sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Linha 58


Há qualquer coisa de jazz a respeito de Highway 61. Mais, talvez, do que qualquer coisa de rock. Tanto a concepção quanto a execução de "Like a Rolling Stone" e de "Ballad Of a Thin Man" (representando, aqui, também as outras canções do álbum) mostram um inegável pendor para o improviso, a idéia súbita, a crença romântica na inspiração inexplicável — que, quando supostamente surge, não é negada: o líder e a banda trabalham de forma a aceitá-la e adequá-la a uma estrutura básica e ainda tradicional de composição. Portanto, a revolução que Dylan inicia a partir de Highway 61 não é propriamente de composição, mas de conceito e execução.
o rock morreu
É assim que "Like a Rolling Stone" vai ganhando camadas e camadas de órgão que conseguem ser discretas, ainda que sejam exageradas e que seus tubos apitem sem cessar. Assim, também, os arranjos e a cadência diferenciada no andamento de "It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry" transformam uma canção folk ordinária numa verdadeira celebração blueseira — tal procedimento, aliás, estará ainda mais coeso em Blonde on Blonde, cuja música de abertura ("Rainny Day Women") é o exemplo perfeito.
o jazz morreu
Todo esse conceito, para tornar-se ainda mais ilustrativo e claro, precisa do auxílio de bootlegs e registros de shows deste período específico. No palco, Dylan parece pôr em prática tais idéias esquisitas: basta ver a transformação que "Just Like Tom Thumb's Blues" sofre nas apresentações ao vivo e como "One Too Many Mornings" (balada quase silenciosa de The Times They Are A-Changin') ganha ares quase roqueiros, com guitarras dedilhadas, baixo pesado e um órgão constante.
coltrane vive
Muitos já alertaram que, em gravações piratas e em registros de ensaios, há toda uma carreira paralela que é indispensável para quem pretende compreender e apreciar Dylan, esse Judas. Por fora dos discos oficiais de estúdio, ele se desenvolve e se sente mais livre para improvisar e variar justamente nessas gravações menos formais, mais despojadas, por exemplo, da pressão mercadológica. E é exatamente a partir de Highway 61 que se inicia esse trabalho.
bird is not dead
Dylan passa a acreditar muito mais na música como uma experiência imediata. E é justamente nesse ponto que se encontra a suprema contradição, a mais irônico dos fatos: ao eletrificar suas canções, tornando-as modernas, Dylan passa a agir da forma mais arcaica possível — viajando em turnês intermináveis, põe em prática um método de relação com o público anterior ao registro sonoro e ao conceito de álbum.
enterrem michael jackson
Suas letras — para as quais ele já encontrara um molde nos discos anteriores — tornam-se ainda mais irônicas e amargas. "Queen Jane Approximately" é um desses ataques sutis, cuja representação mais bem acabada encontra-se na longa "Ballad of a Thin Man", um blues climático e sombrio que serve de base para Dylan destilar suas ironias pra cima de um personagem (que muitos dizem ser um jornalista, outros afirmam ser um músico e alguns ainda definem como um homem qualquer) deslocado e perdido diante de fatos que não podem ser abarcados por seus conceitos curtos. A canção assemelha-se a uma carta de intenções do próprio Dylan — disposto, a partir daquele momento, após descartar o Dylan romântico e essencialmente folk dos primeiros anos de sua carreira, a forçar um tanto de confusão na quase sempre obtusa e curta música popular.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Linha 57



Quinta-feira passada foi lançado, em formato de livro artesanal, pela editora Tulle, um ensaio meu — o título: Trovar tadio. É um texto relativamente antigo (deve ter uns 3 anos) sobre Elomar, músico que muito aprecio, escritor pelo qual não tenho tanto interesse. Para quem não conhece, recomendo enfaticamente três discos: Das barrancas do Rio Gavião e Cartas Catingueiras, no campo da canção popular, e Fantasia leiga para um rio seco, para quem gosta de se meter com música erudita. São, na minha opinião, três obras-primas indiscutíveis — ou que podem ter seu valor discutido por alguém muito chato e/ou sensível às opiniões e preferências idiossincráticas de Elomar, que vê o demônio pintado em tudo que nos chega da Inglaterra ou dos Estados Unidos e acha Castro Alves o maior de todos os poetas brasileiros (ter estudado num colégio chamado Castro Alves e ter sido obrigado a lê-lo em voz alta em todas as aulas de Língua Portuguesa, às terças, na oitava série, também me fizeram ter essa opinião por algum tempo). Meu ensaio se concentra na música porque, àquela altura, seu primeiro livro, Sertanílias, ainda não havia sido lançado. Também porque, após lê-lo, não achei tanto valor em sua literatura — ainda muito confusa em sua mistura de poesia, roteiro de cinema, entrevista, prosa de ficção e um longo etc. Não deixa de ser curioso que alguém com uma visão tão tradicionalista da arte e da cultura apareça com um livro impuro desses, mas isso ficou como tema para outro momento.
eu escolhi a palavra de deus
Discos em mp3:
666
Das barrancas do Rio Gavião.
sim
Fantasia leiga para um rio seco.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Linha 56



"avuis només presto atenció
a formes triangulars"


