Texto antigo sobre Eugene O'Neill. Costumo chamá-lo "De sonhos e morfina"
Costuma-se afirmar que um autor atinge a sua maturidade quando desiste de utilizar-se como tema central de suas obras, quando se abandona enquanto personagem. Ao iniciante, mais do que uma tentação, uma fácil tentação, essa criatividade auto-centrada parece ser uma necessidade — e é Scott Fitzgerald quem o diz, considerando ser esse ("transferir emoções a outra pessoa através do expediente desesperado e radical de arrancar do coração a trágica história de seu primeiro amor, e expô-la nas páginas para que os outros vejam") o verdadeiro preço da admissão. É bastante provável que a carreira de inúmeros grandes autores justifique esta afirmativa: não parece nítida a intenção de James Joyce ao deslocar Stephen Dedalus, seu alter-ego, do centro que ocupava em Retrato de um artista quando jovem, para a posição ainda importante, é verdade, mas notadamente ofuscada pelo peso de Leopold Bloom — peso que, certamente, seria imperceptível ao ficcionista iniciante, que o consideraria um personagem desinteressante e enfadonho se comparado à carga poética e ao peso psicológico de um artista atormentado como Dedalus? O autor irlandês está, de certa forma, renunciando a si mesmo - talvez por notar que seria uma tolice pensar que não estaria imprimindo sua subjetividade mesmo num personagem que julgava ser sua antítese absoluta. Opto por Joyce por ser este um caso nítido e deliberado, mas a literatura está repleta de casos semelhantes.
Mas, se é esta uma das verdades incontestes da literatura, pode-se relativizá-la (e não só a ela) com outra constatação inegável: encontram-se, na história da literatura, casos de todos os tipos. Pois não foi pondo-se como centro de sua ficção que Marcel Proust ergueu talvez o maior monumento literário da modernidade? Não está Hans Castorp, no sanatório, tão cheio dos bacilos que lhe imprimem a tuberculose quanto do próprio Thomas Mann que lhe imprime interesse ficcional? E que dizer, então, de Eugene O'Neill, homem e autor maduro, já vencedor de três Pulitzer e do prêmio Nobel e, reconhecidamente, um dos maiores dramaturgos do século XX, debruçando-se corajosamente sobre sua juventude ao lado de uma família despedaçada? Longa jornada noite adentro é documento inquestionável (e raro) da viabilidade da união entre maturidade estética e confissão despudorada.
Finalizada em 1941, a obra permaneceu inédita por 15 anos — um tempo relativamente curto, se considerada a vontade do autor, morto em 1953, de que a peça só fosse publicada passados 25 anos do seu falecimento; tudo porque, segundo ele, um dos personagens ainda vivia. Sua esposa, porém, permitiu que fosse publicada e levada aos palcos antes do tempo desejado por O'Neill. Ao se deparar com o texto de Longa jornada noite adentro, o leitor sensível rapidamente percebe o pudor e a cautela demonstrada pelo autor: a autobiografia dramática (como é comumente referida) está carregada de um ressentimento que, por certo, causaria constrangimentos ao homem envolvido naqueles personagens e ao escritor perdido naquela atmosfera. O'Neill revela, de forma cruel, o ambiente que o criou — e, portanto, revela também de onde partiu para, em seguida, erigir uma das obras mais assombrosas do século passado. Longa jornada noite adentro, assim, torna-se texto fundamental para a compreensão da dramaturgia moderna.
