quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Linha 39


Senhores, senhoras,


Não sei quantos ainda se arriscam a entrar nesse blog após tanto tempo sem atualização ou sinal de vida. Aos que persistem, aviso que a inatividade se deve, mais uma vez, aos intermináveis assuntos de ordem acadêmica. A maioria deles, no entanto, pode acabar vindo parar aqui. Ando envolvido numa leitura mais atenta das Memórias sentimentais de João Miramar e adiando uma releitura de Eça que me será bastante penosa. No mais, empolguei-me com um vagaroso processo de leitura/crítica/pesquisa/etc. do Finnegans Wake e com um estudo da poesia de cummings e a composição de um ensaio a respeito (que apresentei no I Simpósio Feirense de Estudos em Literatura Brasileira).


Então, aviso: o blog não morreu, volta em breve. E bom fim de ano.

domingo, 29 de novembro de 2009

Linha 38



O poema 1 de Hanshan.


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1.

Sempre na serra (não sei de homens, nuvens claras me cobrem) sempre só.

sábado, 14 de novembro de 2009

Linha 37


Não sou conhecedor ou admirador profundo da poesia de Borges. E talvez eu devesse me envergonhar por isso. Mas, enquanto vou adiando esse contato maior com seus versos, leio suas seis lições norte-americanas lançadas sob o título de Esse ofício do verso. Lembro que, quando frequentei um efêmero grupo de discussão sobre o pensamento de Freud, ríamos do artifício retórico mais recorrente na obra do vienense: declarar, sempre, que tal ou tal texto não passava de uma especulação em estado inicial. Seria possível dizer que Freud jamais concluiu alguma coisa: tudo o que fez foi ensaiar. Talvez seja inútil se perguntar se tal postura nasce de uma humildade real. Ela é constituinte do texto de Freud — está lá para ser considerada enquanto tal. Mas já não ouso entrar em conversas psicanalíticas. Retorno para o literato. Poucos autores se diminuem tanto quanto Borges. Ao longo das suas seis palestras, o argentino parte sempre do pressuposto de que fala para uma platéia que o supera em conhecimento: "Tenho muito gosto pelas etimologias, e gostaria de relembrá-los (pois tenho certeza de que conhecem muito mais essas coisas do que eu) de algumas bastante curiosas". Esteja falando a respeito de latim ou de inglês medieval, Borges sempre sabe menos. Além disso, desdenha livremente de seus próprios poemas e contos (sobre "El imortal", escreve que, ao relê-lo, achou-o "uma chatice e tanto"). Acredito que tal postura seja condizente com seu credo poético e literário segundo o qual, na construção e realização de uma obra, só o leitor pode se satisfazer de forma plena. Lembro-me que, ao tomar contato com a produção ensaística de Borges, o que mais me desconcertava era a sua tendência para menosprezar teorias estéticas ou literárias. Aquilo, para mim, soava como um incompreensível eco de romantismo e misticismo que, a julgar pela imagem que eu construíra de Borges antes de ler Borges, não era condizente com o autor rigoroso e ascético que eu imaginava que ele fosse. Àquela época, como se pode perceber, eu ignorava as suas magias. Se há uma estética borgiana, só se pode chamá-la de estética do imanifesto. É curiosa na medida em que parte de um princípio platônico (do belo atemporal, do belo ideal) para assentar num método oriental, essencialmente taoísta, na apreensão e consideração desse belo. Borges não acredita na possibilidade de divisar e definir o belo. Ele apenas o aceita enquanto princípio universal passível de reconhecimento pela sensibilidade. Não está sendo original ao pensar dessa forma (e, naturalmente, declara sua não-originalidade com regozijo). Laozi, alguns milênios antes, escrevera: "conhecer o que faz o belo belo 11111 eis o feio!" Entendendo isso, entende-se o desdém que demonstra a respeito de si mesmo: sua história da literatura é como a história da filosofia indiana, à qual sempre alude: tudo é contemporâneo, o que "Simboliza a idéia de que se acredita na filosofia ou que se acredita na poesia — que as coisas outrora belas podem continuar sendo belas". Borges declara que fez uma leitura de Benedetto Croce e que isso de nada lhe serviu. Difícil é dizer, no entanto, até que ponto essa sua postura e esse seu credo revelam um leitor puramente comprometido com uma visão hedonista da leitura ou um autor com plena consciência dos artifícios retóricos que domina — e entre os quais se destaca essa anulação gradual de um autor retórico e possuidor dos segredos da criação.