Sumari astral é o livro hermético e ocultista de Joan Brossa. Simulando ser uma espécie de Trismegisto catalão, o poeta assume o número três e a forma do triângulo como símbolos do percurso das coisas e da linguagem. Não há originalidade alguma nisso — mesmo porque a originalidade não é um conceito aceitável para quem crê no ritmo de eterna correspondência e recriação. Dito isto, há que se assumir: até hoje, homem nenhum escreveu uma teoria poética de maior influência do que Hermes. Brossa cita A Tábua de Esmeralda quase que textualmente em alguns versos: "El mar de baix és igual que el de dalt". Fronteiras, bandeiras, linguagem, correspondência: tudo se encaixa entre as três sessões do poema — mesmo a questão do gênero aparece brevemente no verso "Amb els vestits no vull imitar res", espécie de assunção do caráter feminino como natural ao masculino e não como desejo de identificação com algo externo e estranho a ele. A segunda parte do livro, os "outros poemas", reintroduz Brossa como ele é mais conhecido: poucos versos, imagens raras, preocupações essencialmente políticas. A relação com o Sumari, no entanto, pode ser percebida — afinal, o que Brossa deseja, mais que injetar sentido poético em elementos banais, é desvendar o sentido poético oculto nos elementos banais. Isto, naturalmente, também é criação — que ele alcança por meio do emparelhamento de observações corriqueiras e de reflexões ou imagens inesperadas. Seu método, portanto, parece se pautar na vontade de que estas duas esferas "aparentes" da linguagem se revelem, aos olhos do leitor, como uma única. Não digo que não seja uma crença perigosa, um método arriscado, mas Brossa parecia ser um homem e um poeta disposto a correr alguns riscos, como se percebe pela foto abaixo.


quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Linha 55


Há certos autores que, de tão mal tratados e revirados pelo senso comum, não podem ser lidos: o primeiro contato com suas obras já é uma releitura. A celebridade vitimizou autores como Dante ou Kafka, por exemplo — mas, apesar de fazer a constatação, não estou muito disposto a observar o fato como um problema sério. Este tipo de releitura, considerando o leitor como uma figura relativamente autônoma e sensata, acaba incitando uma espécie de crítica imediata que alerta para a necessidade de desconfiança e para a possibilidade de redimensionar conceitos e preconceitos variados.
xxx
Estou atravessando uma experiência deste tipo enquanto leio Byron. O Lord, massacrado pela historiografia literária brasileira ao ser associado ao que de pior havia no romantismo (ainda que, de passagem, fosse aludida a sua ligação com o que de melhor havia no romantismo, a saber, a auto-ironia, o humor negro, etc.), está muito além do sentimentalismo desenfreado e tolo. É claro que a desfaçatez metrificada de Byron provocou alguns ecos no romantismo brasileiro, os mais óbvios entre Álvares de Azevedo e Sousândrade — mas o primeiro tem algo mais típico a ser ressaltado (o chororô) e o segundo esteve esquecido por um longo tempo.
xxx
Os excertos do Don Juan, selecionados e traduzidos por Augusto de Campos (com sua peculiar liberdade), têm uma força e uma eficácia raras e conseguem reunir, sob o signo do riso e da amargura, reflexões filosóficas (sempre beirando o ridículo, de forma muito calculada), observações sociais e preocupações com a forma e a fama do próprio poema que está sendo escrito, uma espécie de metalinguagem desabusada que não se importa de fazer graça com Dante, Virgílio ou Homero.
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Estes trechos são chamados por Augusto de Campos de "digressões" e nenhum ou quase nenhum deles toma parte direta nas narrativas das peripécias do personagem que dá título ao poema. Segundo o tradutor, também ele observava Byron como uma "legenda padronizada" — à qual só passou a prestar atenção após o seu contato com Sousândrade, que tinha um apreço particular pelo inglês. Neste ponto chegamos a um outro problema.
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Byron é citado nominalmente no famoso "Inferno de Wall Street", que faz parte d'O Guesa. Como se sabe, este é o trecho mais lido, relido e louvado do épico brasileiro porque este é o trecho ao longo do qual Sousândrade tem sua linguagem perturbada, fugindo da regularidade que preenche quase todos os outros espaços da obra e fazendo antecipações de métodos modernistas como a colagem — é, enfim, o trecho mais doido do poema. Aquele que, para a nossa sensibilidade, chama mais atenção e indica mais claramente sua ligação com aquilo que tomamos por "poesia moderna" (aqui devidamente confundida com aquilo que foi um poema modernista — e que muitas vezes pode ter sido apenas isso, um poema modernista).
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A seleção de Augusto de Campos também faz esta opção em relação a Byron. Segundo ele, as digressões são aquilo que, no Don Juan, "mais interessam à perspectiva moderna". Não sei até que ponto esta postura, digamos, interesseira pode ser de fato interessante para o leitor e o poeta dos dias que andam. Este contato parcial, dando preferência sempre àquilo que mais se assemelha à nossa noção de bom gosto e eficácia poética pode ser obscurantista e é arrogante. No limite, o seu resultado mais imediato é o proselitismo e a padronização das leituras, da criação, da sensibilidade.
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Não me interessa aquilo que ficou datado, óbvio — a não ser como peça pitoresca do museu de tudo. As obras poéticas, no entanto, não são produtos naturais que naturalmente perdem a validade: são fatores diversos que as elevam ou as derrubam — às vezes fatores estúpidos como a falta de amigos importantes ou de reedições. O processo que excluiu Pedro Kilkerry do simbolismo brasileiro, por exemplo, foi deste nível. Aquele que nos fez esquecer Sousândrade, porém, foi de outra ordem: falta de conexão mais óbvia entre aquilo que fazia o poeta maranhense e aquilo que buscavam os versejadores de sua época. Ele não interessava, pois, ao panorama da produção e da sensibilidade poética do momento. O fato dele ter sido reavaliado pelos leitores modernos, porém, não exime estes leitores da possibilidade de que cometam o mesmo equívoco — seja com autores contemporâneos seus ou com gente morta há trezentos anos.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Linha 54