Tal qual a maioria da produção dramática do século passado, a peça não possui variações de cenário e se encerra num único dia, num único local. Talvez seja esse, aliás, o maior risco assumido pelos grandes dramaturgos da modernidade: ao evitar variações cenográficas, ao reprimir a ação e prender-se basicamente à situação psicológica dos personagens, a possibilidade de entediar o leitor ou o espectador cresce de forma considerável. Um dos autores mais bem-sucedidos nesta luta foi, sem dúvida alguma, Samuel Beckett. Utilizando-se de personagens patéticos (derrotados, desesperançosos, mas cômicos e empáticos), diálogos velozes e cenários e figurinos incomuns, o escritor irlandês rompe de imediato a ligação do público com o drama e, assim, deixa-o desconfortável o bastante para que não se entedie, exigindo-lhe atenção redobrada pelo fato de encontrar-se sob uma atmosfera pouco conhecida e potencialmente perigosa. De certa forma, é este o procedimento utilizado também por O'Neill em peças como Fog (apenas um curto ato de inegável qualidade dramática), na qual uma espessa névoa envolve um bote salva-vidas e não permite ao espectador a visualização total dos personagens que, no texto, são inicialmente identificados como First Voice e Second Voice e, em seguida, durante um diálogo no qual revelam suas tendências psicológicas e ao longo do qual a claridade da manhã já consegue penetrar a névoa e revelar características físicas dos sobreviventes do naufrágio do vapor Starland, passam a se chamar The Poet e The Business Man. A tensão criada pela situação inusitada de uma cena em alto mar, sob um nevoeiro, na qual dois desconhecidos (de si mesmos e do público) têm ainda a companhia de outros dois personagens silenciosos que, por fim, revelam-se mortos (tal qual afirma Luiz Arthur Nunes sobre a heroína defunta de Nelson Rodrigues em Valsa Nº 6, pode-se dizer que ambos estão biologicamente mortos, mas dramaticamente vivos) é um subterfúgio maduro e inteligente para suprir a falta de ação e mudanças cenográficas.
O que se vê em Longa jornada noite adentro, contudo, é a tentativa deliberada de não oferecer facilidades ao espectador. O'Neill dispensa as situações incomuns ou os personagens fisicamente misteriosos para montar um drama familiar repleto de situações banais (almoço, jantar, trabalho no jardim, telefonemas) e de falas longas que, nas mãos de um autor inexperiente, talvez se tornasse tedioso. Para enfrentar a sua própria biografia, para legar aos palcos e à dramaturgia norte-americana um texto que, de certa forma, assume a característica de uma sessão de análise, de um sincero e corajoso acerto de contas entre sua família (àquela altura biologicamente morta, mas dramaticamente viva), O'Neill já precisava possuir toda a técnica literária da maturidade. Inverte-se, dessa forma, a idéia tradicional de que a ficção autobiográfica pertence ao jovem: para fazê-la bem, necessita-se a experiência do autor formado.
A delicada situação da família é visível desde o início da peça — quando, após fazer patéticos elogios à esposa Mary, Tyrone, o patriarca, acusa os filhos de permanecerem na sala de jantar, mesmo após o café já tomado, para que, juntos, possam urdir um "plano para extorquir dinheiro do 'velho'". Ao longo dos quatro atos, a avareza de Tyrone revela-se de maneira cada vez mais hedionda: por conta dela, desperdiçou sua promissora carreira como ator shakesperiano, decide mandar Edmund (jovem alter-ego de O'Neill que, durante o drama, tem a confirmação de que está acometido pela tuberculose) para um ordinário sanatório estatal e, ao optar por um médico barato (mas incompetente) para o parto do filho caçula, fez com que Mary entrasse em contato com a morfina. A avareza do pai e o vício da mãe são, por sinal, fatores essenciais para uma melhor apreensão da obra: enquanto o primeiro, segundo os críticos, não corresponde à realidade, sendo mero artifício ficcional, o segundo é real e, a princípio (ao menos para os que enfrentam a obra sem o conhecimento prévio da biografia), enigmática. Sabe-se que Mary retornara há pouco, mas não por onde esteve; sabe-se que temem uma recaída, mas não sobre o que. A dúvida permanece até que, numa frase, são revelados o vício e a personalidade de Jamie (o primogênito), que a profere: "Mais outra espetadela no braço!". Figura maldita, carrega em si todos os erros da família: é dependente químico tal qual a mãe (alcoólatra tal qual o pai), demonstra falta de tato com relação ao dinheiro (ao contrário de Tyrone, não consegue acumulá-lo) e nutre uma relação ambígua com Edmund — na qual o ama e protege e o guia à decadência (a certa altura, afirma ser Edmund o seu Frankenstein).
Sob tais condições, não surpreende a impressão de Tyrone — que diz perceber "uma atmosfera tão carregada e tão lúgubre que poderia ser cortada à faca" já no segundo ato. O dia segue com a recaída absoluta de Mary, a confirmação da tuberculose no caçula e o acirramento da tensão entre Jamie e Tyrone, que se acusam e se ofendem todo o tempo. Grande parte da ação está apenas no passado rememorado pelos personagens - e do qual se dizem vítimas. Ao contrário do que se vê em obras que vão desde King Lear até Casa de bonecas, o espectador não persegue a decadência, não a sente como conseqüência dos erros de um velho rei ou do desgaste da convivência tola de um casal unido por Ibsen; ele já encontra (prontos, escuros e abafados) o fracasso absoluto e a sua atmosfera. De certa forma, o drama de O'Neill inicia-se onde deveria encerrar-se. Assim cria-se a tensão, evita-se o tédio: como vivem personagens que já se acostumaram à derrota, que já afirmam "Somos da substância de que é feito o esterco" e, cientes disso, continuam vivendo e, mais importante, convivendo?