domingo, 18 de outubro de 2009

Linha 36


Gosto de "O século sério", ensaio de Franco Moretti. Meu posicionamento é claro: estou contra a sua premissa básica. Mas ainda assim aprecio o seu texto. Talvez eu não devesse resumir, simplificar e, de certa forma, assassinar o ensaio, mas é necessário: Moretti está preocupado em desvendar causa e efeito da mediocridade reinante no grande romance realista europeu. É óbvio que aqui se fala da mediocridade cotidiana, da neutralidade narrativa e das centenas de páginas desses romances que, a bem dizer, nada acrescentam ao desenrolar das tramas (impressionantes 97% em Orgulho e preconceito, calcula Moretti). Nessa investigação, o crítico italiano se desloca em dois níveis: 1) parte de duas categorias textuais propostas por Barthes e faz uma análise estrutural irretocável e 2) especula sobre a relação entre essa nova forma de narrar (e de ler) e a consolidação de uma burguesia rica, conservadora e cheia de "tempo livre". Não seria novidade afirmar que o ponto 1 está claramente evidenciado por meio de exemplos muito bem colocados e que o ponto 2 não possui evidência possível. Claro: mais do que legítimo, é até mesmo necessário especular sobre as relações entre ideologia e forma — no entanto, que fazer desse risco tão constante que é a perda de uma medida justa (seja para o lado dos formalismos ou dos sociologismos)?


Moretti, por exemplo, ao refletir sobre a utilização do discurso indireto livre em Orgulho e Preconceito, escreve: "'His understanding and temper, though unlike her own, would have answered all her whises'... Quem fala, aqui? Elizabeth? Austen? Talvez nem uma nem outra, mas a voz do contrato social que se obteve: a voz do indivíduo socializado. O compromisso foi obtido — e, ainda uma vez, sob o signo da seriedade: sem mais os dramas nem as burlas das narrações didáticas. Um pouco de ironia, um pouco de melancolia, e assim por diante". Logo em seguida, Moretti destaca Austen de entre os romancistas do período: ela utiliza esse discurso porque, tendo começado a escrever 10 anos mais tarde que seus contemporâneos, já não teme a revolução (já não escreve romances antijacobinos) e já não acredita na necessidade de doutrinar através do romance; descrê da sua função didática, do seu papel na conservação de uma ordem. Austen, portanto, é conservadora — porém destemida ao ponto de deixar que seus personagens falem livremente. Surge aqui, então, a idéia central do ensaio de Moretti: esse personagem, que se supõe que fale livremente, fala em nome de uma ideologia. É justamente esse o "indivíduo socializado" — que só viria a se consolidar com Flaubert: "(...) personagem e narrador perdem suas vozes distintas e são suplantados um pouco em toda parte pelo tom abstrato e sempre igual da ideologia corrente".


"O século sério" é puro engenho. Um ensaio exemplar, de fato: bem articulado, erudito, bem amparado por todos os lados. Não acredito que seja possível negar observações feitas a respeito das particularidades temporais de certas formas: é óbvio que não se poderia escrever, hoje, Dom Quixote — assim como um contemporâneo de Cervantes não escreveria um romance de Gertrude Stein. Moretti potencializa esse pressuposto: são 10 anos para que Austen revolucione o romance inglês e europeu. Nesses 10 anos, o que possibilita a revolução formal é o arrefecimento dos ânimos da revolução social. Mas é necessário dizer: acho perfeitamente justificável que um leitor peça a palavra e, tendo-a, ria dessa explicação. Ria, ainda que admire a análise estrutural feita anteriormente, que agradeça a coleção de exemplos e explicações tiradas dos romances. A justificativa de Moretti pressupõe determinado posicionamento teórico do leitor para a aceitação devida — quase uma empatia.


Subordinar a escrita de Austen (ou de qualquer outro artista) aos programas ideológicos de sua época sempre parecerá uma simplificação desnecessária. Os mecanismos culturais são inegáveis, mas a sua própria dinâmica histórica comprova a sua maleabilidade e, mais, a sua fraqueza. A grande obra é feita quase sempre a partir da ruptura (e não é a própria escritora inglesa evocada por Moretti — e justo da forma como é evocada por Moretti — uma prova irrefutável?). Ainda que se aponte a divisão entre baixa e alta cultura (essa última restrita a pouquíssimos), será estranho pensar, por exemplo, em Dostoievski ou Austen como produtos de uma ideologia dominante da época. Entenda-se: eu acredito que os dois são autores profundamente ligados à ideologia e à cultura dominante do século XIX, mas essa ligação é muito mais ativa do que passiva, muito mais construída através dos contatos de suas sensibilidades e intelectualidades com esse discurso consolidado do que por ele determinada.