Os desentendimentos entre lírica e sociedade estão entre os temas centrais de quem quer que se interesse, leia e pense sobre poesia. Para os não-leitores, poesia e sociedade são coisas antagônicas, que nem chegam a se desentender: vivem tão distantes uma da outra que este não é um risco verdadeiro — uma está na lua, outra na rua. Porém, para os leitores esporádicos, aqueles que preenchem as vagas nos cursos de Letras e que vão efetivamente às escolas e "ensinam poesia", a relação entre lírica e sociedade é clara, ainda que seja uma relação de confronto e negação explícitas.
xxx
Não se trata do confronto e da negação identificada por Adorno — de ordem sutil e muita vezes imperceptível numa primeira leitura. Nada disso. É que a poesia (ou qualquer arte), para estes leitores, está sempre denunciando e anunciando a falsidade, a hipocrisia, a nossa burrice. Para isso, acredito, é necessário que a arte e os artistas estejam num patamar superior, observando a coisa toda, muito pacientes e preparados para nos desmascarar. No caso brasileiro, em específico, a esta percepção se juntou uma mentalidade que é, em essência, de esquerda, anti-religiosa, supostamente igualitária, afeita às lutas sociais de minorias, etc. Não me interessa questionar esta mentalidade e seus princípios, mas sim a sua aplicação a todo e qualquer discurso. Lembro que, ainda na escola, eu e alguns amigos meus percebemos esta tendência e aí, em qualquer momento de qualquer aula, fosse após a leitura de um problema de matemática ou durante um debate sobre um poema de Álvares de Azevedo, um de nós levantava a voz e dizia, com a cara mais séria do mundo: "É uma crítica". Acho que nunca disseram que estávamos errados.
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Já na universidade, presenciei um caso que, para mim, foi particularmente chocante. Assistia a uma aula sobre Nelson Rodrigues e todos lemos uma de suas crônicas. Perdoem-me por não lembrar qual delas, mas era uma daquelas em que Nelson esculhamba um "padre de passeata" e louva o Papa e a Igreja. A turma conseguiu inverter tudo e transformar o texto numa crítica à suposta hipocrisia do Papa e da Igreja e num elogio aos padres engajados em lutas sociais. Eles não pareciam aceitar a possibilidade de um autor de literatura, homem supostamente culto e esclarecido, posicionar-se de forma diferente. A professora, na ocasião, optou por não corrigir a interpretação, que havia sido de 99% da turma. Quando ela me perguntou a respeito, fiquei calado. A correção era dever dela, não meu.
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Ontem, no entanto, era eu quem ensinava. Numa aula sobre poesia, preparada e ministrada junto com Clarisse, levamos e lemos um poema de Érico Nogueira. "A um vaso grego", que faz parte d'O livro de Scardanelli, é uma espécie de Arte Poética, uma teoria da arte acomodada de forma muito bela e eficiente em três quartetos.
xxx
Não fosse o traje, que atrai e oculta
e as máscaras de boca curva
não se suportaria ver o riso
ou a catástrofe da carne estúpida.
xxx
Um grito sem disfarce, sem a música
que o modula e faz enfim audível,
seria tão alto, tão agudo
que estouraria os vidros e os tímpanos.
xxx
Aquilo que sangra e que nos salva,
a única coisa que interessa,
quer chamemos de corpo, quer de alma,
se não veste uma capa, não se despe.
xxx
Após a primeira leitura, um silêncio e tanto. Na segunda, mais pausada, parando após cada estrofe, os alunos (quase todos, no início da aula, disseram não gostar/não entender poesia) começaram a interpretar o poema: tratava-se de uma denúncia à hipocrisia da sociedade, que veste disfarces e capas para enganar. Logo estavam falando sobre a política brasileira. A coisa ia se desenvolvendo neste sentido e eu e Clarisse, cada um por si só, tentávamos imaginar a melhor maneira de desfazer o equívoco sem, como se costuma dizer, "traumatizá-los" — já que uma correção muitas vezes é entendida como uma tentativa do professor de segurar a imaginação livre do estudante/leitor. Por sorte, uma aluna solitária, a partir de uma analogia que ela fez com o teatro (inferida a partir da primeira estrofe), levantou a mão e disse que o disfarce, neste poema, não está colocado como algo negativo, feito para encobrir a verdade, mas justamente o contrário. Mais alguns minutos e todos pareciam concordar que era um poema sobre a arte.
xxx
Durante a aula, tivemos que lidar e tentar alertá-los para outros mitos e clichês interpretativos: a dignidade e elevação da poesia, que faz com que certos temas sejam impróprios (como já escrevi aqui, há algum tempo), a busca d'Aquele Outro (como dizia Hilda Hilst), o sentimentalismo, a possibilidade infinita de interpretação, etc. A oficina, que durou cerca de 3h, acabou sendo excelente, apesar deste tipo de percalço — ou sobretudo por causa disso. Foi gratificante, por exemplo, quando eles desistiram de interpretar um poema de e.e. cummings, concordando entre si que não havia lógica nenhuma naquilo, mas que eram bons versos. Também achei curioso como adoraram Angélica Freitas, mesmo antes de esclarecermos quem era Rilke, e como conseguiram aceitar e compreender que Érico Nogueira havia nascido e escrito seu poema após Marianne Moore.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Linha 53


Abaixo, uma tradução que fiz para uma canção provençal anônima. O trovador não sofre dos mesmos vícios e fraquezas do tradutor e, por isso, não encerra rapidamente a sua composição por causa de preguiça ou imperícia — ele vai até onde é necessário. Tratando-se de uma alba tão singela, de rimas tão fáceis, é surpreendente notar, por um lado, a adequação da extensão da obra à situação trazida no poema (na qual o nascer do sol interrompe o desenlace da situação e do próprio tema amoroso) e, por outro, a quebra da unidade rítmica e métrica que há no exato verso do meio, no qual as sílabas caem de sete para três, provocando também em que lê o susto que o aviso vindo da torre provocou em quem amava ilicitamente.
666
666
Ouço um rouxinol cantar
do pôr-do-sol ao raiar
ouvimos, eu e meu par
........ sob as flores,
até que o guarda na torre
grita: "Partam, partam rápido!
Vejo a alba, o sol cálido"
lll
***
lll
Uma pequena jóia, sem dúvidas. Perdida na tradução, sem dúvidas. Então fiquem com o original.
lll
555
Quan lo rossinhols escria
ab sa par la nueg e'l dia,
yeu suy ab ma bell'amia
....... jos la flor,
tro la gaita de la tor
escria: "Drutz, al levar!
qu'ieu vey l'alba e'l jorn clar"

