quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Linha 60




Começo, neste post, a publicar um ensaio meu a respeito de William Carlos Williams. Escrevi a coisa há uns dois anos, quando cursava a disciplina Literatura Norte-americana II, e vivia com uma bruta raiva do Hugo Friedrich. Que passou, obviamente — mas que não se tornou condescendência: falar que apesar disso ou daquilo, o trabalho de Friedrich (e de qualquer outro teórico numa tentativa de reunir algo como a "poesia moderna" sob determinados pressupotos muito estreitos) tem o seu valor é insistir no óbvio. Continuo achando que o melhor é procurar e debater os erros dessas tentativas e da tentativa de Friedrich em particular. Mas, enfim, segue abaixo a primeira parte do ensaio e logo as demais aparecem.
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Grande parte dos estudos e das teorias que buscaram definir (ou, ao menos, discernir) as fronteiras e os limites da poesia moderna parecem incorrer, em maior ou menor grau, nos equívocos da parcialidade, seja ela histórica ou interpretativa. Dessa forma, são ignorados poetas fundamentais que, na primeira metade do século XX, produziram obras de relevância inquestionável, mas que não se enquadram nos parâmetros previamente estipulados para uma obra modernista; e dessa mesma forma alguns poetas têm seus textos deturpados por interpretações comprometidas — subterfúgio cuja utilização é facilitada pela típica obscuridade da arte moderna, algumas vezes confundida com a possibilidade infinita e anárquica de apreensão e interpretação. William Carlos Williams (1883-1963) teve a sua poesia diminuída e desconfigurada por esses dois fatores. Os preconceitos e os mal-entendidos dos quais foi vítima podem ser resumidos na informação dada por José Paulo Paes no seu "A arte de ficar em casa": citando Thom Gunn, o poeta, crítico e tradutor brasileiro afirma que "na Inglaterra" a poesia de Williams, por um bom tempo, "foi considerada algo assim como uma oleogravura meio kitsch de 'casas de tijolos vermelhos, esposas suburbanas, alegres interiores padronizados'".
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Nascido em Rutherford, Nova Jersey, o poeta possui uma biografia relativamente desinteressante quando comparada à de alguns contemporâneos seus (tome-se Ezra Pound e T.S. Eliot — eles e seus posicionamentos políticos questionáveis e polêmicos, por exemplo — como parâmetros): não se expatriou e não se tornou figura central nos debates artísticos na Europa. Parece-me justo, portanto, que essa opção pela vida nos Estados Unidos seja levada em conta ao analisar a sua obra: não se trata de mera curiosidade biográfica, sobretudo se a compararmos com o exílio de Pound e Eliot e os seus respectivos contatos e envolvimentos com culturas e linguagens alheias, desenvolvidas a partir de uma espécie de desprezo ou descrença relativos à tradição literária norte-americana, notadamente recente quando comparada à européia e, no caso específico de Pound, também chinesa. Não por acaso, Williams escreveu que "Há uma fonte, na América, para tudo quanto pensamos ou fazemos." Tal opção, ao longo de sua obra, desenvolve-se em todas as esferas e níveis possíveis do poema: vocabulário, tema, sintaxe e ritmo remetem a essa aludida fonte norte-americana, criando uma poesia com data e local específicos — o que não significa uma poesia passível de se tornar datada ou insignificante quando transplantada a outras paragens. No entanto, mais do que recorrer ao lugar-comum que refere a criação do universal através do local, uma verdade tornada por demais óbvia e já consolidada pela crítica, interessa-me considerar a longevidade de Williams por outros meios, quais sejam, a intrincada relação entre localismo e internacionalismo que acredito existir em sua obra, como ponto inicial, e a sua grande influência na poesia norte-americana da segunda metade do século XX enquanto demonstração dessa longevidade.
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Embora considere acertada a observação de Alfonso Berardinelli, segundo a qual "Cosmopolitismo e provincianismo são desde há muito tempo categorias sobretudo valorativas", não é como tentativa de defender a modernidade e a qualidade dos escritos de Williams que apresento, neste ensaio, evidências que considero relativizar a consideração do poeta de Nova Jersey como um artista provinciano — embora seja óbvia a sua condição de cidadão da provinciana Rutherford, o que, por si só, não implica no fechamento de sua visão e de sua prática da poesia às influências estrangeiras ao universo humano e artístico da pequena cidade do interior onde nasceu e viveu . Como o próprio afirma num verso de Patterson, "the province of the poem is the world".
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De início, considere-se a estreita relação entre Williams e Pound, aqui observado enquanto representante do Imagismo, movimento que, de forma alguma, pode-se considerar como estrita ou genuinamente norte-americano: seu desenvolvimento envolve, por exemplo, a poesia da Grã-Bretanha e mesmo as suas origens podem conduzir ao verso japonês do haiku, representativo da concisão e da imagética buscadas pelo movimento. No período imediatamente posterior, Williams ainda se envolveria com os chamados poetas objectivists, uma frente vanguardista que, embora predominantemente americana, não se afasta do europeísmo da própria idéia de vanguarda. Um suposto provincianismo de Williams, parece-me, não lhe permitiria adotar essa postura anti-conservadora e pluralista — e aqui não se acredite na referência ao conservadorismo como critério valorativo, confundindo-o com reacionarismo (não se trata de aplicar conotações vulgares da política à arte). Dessa forma, percebe-se que a apreciação de Williams enquanto autor de província é uma exacerbação tão parcial quanto aquela que valoriza estritamente o cosmopolitismo das vanguardas. Em ambas as frentes, a obra não é considerada em todo o seu peso estético e histórico: por um lado, a vanguarda aparece puramente anti-geográfica e anti-histórica, desfeita das suas inevitáveis origens locais e nacionais (considere-se, a título de exemplo, o futurismo italiano e seu caminho gradual ao fascismo ou o patriotismo francês de Apollinaire, um homem sem pátria) e, por outro, poetas como Williams e romancistas como Faulkner têm diminuídas as suas opções estéticas estrangeiras e potencializados os seus temas e o seu vocabulário locais. Não por acaso, Berardinelli escreve que "os dois escritores norte-americanos mais fiéis às suas províncias, os mais circunstanciais, aqueles que mais contribuíram para a construção da identidade literária norte-america no século XX — William Faulkner e William Carlos Williams — são os mais universais e, enfim, mais genuinamente americanos do que todos os Pound e Stein."
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A fidelidade de Faulkner à sua província sulista, no entanto, não o impediu de viajar a Paris — em pleno auge da efervescência cultural européia concentrada na França, assim como fizeram os não menos americanos Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway — e, conhecendo os procedimentos de Joyce, adaptá-los às necessidades de suas paisagens e dos seus tipos humanos. A rigor, o próprio Joyce já fizera transferência semelhante com a técnica conhecida através de Édouard Dujardin, transformando-se no caso mais exemplar da união entre a representação provinciana por meio de métodos estilísticos àquela altura já internacionais. Para além disso, será sempre necessário referir que a fidelidade "às suas províncias", sobretudo no caso dos romancistas citados, jamais se confundiu com a produção de obras laudatórias, concentrando-se, pelo contrário, numa espécie de desmascaramento da mediocridade e da mesquinhez locais — a Dublin de Joyce e a Yoknapatawpha de Faulkner conheceram pouca ou nenhuma simpatia em relação à suas fraquezas, algo que não ocorre de maneira tão aguda na poesia de Williams e reflete um sentido humano de simpatia e compaixão que tratarei mais adiante.