A teoria estética de Adorno me parece pertinente nesse ponto. O temido alemão escreveu que "A arte é a antítese social da sociedade, e não deve imediatamente deduzir-se desta." Esse caráter de resistência que Adorno percebe na obra de arte, no entanto, em momento algum se confunde com um ideal despropositado de arte pura ou de arte pela arte. Essa confusão, naturalmente, seria uma contradição séria demais, que faria ruir todo o pensamento de Adorno. Acredito que a idéia de tensão é fundamental, sobretudo em pontos e momentos decisivos para modificações específicas na arte: assim com a poesia de Baudelaire ("A verdade que encerra a obra de Baudelaire não pode ser extraída dessa ou daquela confissão, nem de tal ou qual verso evidente, mas apenas das tensões, para as quais a chave mais segura são suas contradições" escreveu Michael Hamburguer), a música de Stravinsky, a pintura de Matisse ou o romance de Jane Austen e Flaubert. Daí, então, a minha desconfiança diante do caráter pacífico que as conclusões de Moretti sobre o preenchimento e o discurso indireto livre encerram.


Mas, já que estou longe de ser um estudioso de Jane Austen e do romance realista do século XIX, não vou me arriscar a oferecer saídas e/ou opções ligeiras e toscas às conclusões de Franco Moretti — e nem seria o caso de fazer isso: o que me interessa aqui é mais a percepção de que os estudos literários quase sempre tendem a se polarizar, tornando-se uma espécie de futebol intelectual que, desgraça maior, nem tem o prazer do gol. Os formalistas buscaram uma ciência e uma exatidão que o leitor, no geral, ignora — e por motivos óbvios e justificáveis. Moretti paga seu tributo aos formalismos e estruturalismos que tanto nos assombraram, mas também demarca muito claramente o terreno ideológico do seu trabalho. Não creio que se trate necessariamente de ecletismo ou falta de critério, mas da noção de que delimitar é quase sempre distorcer. Claro que, pelo que escrevi nos parágrafos anteriores, eu acredito que, através do seu método de trabalho, também houve uma distorção — mas é por isso que, acredito, a crítica precisa ser observada. A crítica só sobrevive sob o jugo da crítica. Ou então cai no registro de opiniões e perde o sentido.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Linha 35



Algumas anotações ligeiras e descompromissadas sobre uma prosa e uma poesia recentes.

El Entenado, de Juan José Saer: um diálogo com os relatos de viagens de descobrimentos e explorações à América me pareceria, a princípio, extremamente entediante. Óbvio que errei. O livro de Saer consegue a proeza de equilibrar as diversas possibilidades de interesse do leitor: lemos avidamente para saber o desfecho da história do europeu perdido em meio aos canibais; lemos avidamente também para acompanhar o desenvolvimento de uma linha de pensamento filosófico que rasteja ao longo das memórias do europeu que se perdeu em meio aos canibais e voltou transformado à Europa; lemos avidamente, ainda, para não perder esse fio estilístico tão nítido que se alonga pelo livro, um traço de inegável alcance poético e uma marca de narrativa oral.

O narrador de Saer trata bem o seu idioma para especular sobre o idioma alheio. À maneira de Borges (sempre ele?), está concentrado na função daquilo que narra e numa curiosa língua que não lhe pertence e que só compreende parcialmente. Há uma desconfiança generalizada diante do domínio de um idioma. A certa altura, o narrador esclarece (?): "Lo desconocido es una abstración; lo conocido, un desierto; pero lo conocido a medias, lo vislumbrado, es el lugar perfecto para hacer ondular deseo y alucinación" — como a dizer que, dessa maneira, restam ainda algumas opções para a criação. Há quem se lance ao mágico e há quem (e essa parece ser a opção de Saer) prefira aquilo que é real, ainda que parcialmente ignorado.