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Linha 52



Nas "Notas do autor" preparadas por Eduardo Sterzi para o seu livro Prosa, o poeta explica como estudou, leu e imitou "com devoção" a obra de Augusto de Campos e como, a partir destes estudos, destas leituras e destas imitações produziu a quinta seção da coletânea. A influência, portanto, é bem mais do que óbvia — daí não interessar tanto.
xxx
Mais curioso, na verdade, é a presença de dois poemas chineses e haroldianos na primeira seção de Prosa: "Amabilis insania" e "Pianissimo". Nestes casos, a influência ou, pelo menos, a conexão, não exatamente óbvia ou assumida, é com as traduções/recriações chinesas feitas por Haroldo de Campos e comentadas há alguns posts.
xxx
ouvir no vento ......... (além do vento)
xxx
.................................... o acaso absoluto
xxx
puro, puro
xxx
.................................... puro
xxx
.................................... puro
xxx
tão puro quanto
xxx
critais sonantes
pendurados
à janela
xxx
................................... (pretensão de nunca ser matéria)
xxx
Este "Pianissimo" possui um lastro oriental perceptível nos temas, nas imagens e no vocabulário. Aí está a natureza evocada em seus ventos e minerais que, quando em contato, provocam o som e a sensação no poeta e talvez no leitor (alguém lembrará da rã mergulhando no haicai de Bashô).
xxx
No que diz respeito à construção formal do poema, salta aos olhos aquilo mesmo de que Haroldo usava e abusava em suas reimaginações dos versos ideogramáticos: a utilização não-gratuita do branco e do espaço, a repetição de uma palavra significativa tanto no aspecto semântico quanto sonoro (puro) e o uso sutil de assonâncias (sendo janela/matéria a mais bem posta).
xxx
Naturalmente, não tenho a menor idéia se este poema nasceu após uma leitura das traduções de Haroldo — mas isto importa pouco ou nada: o que importa e inegavelmente existe é a relação entre as duas produções e a forma como uma sensibilidade "estrangeira" revigora a língua de chegada, que também é sempre uma língua de criação.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Linha 51


O Yankee Hotel Foxtrot é o melhor e mais representativo disco da década que está acabando ou que já acabou. Quando, em 2001, as torres caíram, os Strokes lançaram seu álbum de estréia e o White Stripes foi descoberto, o futuro parou de fazer sentido e a década deu início a um processo inacreditável, intenso e cheio de falsidade de reviver pelo menos 50 anos nos 9 ou 10 que restavam. Por isso pareceu mais interessante reabilitar coisas até então consideradas cafonas e mortas como o country e o pop sintético dos anos 80 do que perder tempo tentando inventar algo novo. Jeff Tweedy escreveu versos como
2001
"The cash machine is blue and green
For a bundle of twenties and a small service fee
I could spend three dollars and sixty-three cents
On Diet Coca-Cola and unlit cigarettes
I wonder why we listen to poets when nobody gives a fuck
How hot and sorrowful, the machine begs for luck"
2002
e transformou suas canções de estrutura country e folk em suítes de microfonia e pianos e guitarras distorcidas. Foi uma saída inteligente — ainda que, um pouco depois, a coisa tenha se transformado numa fórmula de composição que rende boas canções, mas nada de memorável. Ao que parece, Tweedy foi o único a saber equilibrar um olhar fetichista e cheio de charme no passado com uma vontade anacrônica de desvendar o que viria na sequência. Thom Yorke, por exemplo, errou com seu futurismo extremo — apesar de maravilhas como "Idioteque" e da minha fortíssima impressão (ponham na conta dos meus quinze anos), ele errou. Tweedy, por sua vez, usou a bateria eletrônica oitentista e compôs uma piada impecável como "Heavy metal drummer" — e não desistiu da canção de amor perfeita, escrevendo pelo menos duas neste disco: "I'm trying to break your heart" e "I'm the man who loves you". Existe ainda, obviamente, a representatividade do Yankee Hotel Foxtrot no processo de diluição da indústria musical que apenas começava — para quem não se lembra ou não sabe, a gravadora se recusou a lançar o disco inexplicável e tudo foi parar na internet. Mas isso, naturalmente, é caso para livros de história, não para os ouvidos, aos quais está reservado a melhor parte da coisa, que é justamente "Jesus, etc." ou "Poor places".