Como se acertassem contas, os quatro personagens falam muito e falam longamente. Os imensos e reveladores diálogos realizados no ato final do drama, quando O'Neill dispõe a família sob luzes apagadas e em torno de uma simbólica garrafa de uísque (nelas estão o vício e a avareza do pai que, inicialmente, ressente-se pela energia elétrica consumida sem necessidade e por estar desperdiçando a cara bebida), revelam também outra faceta da distância entre Longa jornada noite adentro e as peças modernas - representadas sobretudo por Samuel Beckett e seus Fim de partida e Esperando Godot, nas quais os diálogos são ligeiros e, de certa forma, interdependentes; em alguns deles, aliás, a mesma idéia ultrapassa a capacidade expressiva de um personagem e só encontra conclusão na fala de outro personagem — por isso só dispõem de frases curtas e, a princípio, pouco significativas. Quando, em Esperando Godot, um dos personagens arrisca uma colocação mais longa, que no papel supera uma página inteira, seu discurso está repleto de informações inúteis e idéias desencontradas — um puro emaranhado de palavras sem sentido ou serventia. Jamie, Edmund, Tyrone e Mary, ao contrário, discorrem longamente sobre o passado, sobre seus erros e remorsos. Esta característica, contudo, não pode ser encarada como uma discreta esperança que seu autor ainda depositava na comunicação (àquela altura, aliás, a morte já a encerrara): se falam muito, parece também que falam sozinhos, que não são ouvidos e, por isso, a maior parte de suas considerações não são respondidas e, ao que parece, sequer ouvidas e analisadas pelos outros. Sobre isto, logo após chamar e não ser escutado pela mãe, que está totalmente envolvida pela droga, Jamie evoca versos de Swinburne: "Vamo-nos daqui, canções minhas, ela não as ouvirá. (...)/ Sim. Ainda mesmo que feito anjos lhe cantássemos ao ouvido,/ Ela não nos ouviria."
As formas que cada um encontra para continuar nesta convivência atroz são variadas: enquanto Jamie afunda-se no cinismo e na grosseria, na absoluta falta de esperanças e numa comodidade amparada, sobretudo, nos vícios de um homem com mais de 30 anos ainda sustentado e maltratado pelo pai, Tyrone renega a morbidez, clamando por uma vida irreal de devoção ao trabalho (ao dinheiro) e a Deus (ao dinheiro), embora seja um católico relapso e muito pouco exemplar. Sua personalidade dúbia e hipócrita é claramente retratada quando, após ouvir os versos de Swinburne recitados pelo primogênito, ele diz "Passe-me essa garrafa, Jamie! E deixe de recitar essa poesia mórbida. Não a admito mais em minha casa." Edmund, o único que, em tese, está realmente condenado (tuberculoso, sem o interesse do pai em mandá-lo a um bom sanatório) passa o quarto ato tentando mediar o tenso encontro da família. Pede controle ao pai, calma ao irmão, compreensão para com a mãe. Resta a Mary, contudo, encerrar o drama com um emblemático regresso ao seu passado de jovem que, "durante algum tempo", foi "tão feliz". Certas vezes, cogita a morte, mas não possui coragem para, deliberadamente, exagerar a dose – e, sobre a morte, não é demais lembrar que The Poet, ainda identificado por Second Voice, em Fog, afirma “But death was kind to the child”. Retratando-a presa aos delírios provocados pela morfina, O'Neill transforma-a numa personagem realmente composta "da substância de que são feitos os sonhos" - de fato, ao fim da peça, informa-nos que Mary "Olha fixamente diante de si, mergulhada no seu sonho triste". Numa ironia amarga, num desencanto que permeia toda a obra, O'Neill não contradiz Shakespeare (o único autor que agrada ao pai e aos filhos), mas compreende que a tal substância de que são feitos os sonhos, muitas vezes, é apenas a morfina.