Lawrence Ferlinghetti: conhecia Ferlinghetti de nome e de lenda. A primeira e brevíssima leitura, feita ainda na livraria da rodoviária de Salvador, me surpreendeu. Eu havia viajado com uma coletânea do e.e. cummings na mochila e, de início, achei que voltava com duas coletâneas de e.e. cummings na mochila — algo que, como se pode imaginar, não me incomodou. Sobretudo os poemas líricos de Ferlinghetti me passavam essa impressão: "(...) I saw Vaucluse again/ in a summer of sauterelles/ its fountains full of petals/ and its river thrown down/ through all the burnt places/ of that almond world/ (...)/ but couples going nude into the sad water/ in the profound lasciviousness of spring/ in an algebra of lyricism/ wich I am still deciphering". A influência é inegável: lirismo e natureza são indissociáveis. As distinções entre Ferlinghetti e cummings, ainda que, por ora, eu as permaneça decifrando, já se tornaram perceptíveis nas leituras seguintes: o retalhamento linguístico do poeta beat é menor no nível sintático ou mesmo inexistente no âmbito morfológico.

Suas "Oral Messages", feitas para a leitura com acompanhamento jazzístico, interessam sobretudo na medida em que indicam caminhos de composição seguidos por muitos poetas e músicos dos períodos posteriores. A extensão dos poemas termina exigindo os ganchos que nos acostumamos a ouvir nas canções de Bob Dylan ou Patti Smith, por exemplo — algo que não chega a ser um refrão tal como o conhecemos das canções dos trovadores medievais ou dos compositores mais ordinários da música popular. O poema é composto por meio de um processo constante de reiteração de um tema específico. É o mesmo procedimento da improvisação do jazz. "I am waiting" repete "I am waiting" e "Dog" repete "The dog trots freely in the street". Mas é "Autobiography" que parece mais simbólica desse processo: utiliza o pronome "I" e uma variação delimitada de verbos conjugados no passado ("saw", "have seen", "had", "thought", etc.) indicando experiências diversas — e, vez ou outra, surge um taxativo "I am", representação final desse eu-lírico repleto de visões e vivências. Algo muito semelhante foi feito por Bob Dylan em "A hard rain's a-gonna fall", pra citar apenas um texto que se aproxima. Importante mesmo, no entanto, é que eu permaneci lendo Lawrence Ferlinghetti pelos dias seguintes e assim continuo.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Linha 34



Um dos motivos da minha ausência prolongada, se é que a alguém isso interessa, foi uma quantidade surpreendente e inesperada de trabalhos acadêmicos. Acho justo, portanto, que alguns desses trabalhos (os menos obtusos, aqueles que não são feitos simplesmente na base de repetição basbaque para posterior aprovação) acabem sendo publicados aqui. O semestre foi bom porque voltei a especular sobre Machado de Assis. Como resultado, posto aqui dois textos menores em tamanho e pretensão: interpretações pouco comprometidas de "Missa do galo" e de "O espelho". Por fim, um ensaio mais extenso sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas.


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Questões de estilo


É possível afirmar que ninguém lê Machado de Assis. Que, para conhecê-lo, a releitura, mais do que uma opção, é expediente inevitável. Lê-lo e abandoná-lo é contentar-se com uma impressão forte, mas pouco segura. Isso se deve, na maior parte das vezes, à sua sutileza. É verdade que, vez ou outra, sobretudo em contos mais pesados e longos como "O alienista", a releitura se impõe por conta da densidade de suas idéias e da profusão de temas que abarca. Mas é a sutileza sua marca maior: ela está, por exemplo, em "Um homem célebre", em "Uns braços" e, sobretudo, em "Missa do galo". Pois ser sutil é também isso: escrever um conto como se o escrevesse para que não haja interpretação, para que o leitor e o crítico se restrinjam às paráfrases e aos resumos do enredo. Não pela obra ser desinteressante ou vazia, mas por se configurar como insondável. Debruçar-se sobre as interpretações de "Missa do galo" só pode ser uma atividade demorada e exaustiva: existem possibilidades sociais, psicanalíticas, religiosas e mais outras tantas. Caberá ao leitor, mais do que escolher uma delas e descansar como se tudo houvesse sido desvendado, compreender a grandiosidade de Machado justamente na sua capacidade de sugestão. Nesse sentido, "Missa do galo" é Dom Casmurro: é a obra da discussão perene, da inconclusão.