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Linha 50



"(...)
Amante
Porque te desprezei?
Ou com ares de rei
Porque te fiz rainha?
(...)"
555
São perguntas que, no poema "IX" do volume Da morte. Odes mínimas, Hilda Hilst se faz a respeito de como chegará a "cavalinha" para buscá-la. Ninguém precisa encerrar as dezenas de poemas que compõem a obra para saber que se tratam de perguntas meramente retóricas: ela virá com ares de rei porque a morte, nestes poemas, se transforma numa senhor mui branca e vermelha, figura cuja ausência provoca, à maneira dos trovadores, um aparente emaranhado de sons e ritmos e metros que, subitamente, se mostra também repleto de uma coesão sentimental um tanto rara.
...
A aposta que Hilda Hilst faz no que diz respeito à leitura dos seus poemas me intriga já há algum tempo. A rigor, ninguém sabe de antemão como um poeta espera que seu poema seja lido: em voz alta, em silêncio, numa determinada velocidade, com pausas calculadas, de forma ininterrupta, etc. No entanto, é óbvio que existem técnicas formais que permitem ao poeta conduzir a leitura: pontuação, métrica, quebra de versos, espaçamento, etc. Um exemplo óbvio: a presença de um enjambement num soneto. Acredito que nada disso deve ser gratuito, sob pena de tornar o poema um mero bibelô formal — a excelência está em saber conciliar a imagem (ou, vá lá, a idéia) que se cria e a forma sob a qual ela se apresenta. Pensem num caso clássico como a balada dos enforcados de Villon, especificamente o verso em que o poema e o leitor balançam junto aos falecidos:
666
"Puis çà, puis là, comme le vent varie,"
666
Não creio que seja uma idiossincrasia da minha leitura o fato destas palavras se formarem como se de fato passassem de um lado a outro, balançando-se — ainda mais se considerarmos que é justamente a palavra "vent" quem determina estas variações. Villon, que me parece um poeta tão preocupado em despedaçar suas imagens e remanejar a linguagem poética de forma a torná-la, se não fragmentária, muito mais veloz em associação — algo que o torna tanto medieval quanto moderno, alguém dirá, eu direi (exemplo maior é "Le debat du cuer et du corps de Villon", essa mistura de chiste popular e poesia) — também compõe, em muitos poemas, uma morte minimalista em sua canção e em suas variações, reservando-se o direito de brincar em outros momentos.
999
Eu não diria que Hilda Hilst está brincando nas suas "Odes mínimas", mas me surpreende como sua poesia de morte é musical — seja em momentos plácidos, seja em ocasiões dramáticas. A convivência do aspecto meramente lúdico de quem caça palavras que soem e escorram bem com o caráter de interrupção que a morte quase sempre representa é notável e, vez ou outra, se apresenta numa mesma composição, como é o caso da ode "XXI":
767
"Por que vens ao meio-dia
De cornadura galopando conchas
De cornetim à frente da minha casa
Corta-capim, corta-águas?
Descansa. Faz entrepausa.
Colhe matiz, faz nuança (...)"
767
Percebam que nem a utilização do ponto no quarto verso e da vírgula no quinto é gratuita, mas é feita em razão daquilo que é dito.
999
O que me atrai na sonoridade e na forma de Hilda Hilst é o seu caráter de exceção em meio à melhor poesia brasileira do século passado, seja da primeira ou da segunda metade. Explico assim: ela consegue ser excelente com uma carpintaria formal que, a certa altura, todos nós achávamos que estivesse morta por causa da sua suposta e irreal facilidade e da sua suposta e ainda mais irreal falsidade diante de um mundo aos pedaços. Não é fácil fazer o que Hilda Hilst fez — e o que ela fez não foi falso.

domingo, 10 de outubro de 2010

Linha 49



Os senhores me perdoem dar ao blog um terrível caráter de portal através do qual divulgo meus textos publicados em outros sítios, mas, por ora, é tudo o que posso fazer. Na Desenredos, é possível ler um ensaio que escrevi e que se chama "Equilíbrio e unidade na poética de e.e. cummings".

***

Neste ensaio, aproveito para me apoiar um pouco em Haroldo de Campos, teórico com o qual compartilho pouquíssimos pressupostos, mas tradutor ao qual agradeço o volume Escritos sobre jade, no qual "reimagina" alguns nomes da poesia clássica chinesa. Sua teoria e sua crítica, no geral, se comprometem por culpa de uma mentalidade afeita demais aos programas pouco ou nada flexíveis de sua própria vanguarda, mas é curioso notar como esta mesma teoria resulta em excelentes traduções para a poesia composta por ideogramas. Não me importa o que há de equivocado ou falacioso nos textos de Fenollosa e nas lições que Haroldo (ou Pound) tira a partir deles: quando postas em prática, as conclusões ou intuições do sinólogo americano costumam dar em grandes versões — quase sempre bem sucedidas por causa da excelente idéia de refazer a velocidade e a agilidade visual e fonética do ideograma e dos sons monossilábicos chineses por meio da supressão de termos conectivos do português, mesmo a custo de criar vocábulos grandes e estranhos como "verdeazul" (que lemos de forma muito mais rápida do que se supõe).

***

Como estudante relapso e de memória curta da língua chinesa, traduzi um poema de um verso de Han Shan, que pode ser lido aqui mesmo no Chanzos.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Linha 48


Segundo uma velha história que corre na minha família, meu avô materno, numa noite de lua cheia, teve um desentendimento com um lobisomem. Não conseguiu matá-lo, mas deixou-lhe uma marca de facão no braço esquerdo. No dia seguinte, atravessou a praça (que era o suficiente para chamar o local de Bonfim de Feira e declará-o uma cidade), entrou no bar e viu que um dos seus amigos, que bebia já de manhã, estava com um corte recente no mesmo braço esquerdo. Até onde eu sei, não falaram nada a respeito, embora meu avô gostasse de contar a história para provar que seu sobrenome Lobo não podia ser evidência de que era ele o lobisomem que andava apavorando o pessoal de Bonfim de Feira e região.

Os casos de lobisomem parecem ter diminuído, mas na última sexta-feira 13 foi publicado O Almanaque Lobisomem, revista feita sob a influência deste ser maléfico. Lá está um texto meu a respeito de Roberto Bolaño e Octavio Paz, além de poemas e ensaios de Dirceu Villa, Ricardo Domeneck, Marilia Garcia, Fabiano Calixto, Paulo Rodrigues, etc.

Quem quiser, pode fazer o download da revista aqui.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Linha 47


Li Memórias sentimentais de João Miramar e, após relê-lo, escrevi um texto a repeito — que, dias atrás, foi publicado na Desenredos. Aqui vocês podem ler meus salves e minhas ressalvas ao romance.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Linha 46


Dois poemas de Hilda Morley (1919-1998)
666
***
999
Romãs
999

Manchei meu queixo com sumo rubro-

-negro de romã

Comi romãs durante o outono

sabendo que as sementes eram símbolos

do retorno

66666666 Toda noite tão próximos da morte

Toda noite a morte vivendo conosco

66666666 Já faz tanto tempo

66666666 que vivemos morte.

