Sem interesse para ler o que deveria ser lido, faço aqui anotações breves e descompromissadas sobre três contemporâneos lidos (rapidamente, dois em tradução) nesta primeira semana de 2010.
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1. Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares: tive duas impressões distintas do livro. Enquanto li, achei-o no máximo razoável. Terminada a leitura e passado um dia, achei-o no mínimo bom. No meu idiossincrático diário de leituras, anotei: "Me incomodei com certas partes constrangedoras, exageradas (...)" — devo dizer que o exagero, no caso, está quase sempre relacionado à loucura de certos personagens. É um perigo comum que resulta em escritura banal. Entenda-se, portanto, que o exagero não é uma questão propriamente de pretensão: o objeto mais pretensioso do livro (um personagem que procura traçar um gráfico do "horror" na história da humanidade para, por fim, prever todos os massacres vindouros — dando inclusive o nome dos povos que serão submetidos e daqueles que irão massacrar) é, sem dúvidas, o ponto alto do romance — mesmo que baseado num disparate. A loucura exagerada é aquela que está internada e que aliena a escritura em aspectos menores revestidos de uma suposta clarividência ou simbologia que se revela, quase sempre, banal. No entanto, sigo copiando o meu diário de leitura "(...) mas a impressão geral do livro é boa. É poderoso".
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2. Desonra, de J.M. Coetzee: No meu diário, fui breve: "Achei-o com pouco estilo, embora sentimentalmente poderoso". Enquanto lia o romance, na quente e barulhenta biblioteca da universidade, minha companheira de cabine interrompeu a sua leitura do Aspectos do Romance, de Forster, e me mostrou um trecho muito bem humorado a respeito da "história" (com h minúsculo) como parte constitutiva do romance. Aquele trecho deu-se muito bem com o que eu começava a pensar de Desonra. Sua história é tão boa — e tão bem contada — que me esforcei para terminar o romance no mesmo dia — mas temo que o romance realmente tenha terminado naquele dia, para sempre. A violência, muito salientada em resenhas e outras considerações, nem chega a ser o ponto central do romance: muito mais desconcertante, para mim, é a visita de Lurie à cristã e sombria família da sua "vítima", já na parte final do livro. Numa comparação, que só se justifica nesse post, pode-se dizer que não há, em Desonra, tantas falhas e bobagens quanto em Jerusalém — no entanto, é notável que o autor português trabalha num formato mais ambicioso que, pelo menos por ora, me agrada mais. O "pouco estilo" a que me referi, obviamente, é menos uma questão de escrever de qualquer maneira, sem preocupação estilística, do que uma observação que diz respeito à dificuldade de diferenciar a escrita de Coetzee daquilo que, talvez desde Hemingway (esse professor ambíguo), se tornou regra para a maior parte dos prosadores.
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3. Austerlitz, de W.G. Sebald: De início, deu-me sono. Posso confessá-lo porque, ao fim, conclui que é, ao lado de Roberto Bolaño e, mais abaixo, Ricardo Piglia, o contemporâneo que mais me chamou a atenção. Sebald, ao contrário de Coetzee (permitam-me essas comparações gratuitas), é dono de um estilo próprio, denso, ao qual é difícil se acostumar. A meu ver, exemplifica muito bem a possibilidade de unir, à história contada, particularidades estilísticas que não são necessariamente macaqueadas de Joyce ou de qualquer outro figurão modernista. Isso porque Austerlitz conta uma história impressionante e tem um enredo primoroso — mas ambos estão a serviço ou sendo servidos por uma voz narrativa original. Essa voz é perturbada, sujeita a lapsos de memória, amparada em fotografias (a maioria muito estranha) e envolvida nos escombros e traumas que são tanto da Europa quanto de sua biografia. Nesse processo, é importante notar, ainda, que se trata de uma espécie de história explicitamente "terceirizada": a todo momento o narrador escreve "disse Vera, disse Austerlitz" e, agora, é ele quem o diz, escrevendo. Ricardo Piglia usa um processo idêntico no seu Respiración Artificial — para tratar, em certa medida, do mesmo tema e trauma europeus. Sebald, ao seu modo, preenchendo seu romance de considerações sobre arquitetura e de delírios do seu personagem, escreve para exacerbar a desconfiança diante do que nos é contado justamente nesse tempo de precisão informativa. Procedimento curioso.