O conto foi editado em 1889. Àquela altura, Edgar Allan Poe já estava morto há meio século. Tchekhov e Maupassant ainda publicavam seus contos. O formato da narrativa curta, a partir das obras do norte-americano, do russo e do francês ganhava contornos definitivos, formando regras e receitas: o conto será conciso e justo; nele, nada pode sobrar, nada pode faltar; alguns seguirão Poe em seus jogos e enigmas intelectuais; outros serão certeiros e contundentes como Maupassant; alguns, ainda, adotarão a leveza e a inconclusão de Tchekhov. A contística de Machado não se prende a uma única tendência, mas "Missa do galo" filia-se claramente à linha tchekhoviana. Mas, explique-se: o termo é tchekhoviana por contingências políticas, econômicas e idiomáticas que, embora não venham ao caso, existem e são irrefutáveis. Pois, assim como Poe, Tchekhov e Maupassant, Machado é inventor: seu texto curto situa-se no mesmo nível das referências estrangeiras aqui citadas. No entanto, "invenção", no que concerne à literatura, é tema por demais espinhoso para que seja tratado nesse breve texto. Fique-se, portanto, com uma variante da afirmação feita: assim como Poe, do mesmo modo que Tchekhov e tal qual Maupassant, Machado é bom.

Uma análise da qualidade estética do conto deve iniciar-se, nesse caso, por considerações estilísticas. "Missa do galo" é prosa clara, demarcada aqui e ali por um coloquialismo de época que, à nossa leitura atual, soa humorística, de um humor leve e agradável, sobretudo nos diálogos evocados pelo narrador:

"- Não! qual! Acordei por acordar."

ou

"- Que velha o quê, D. Conceição?"

Não há obscuridade no estilo de Machado. Sabe-se perfeitamente aquilo que o narrador escreve: não resta dúvida sobre a situação, sobre aquilo que é dito e aquilo que é feito. No entanto, ao lado de toda essa simplicidade e dessa clareza, crescem as dúvidas acerca do que não é dito e do que não é feito — o conto se funda naquilo que é latente ou possível. Daí a profusão de interpretações: se Machado não determina, o leitor está livre para fazer suas próprias associações e desvendar o motivo que leva o narrador, após tantos anos, a lembrar-se, ainda com espanto e curiosidade, do acontecimento daquela noite de natal. O fato de ser um conto feito de memória, aliás, também é importante: com tantos anos passados, há que se desconfiar das impressões e das reminiscências de quem narra — sobretudo se considerarmos, como o próprio Nogueira faz questão de anotar, que muito daquilo fica à conta dos seus dezessete anos.

À suposta banalidade da situação e das conversas entabuladas durante o conto, chegam também certo panorama e certa ambientação que não se restringem à sala onde conversam Conceição e o nosso narrador: recorde-se, por ora, do marido infiel e do iminente retorno de Nogueira à roça. Os personagens não estão suspensos e, mesmo entre essas duas figuras centrais, que se encontram num momento de tanta intimidade e solidão, a condição anterior se impõe. Tome-se o seguinte exemplo: o epíteto de "santa", dado à Conceição, parece vez ou outra nublar as possibilidades e obliterar a compreensão plena do que poderia ocorrer naquela noite.

É perceptível, portanto, que a condição "fotográfica" do conto, narrativa localizada, não é inteiramente fechada: a todo momento, por diversas frestas, sejam elas sociais, psicológicas, religiosas ou mais outras tantas, o conto se reveste de sentidos e possibilidades novos e insuspeitos.

Mais do que da arguta percepção social ou da investigação fina que faz da mente e do comportamento humanos, o mérito de Machado é o do artífice que, por meio de um trabalho estético invejável (conciliando obscuridade temática e nitidez estilística), dá ao leitor uma chance rara: o privilégio de participar ativamente da fruição intelectual de sua obra.

Linh 33

Fenomenologia da laranja

Trata-se de um consenso crítico: Papéis avulsos, coletânea de contos publicada em 1882, é um marco fundamental na evolução literária de Machado de Assis. Lá estão, por exemplo, clássicos como "O alienista", "Teoria do medalhão" e "O espelho" (a respeito do qual aqui se escreve). Melhor, no entanto, é fugir dos consensos e lançar-se à obra: "O espelho" não é um conto que se submeta a qualquer espécie de análise esquemática baseada na evolução de Machado como artista e gênio solitário no século XIX brasileiro ou no desenvolvimento de uma corrente literária (muito mais tênue e enferrujada do que supõe uma crítica pouco comprometida com o texto) nesse mesmo século, sob esse mesmo gentílico.