Quantos meses mesmo?

Caminhei bastante junto ao rio

entardeceres sss rosto molhado sss mãos nos bolsos

olhando o pôr-do-sol e o contorno das luzes

dos barcos indo lentos

lúcidos na névoa

777777777777777777 além da miséria

inflexíveis.

ooo

***

ooo

Milhares de pássaros

000

Milhares de pássaros—voaram de

sua boca em sua morte,

sssssssssssssssssssssssssssss como você disse

sssssssssssssssssssssssssssss que voariam

e me assustaram:

ssssssssssssssssssssssss Eles ainda me assustam.

48 meses se passaram e as batidas

daquelas asas assombraram, sss encheram

666666666666666666666666666666666 este quarto

999999999999999999999999999999999 onde eu

agora sento e escrevo, o quarto

onde você morreu:

555555555555555555555555 um rufar

de asas atravessou essas paredes.

888888888888888888888888888888 Algo parou.

888888888888888888888888888888 Algo

é incapaz de seguir adiante.

888888888888888888888888888888 As asas agora

888888888888888888888888888888 estão quietas

888888888888888888888888888888 & eu vou de

888888888888888888888888888888 um lado pra outro

666666666666666666666666666666 com movimentos

tão sutis e imperceptíveis porque não posso

respirar nessa quietude

333333333333333333333333333333333 & forçar

aquele movimento

66666666666 aquelas asas enormes

voando outra vez

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Linha 45



Leiam, se puderem e quiserem, a minha contribuição ao ciclo crítico sobre a poesia de Guido Cavalcanti, outra das excelentes realizações da Modo de Usar & Co. Aqui está.

sábado, 15 de maio de 2010

Linha 44

Apenas para constar que o blog sobrevive, devo registrar o meu assombro diante de 2666. O livro, que será lançado no Brasil nos próximos dias, está solto para redefinir o enfadonho romance contemporâneo. Bolaño modifica a língua espanhola, que tantas vezes dá indícios de uma frouxidão incômoda, e faz com que ela retorne a um nível que, no século XX, foi alcançado por gente concisa como Borges e Bioy. Mas Bolaño não é conciso — sua prolixidade e seu texto caudaloso nos deixam perceber mais afinidades com Cortázar ou Macedónio Fernandez. Mas isto é apenas aparência — a força de 2666 está espalhada pelas ótimas estórias, pelos mistérios, pelo estilo, pela audácia. Sua chegada ao Brasil deve nos deixar um tanto envergonhados.

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Curiosíssima as afinidades entre Petersburgo, de Andrei Biéli, e Memórias sentimentais de João Miramar. Não sei se Oswald leu o russo antes de escrever seu romance (Petersburgo é de 1916), mas as semelhanças de estilo e idéias e técnicas chega a espantar. Mas isto é tema para um outro momento.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Linha 43



Aqui, na revista Desenredos, vocês podem ler uma breve resenha que fiz depois da leitura de Não incentivem o romance e outros ensaios, de Alfonso Berardinelli.

domingo, 7 de março de 2010

Linha 42


Forster, no começo do século XX, fez um retrato muito correto daquele sujeito que ele chamava de pseudo-erudito: o crítico ou apreciador que, diante de uma obra, checa todos os clichês do qual dispõe e escolhe o que melhor se encaixa e pronto, tudo está resolvido. Berardinelli, que é um seguidor declarado de Forster, aproveita a observação do inglês e percebe que Umberto Eco é um exemplo perfeito deste etiquetador cultural e literário. Diz Berardinelli que, para Eco, "(...) o Paraíso dantesco é, de início, glorificado como 'poesia da inteligência', depois como 'apoteose do virtual' e do 'puro software', por fim como 'odisséia triunfal no espaço' e como pílula de 'ecstasy' que tem a vantagem de não intoxicar". Daí que Eco age como se "na história não houvesse saltos, variações e descontinuidades; todas as épocas tivessem tido os mesmos recursos e as mesmas finalidades; as culturas grega, medieval, barroca, iluminista nada mais fossem do que reconfortantes antecedentes e animadoras confirmações de nossos gostos e de nossas idéias".

Jesus Cristo é o senhor.

Não tenho lido ataques mais bem direcionados e certeiros às nossas tolices culturais contemporâneas do que este. Nas salas de aula, nos debates e nas palestras que frequento, fala-se muito a respeito da noção de historicidade da obra artística — o que, a princípio, é algo louvável. No entanto, é perceptível que a própria historicidade, em 95% dos casos, é só mais uma etiqueta esterilizante, utilizada quase sempre para ressaltar vulgaridades políticas em detrimento de uma análise estética plena. O resultado acaba sendo proselitismo ideológico ou, ainda pior e mais inacreditável, partidário.

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Isto, naturalmente, não pode ter interesse algum — mas, ao mesmo tempo, não é desculpa o suficiente para que, diante de uma gesta medieval, o leitor crítico se sinta obrigado a forçar paralelos imaginários entre aquela obra e a sua própria época ou, pior, a sua vida particular. O mito da identificação, sempre em voga, tem também os seus perigos específicos. A postura de Eco é muito comum nas universidades, adotada por todos os professores que supõem lidar com idiotas em sala de aula — daí que, para que Dante seja compreendido, ele precisa ser decomposto em termos contemporâneos, de preferência cibernéticos. Trata-se de um indicativo claro da falta de consciência e, mais ainda, de imaginação histórica do leitor.

