mas isso raramente se configura de modo a dar uma noção de totalidade verdadeira à obra — a forma, durante longas páginas, acaba se afrouxando. Se querem Ingo Schulze, prefiram os contos. Sai até mais barato.

Satã é seu mestre

Everything is illuminated, de Jonathan Safran Foer: a edição da Penguin vem recheada de trechos de resenhas e artigos sobre o livro. "Bold and exuberant", "Funny, life affirming, brilliant"; Joyce Carol Oates escreveu que é "One of the most impressive novel debuts of recent years" e, fechando o ciclo, alguém avisou: "Put off your plans to write the next great American novel — Foer's beaten you to it". É adjetivo demais para uma única edição, mas o surpreendente mesmo é que quase tudo isso é verdade. Tudo bem que a noção de "great American novel" é um tanto tola, pode-se dizer isso a respeito de quase todos os romances de Philip Roth ou Thomas Pynchon, por exemplo, mas é o que menos importa: o livro de Foer está muito bem colocado entre as melhores obras recentes dos EUA, possui pontos de contato com esta tradição, embora ao mesmo tempo saiba sair dela com relativa tranquilidade. É perceptível a influência que ele sofreu da narrativa hispano-americana, por exemplo. A verdade é que se trata de um livro notável em quase todos os seus aspectos — e o principal talvez seja o da linguagem. A escrita de Sasha, um dos narradores do livro, rapaz ucraniano que conhece muito mal o inglês, é um trabalho riquíssimo, um desvirtuamento e uma renovação que, agora, depois da leitura do livro, me parecem muito pertinentes à língua inglesa. Sasha escreve de forma risível, mas é também profundamente tocante — sobretudo no trecho em que se torna, de repente, um James Joyce ou, mais precisamente, uma Molly Bloom. Em alguns momentos (trechos sobretudo amorosos) o romance tende para o sentimentalismo, que sempre é incômodo, mas ele mostra uma sensibilidade contida e certeira ao tratar, por exemplo, da dor e do absurdo nos ataques nazistas aos povoados judeus da Ucrânia. Além disso, o humor consegue até mesmo diminuir o problema do exagero sentimental — embora ele mesmo também incorra em outro defeito, que se evidencia quando o humor se excede e, naturalmente, perde a graça. Mas Foer é um bom autor desde a sua estréia. Algo raro.