Uma leitura que se ampare, por exemplo, na imagem de um Machado enquanto patrono das letras brasileiras, figura sisuda que impõe respeito e temor a quem quer que se aproxime dos seus escritos, estará sujeita a um equívoco costumeiro na apreciação da narrativa machadiana, qual seja, diminuir ou ignorar o seu humor e a sua ironia. Essa ironia, naturalmente, já se revela em seu próprio estilo, sobretudo na escolha dos adjetivos e no tom utilizado por seus personagens, que muitas vezes falam como se discorressem sobre os temas mais graves da existência humana quando, em realidade, despejam obviedades e observações pretensamente filosóficas.

Já no parágrafo inicial, não se pode deixar de ter a percepção de que Machado procura ridicularizar os "quatro ou cinco cavalheiros", "quatro ou cinco investigadores de cousas metafísicas" que, segundo o narrador, estavam "resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo". Ora, ainda que, a princípio, não se considere ridícula a situação de um grupo de amigos que discute temas filosóficos noite adentro, é impossível ignorar que o referido narrador transforma essa cena em algo patético porque ele mesmo a observa como algo patético. Seu tom é nitidamente sarcástico, o que se percebe por meio da já referida adjetivação extremada (vide "os mais árduos problemas").

Seguindo a leitura, logo se perceberá que a figura central da narrativa é Jacobina, o mais calado dos investigadores. Quando encontra a explicação paradoxal para o posicionamento passivo de Jacobina, o leitor está habilitado a perceber a amplitude da ironia machadiana, pois tanto são ridículos os que investigam o universo quanto o que se exime de investigá-lo amparando-se em justificativas obtusas. Quando resolve falar, Jacobina apresenta uma longa reflexão sobre a alma humana, que ele afirma não ser apenas uma, mas duas: uma interior e outra exterior. Trata-se, obviamente, de uma idéia estapafúrdia — ou melhor: o narrador a trata como uma idéia estapafúrdia. Todo o despropósito da teoria de Jacobina se condensa numa afirmativa sua, segundo a qual o homem è "metafisicamente falando, uma laranja". Nesse absurdo, Jacobina reduz o homem e a metafísica a uma laranja e dá a medida exata da profundidade do seu pensamento.

Não se trata de um expediente raro na ficção de Machado de Assis: lembre-se, por ora, de Quincas Borba, inventor de todo um sistema filosófico (intitulado Humanitismo) que se resume no famoso "Ao vencedor, as batatas". A filosofia de Humanitas, no entanto, se desenvolve de forma inversa, sobretudo porque Quincas é um representante feroz de uma espécie de darwinismo social, um arranca-rabo existencial que sempre propõe e valoriza o combate e a superação. Jacobina, por sua vez, é profundamente pacífico: exime-se de qualquer tipo de discussão e quer, ao contrário de Quincas (que encontra justificativa até mesmo para a guerra) evitar a "bestialidade" humana que um debate, segundo ele, representa. Seja como for, as duas filosofias se encerram em imagens que se relacionam: a batata e a laranja; e, seja batata ou laranja, seja Quincas ou Jacobina, tudo se revela, para esse narrador, como exemplos de falsa erudição e de filosofia barata.

Embora aqui se considere impossível uma discussão séria das propostas filosóficas de Jacobina, é necessário, para a compreensão do conto, que se busque compreendê-las e relacioná-las à personalidade delineada nos trechos iniciais da narrativa. Como muitos dos personagens de Machado, Jacobina é um homem obcecado por títulos e por sua reputação. Não é, de forma alguma, tema estranho à tradição literária brasileira: no século XX, por exemplo, esse traço seria fundamental na construção dos personagens de Lima Barreto, a maioria deles preocupada com o título de bacharel ou doutor. No caso de Machado, escrevendo num país ainda sem universidades, o personagem anseia por uma nomeação militar: torna-se alferes e a perspectiva de sua observação (seja de outras pessoas, como os escravos, ou de si mesmo) se altera e se reconfigura de forma a partir sempre do posto de oficial que agora ocupa.