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Todorov lançou A literatura em perigo há alguns anos. Trata-se de um mea culpa breve e criticamente irrelevante. Após se tornar uma espécie de líder estruturalista, Todorov se sentiu incompreendido e partiu para a frente oposta, tentando ressaltar, nas 80 e poucas páginas deste ensaio, o valor humano da literatura. Sem o rigor dos seus métodos de análise textual, Todorov não foi muito além do óbvio. Ainda assim, é sintomático que justo ele saia a público declarando o perigo de se ensinar os métodos e não os autores. Particularmente, a minha experiência de estudante de literatura numa universidade de província não se enquadra nos termos da crítica de Todorov: jamais tentaram me ensinar métodos analíticos formais ou estruturais — ao contrário: o que impera é a mais rigorosa assistematicidade, o vale-tudo teórico. Da mesma forma, não consigo imaginar que, nas escolas secundárias brasileiras, exista algum professor introduzindo nossos adolescentes desatentos às teorias de Chklovski. Para mim, está claro que o problema formalista, no Brasil, é um falso problema — pelo menos fora dos portões de alguma universidade nobre que eu não conheço ou frequento. A má qualidade e o fracasso do ensino literário no Brasil não têm nada a ver com isso. Nosso caso não é o de um sistema de ensino que ficou emperrado nos esquemas lingüísticos que nos perseguem desde Saussure — nem sequer chegamos até ele: nosso sistema de ensino nunca chegou a se livrar dos esquemas meramente catalogadores e biográficos; nõs não vamos ao texto literário, mas tampouco chegamos ao texto crítico ou teórico. Todorov lançou A literatura em perigo há alguns anos e alguém julgou que seus pontos seriam pertinentes ao debate do ensino literário no país — é curioso perceber como os críticos e professores brasileiros se dispõem a debater o que não existe e se empolgam com isso.

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Acho curioso o fenômeno que passou a cercar a obra de Roberto Bolaño. Eu soube que sua repercussão em Portugal é uma coisa de dimensões quase inéditas — tal como já havia sido na Espanha e nos EUA. À parte a constatação óbvia de que os fenômenos literários que se tornam best-sellers não-programados se restringem a um círculo muito pequeno de pessoas (que só nos parece grande porque é grande o número de gente no planeta e a noção que temos deste fato não é exata), a fama que Bolaño alcançou ainda assim é fascinante e complexa. Seu principal romance, que é a obra fundamental para a disseminação do culto, tem mais de 1.000 páginas — algo que, por si só, afasta os leitores mais preguiçosos e menos assíduos, mas que, por outro lado, incrementa o culto de quem persiste. É muito triste quando lemos um livro por dois meses e depois disso somos obrigados a constatar e assumir a sua má qualidade. Pouca gente está disposta a tanto. Mas eu ainda não comecei a ler 2666 e não me adianto em dizer que o romance não presta — pelo contrário: a minha experiência com as obras mais curtas me faz esperar justamente o oposto. E o que existe para o leitor de Bolaño é esta noção de culminância, algo que satisfaz sobretudo aos leitores-escritores e às demais espécies de gente viciada em literatura porque lhes dá uma noção que antes de se mostrar perfeitamente global, a obra completa se mostra linear (e no rumo da imortalidade). É uma perspectiva de leitura que pode ser aplicada justamente aos autores mais cultuados que conhecemos, como Proust e Joyce, por exemplo.

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Eu lia Anna Kariênina e me veio uma certeza: escrever bem é uma preocupação verdadeira apenas para não-autores.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Linha 41


Eu não pretendo transformar o blog num amontoado de anotações sobre romances, mas é tudo o que tenho a oferecer por ora.

Vidas novas, de Ingo Schulze: acho um tanto constrangedora a atual ânsia que editores, escritores e críticos possuem pelo épico. Um dos sinais mais claros desta mania é a classificação de "épico" dada a qualquer romance que ultrapasse as quinhetas páginas. A qualidade épica, portanto, agora é questão de quantidade. Günter Grass, por exemplo, percebe um sabor épico em Ingo Schulze e, ao que parece, isso deveria ser louvado. Mas não acreditem: o que Schulze tem de melhor é banal. Não quero me meter numa destas intermináveis discussões hegelianas sobre o caráter da arte moderna, mas apenas registrar que os contos reunidos em Celular, por exemplo, são muito melhores do que o romance Vidas novas lido como um romance. Porque é possível lê-lo como uma sucessão de episódios ou de contos muito competentes, mas não como um romance com uma coesão artística que a confecção de um calhamaço exige e que pouquíssimos calhamaços alcançam. É claro que no que diz respeito ao mercado editorial, o romance, e sobretudo o romance extenso, tem um êxito que outros tipos de obra (como uma coleção de contos de duas páginas, coitada) jamais alcançariam, mas que importância artística isso poderia ter? Ainda não me deram uma justificativa plausível para que um romance seja considerado necessariamente uma obra superior a um conto ou a um único verso: tudo acaba se resumindo à capacidade de, em mais páginas, abordar mais temas ou algo deste tipo, coisa que não vejo como digna de consideração. Vidas novas é cheio de temas e de cenários e de discussões, mas isso raramente se configura de modo a dar uma noção de totalidade verdadeira à obra — a forma, durante longas páginas, acaba se afrouxando. Se querem Ingo Schulze, prefiram os contos. Sai até mais barato.