Jacobina se enxerga apenas enquanto portador de um cargo militar: não há homem, só há o alferes. Nasce daí, portanto, a sua filosofia tortuosa, que caminha e se desenvolve de maneira a justificar a sua condição de homem puramente exterior, esvaziado de intelecto e de espírito. Durante o conto, ele mesmo afirma que "O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primeira cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade". Não há, no entanto, nenhuma observação sua de que isso se trate de algo a se lamentar ou combater, ao contrário: o fato de vestir a farda para reconhecer-se no espelho e situar-se outra vez no mundo e no seu próprio corpo indica a sua desistência de buscar, por si mesmo, uma personalidade que o amparasse em momentos de desespero. Daí que sua filosofia é a da acomodação, do contentar-se com aquilo que está mais à mão, do aviltamento tanto do caráter quanto da propensão humana à dúvida e à experimentação — e assim se esclarecem o seu mutismo e as suas teorias.

Mas que não se tenha certeza a respeito do que aqui se afirma. Pois que certeza só interessa aos Jacobinas.

Lina 32



Machado em particular

Mário de Andrade, em Aspectos da literatura brasileira, inicia seu escrito sobre Machado de Assis assumindo alguns riscos. E sua postura vai além, pois parece que gosta mais de se mostrar arriscando do que de propriamente arriscar. Orgulho compreensível do crítico: escrevendo em 1939, Mário já mexe num nome sagrado, já toca no intocável. Verdade que, à época, a fortuna crítica do Bruxo não era ainda tão vasta e nem tão laudatória (considerando-se, aqui, que a louvação aumentou na medida em que a fortuna também cresceu), mas já era, sim, um ato de coragem e de orgulho questionar nosso gênio em algum ponto. A condição sui generis da prosa ensaística de Mário não se encerra aqui. A idiossincrasia parece ser seu recurso preferido — e lemos o homem começar seu texto falando de amor. Não se ama Machado, não se pode amar Machado — Mário está convicto de que a sua admiração, de que a sua estupefação diante da obra de Machado não pode se converter em amor. Mas aqui se inicia uma confusão elementar: Mário já não está nos falando da obra, mas da figura. Na sua concepção, a obra de Machado aparece comprometida pela sua figura, que o ensaísta julga desagradável, pernóstica. Dá-nos alguns exemplos de escritores "amáveis": Castro Alves, Gonçalves Dias, Camões, o Dante lírico e juvenil da Vita Nuova — artistas aos quais não faltam "dons de generosidade", "confiança na vida e no homem" e "esperança". Embora me pareça difícil definir até que ponto Mário se deixa seduzir pelo biografismo, sobretudo porque hesita educadamente diante das conclusões de Peregrino Júnior a respeito das relações entre a obra de Machado e a sua doença, é inegável que a sedução e a entrega existem. Mas, para contrariar a sua idéia de amor literário, recordo-me, por ora, de Jack Kerouac, autor cuja obra é amada por um sem número de jovens leitores — ainda que, em certo momento da vida, ele tenha se tornado a antítese de tudo que a sua escritura revolucionária representa: um homem obeso, infeliz e reacionário que deplorava aquilo em que, junto com seus personagens, costumava acreditar. E o amor por On the road, no entanto, persiste.

Por ora, basta com Mário. Também preciso declarar os riscos que assumo: concentrando meu texto em outros textos que não as Memórias Póstumas propriamente, posso perder-me e encerrar o ensaio voltando-me pouco para Machado. É questão de modéstia, mas também de ousadia: modéstia ao reconhecer que não se diz algo válido sobre Machado acreditando-se sozinho diante da obra, desprezando o diálogo com quem, em diversos momentos, já se meteu a conhecê-la realmente; e ousadia, afinal, porque é minha intenção fugir de uma exegese básica e inevitavelmente repetitiva: estou interessado em superar a minha própria perplexidade diante do fenômeno machadiano que, em certa medida, também oblitera a minha apreensão da grandeza literária de sua obra — grandeza que o leitor brasileiro já não se preocupa em descobrir, contentando-se em reconhecer, constatando a descoberta alheia.