Satã é seu mestre

Everything is illuminated, de Jonathan Safran Foer: a edição da Penguin vem recheada de trechos de resenhas e artigos sobre o livro. "Bold and exuberant", "Funny, life affirming, brilliant"; Joyce Carol Oates escreveu que é "One of the most impressive novel debuts of recent years" e, fechando o ciclo, alguém avisou: "Put off your plans to write the next great American novel — Foer's beaten you to it". É adjetivo demais para uma única edição, mas o surpreendente mesmo é que quase tudo isso é verdade. Tudo bem que a noção de "great American novel" é um tanto tola, pode-se dizer isso a respeito de quase todos os romances de Philip Roth ou Thomas Pynchon, por exemplo, mas é o que menos importa: o livro de Foer está muito bem colocado entre as melhores obras recentes dos EUA, possui pontos de contato com esta tradição, embora ao mesmo tempo saiba sair dela com relativa tranquilidade. É perceptível a influência que ele sofreu da narrativa hispano-americana, por exemplo. A verdade é que se trata de um livro notável em quase todos os seus aspectos — e o principal talvez seja o da linguagem. A escrita de Sasha, um dos narradores do livro, rapaz ucraniano que conhece muito mal o inglês, é um trabalho riquíssimo, um desvirtuamento e uma renovação que, agora, depois da leitura do livro, me parecem muito pertinentes à língua inglesa. Sasha escreve de forma risível, mas é também profundamente tocante — sobretudo no trecho em que se torna, de repente, um James Joyce ou, mais precisamente, uma Molly Bloom. Em alguns momentos (trechos sobretudo amorosos) o romance tende para o sentimentalismo, que sempre é incômodo, mas ele mostra uma sensibilidade contida e certeira ao tratar, por exemplo, da dor e do absurdo nos ataques nazistas aos povoados judeus da Ucrânia. Além disso, o humor consegue até mesmo diminuir o problema do exagero sentimental — embora ele mesmo também incorra em outro defeito, que se evidencia quando o humor se excede e, naturalmente, perde a graça. Mas Foer é um bom autor desde a sua estréia. Algo raro.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Linha 40



Sem interesse para ler o que deveria ser lido, faço aqui anotações breves e descompromissadas sobre três contemporâneos lidos (rapidamente, dois em tradução) nesta primeira semana de 2010.

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1. Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares: tive duas impressões distintas do livro. Enquanto li, achei-o no máximo razoável. Terminada a leitura e passado um dia, achei-o no mínimo bom. No meu idiossincrático diário de leituras, anotei: "Me incomodei com certas partes constrangedoras, exageradas (...)" — devo dizer que o exagero, no caso, está quase sempre relacionado à loucura de certos personagens. É um perigo comum que resulta em escritura banal. Entenda-se, portanto, que o exagero não é uma questão propriamente de pretensão: o objeto mais pretensioso do livro (um personagem que procura traçar um gráfico do "horror" na história da humanidade para, por fim, prever todos os massacres vindouros — dando inclusive o nome dos povos que serão submetidos e daqueles que irão massacrar) é, sem dúvidas, o ponto alto do romance — mesmo que baseado num disparate. A loucura exagerada é aquela que está internada e que aliena a escritura em aspectos menores revestidos de uma suposta clarividência ou simbologia que se revela, quase sempre, banal. No entanto, sigo copiando o meu diário de leitura "(...) mas a impressão geral do livro é boa. É poderoso".

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2. Desonra, de J.M. Coetzee: No meu diário, fui breve: "Achei-o com pouco estilo, embora sentimentalmente poderoso". Enquanto lia o romance, na quente e barulhenta biblioteca da universidade, minha companheira de cabine interrompeu a sua leitura do Aspectos do Romance, de Forster, e me mostrou um trecho muito bem humorado a respeito da "história" (com h minúsculo) como parte constitutiva do romance. Aquele trecho deu-se muito bem com o que eu começava a pensar de Desonra. Sua história é tão boa — e tão bem contada — que me esforcei para terminar o romance no mesmo dia — mas temo que o romance realmente tenha terminado naquele dia, para sempre. A violência, muito salientada em resenhas e outras considerações, nem chega a ser o ponto central do romance: muito mais desconcertante, para mim, é a visita de Lurie à cristã e sombria família da sua "vítima", já na parte final do livro. Numa comparação, que só se justifica nesse post, pode-se dizer que não há, em Desonra, tantas falhas e bobagens quanto em Jerusalém — no entanto, é notável que o autor português trabalha num formato mais ambicioso que, pelo menos por ora, me agrada mais. O "pouco estilo" a que me referi, obviamente, é menos uma questão de escrever de qualquer maneira, sem preocupação estilística, do que uma observação que diz respeito à dificuldade de diferenciar a escrita de Coetzee daquilo que, talvez desde Hemingway (esse professor ambíguo), se tornou regra para a maior parte dos prosadores.

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3. Austerlitz, de W.G. Sebald: De início, deu-me sono. Posso confessá-lo porque, ao fim, conclui que é, ao lado de Roberto Bolaño e, mais abaixo, Ricardo Piglia, o contemporâneo que mais me chamou a atenção. Sebald, ao contrário de Coetzee (permitam-me essas comparações gratuitas), é dono de um estilo próprio, denso, ao qual é difícil se acostumar. A meu ver, exemplifica muito bem a possibilidade de unir, à história contada, particularidades estilísticas que não são necessariamente macaqueadas de Joyce ou de qualquer outro figurão modernista. Isso porque Austerlitz conta uma história impressionante e tem um enredo primoroso — mas ambos estão a serviço ou sendo servidos por uma voz narrativa original. Essa voz é perturbada, sujeita a lapsos de memória, amparada em fotografias (a maioria muito estranha) e envolvida nos escombros e traumas que são tanto da Europa quanto de sua biografia. Nesse processo, é importante notar, ainda, que se trata de uma espécie de história explicitamente "terceirizada": a todo momento o narrador escreve "disse Vera, disse Austerlitz" e, agora, é ele quem o diz, escrevendo. Ricardo Piglia usa um processo idêntico no seu Respiración Artificial — para tratar, em certa medida, do mesmo tema e trauma europeus. Sebald, ao seu modo, preenchendo seu romance de considerações sobre arquitetura e de delírios do seu personagem, escreve para exacerbar a desconfiança diante do que nos é contado justamente nesse tempo de precisão informativa. Procedimento curioso.