Não são poucas as minhas inquietações relativas à consolidação de Machado como o maior ficcionista brasileiro. Primeiro, volto-me às generalidades: fala-se muito de Machado 1) como um observador arguto da sociedade em que viveu e 2) com protagonista solitário da revolução realista na literatura brasileira. Na maior parte das vezes, o segundo ponto termina por ser submetido ao primeiro e a dita revolução machadiana não encontra a devida análise formal: a revolução literária se resume à revolução de ordem semântica. O valor de Machado, então, cresce a partir do momento em que determinado capítulo ou conto pode servir de ilustração a determinado aspecto ou fato social de época. Não é algo estranho à tradição crítica brasileira, tão pouco dada às análises estéticas ou formais, tão afeita aos estudos de extrato sociológico ou histórico. Roberto Schwarz, no que diz respeito à crítica específica de Machado, é talvez o exemplo mais bem acabado desse tipo de abordagem. Não se trata, de forma alguma, de negar o valor de estudos que se pautem nos princípios aqui considerados, mas de buscar ampliar o número de sistemas críticos na literatura brasileira e, afinal, na consideração da obra de Machado. O trabalho de Schwarz, a meu ver, parte da louvável tentativa de compreender o fenômeno machadiano e de situá-lo em seu tempo e espaço — a sua busca, nesse caso, é pela superação do deslumbramento, pelo entendimento do terreno que pôde gerar Machado de Assis. No entanto, a sua conclusão de que são os narradores machadianos, a partir das Memórias Póstumas de Brás Cubas, que permitem a escritura daquela prosa diferenciada (e que isso se dá por conta da adoção, por parte do escritor, do ponto de vista da elite brasileira), não me parece satisfatória. Schwarz gosta de enfatizar o que chama de aspectos "extra-estéticos" — mas sigo me perguntando de que modo um elemento extra-estético pode chegar a fazer parte de uma obra de arte sem se tornar, ele mesmo, um elemento estético em sua essência; e, embora Schwarz pareça aceitar essa premissa, em momento algum ele esclarece satisfatoriamente o modo como isso se dá na obra que analisa. Lukács, crítico e teórico caro a Schwarz, escreveu que “(...) uma tal concepção social não está em condições de oferecer ao crítico uma norma objetiva para julgar o valor estético dos fenômenos literários” (p. 225). Referia-se, àquele época, ao que chamava de “sociologia vulgar”, espécie de degeneração burguesa e decadentista, no âmbito da crítica literária, das relações entre arte e sociedade no século XIX — e aqui parece-me difícil tirar-lhe a razão. No entanto, a concepção social marxista, ainda que de natureza diversa da vulgarização sociológica apontada por Lukács, ainda que amparada numa objetividade que alcança o determinismo (ou justamente por isso), também perde a condição de oferecer ao crítico não uma norma, mas um método devido para julgar o valor estético dos fenômenos literários em suas particularidades. Percebe-se o perigo constante e real dos absolutismos e, sobretudo, do proselitismo.

A "conversão" dos elementos extra-estéticos, citada no parágrafo anterior, se impõe em todos os níveis e espécies de elementos extra-estéticos — e quem nos mostra a sua medida é o próprio Brás Cubas num capítulo direcionado aos críticos (CXXXVIII). Explica-nos brevemente as alterações de andamento e estilo de sua frase afirmando que "em cada fase da narração da minha vida experimento a sensação correspondente." A dita volubilidade desse narrador, que Schwarz prefere tributar à sua condição de brasileiro bem-nascido, é tratada, no romance, como decorrente das contradições e das metamorfoses do próprio homem — e, se não do homem geral, do homem que é Brás Cubas. Noutro momento, lê-se que o homem é "uma errata pensante... Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes". Considerando que a vida de Brás Cubas é o próprio livro, livro este repleto de gêneros, tons e traços literários diversos, não seria um disparate pensá-los (a Brás Cubas e ao livro de Brás Cubas) como a narração de sucessivas erratas cuja edição final é, como indica a dedicatória, dada literalmente aos vermes — o corpo enterrado e o livro oferecido. Perceba-se, então, que os registros volúveis do romance, mais do que da condição social do narrador, decorrem da intricada relação das tendências do indivíduo com as mediações daquilo e daqueles que cercam esse indivíduo; essa premissa parece livrar Machado de uma análise determinista (uma espécie de vertente econômica do naturalismo de época) à qual Schwarz procura submetê-lo. A referida volubilidade, por exemplo, é capaz de se fazer presente, inclusive, nas reviravoltas que atingem as vidas de pobres e miseráveis como Prudêncio e D. Plácida — portanto, não é, de forma alguma, exclusividade do narrador de elite. Schwarz, naturalmente, opõe-se à leitura das Memórias nesse sentido. Mais adiante, retornarei ao ponto. Por ora, volto a Mário de Andrade.

É curioso notar que, a certa altura do seu ensaio, Mário entenda Machado de Assis como um autor pouco propício a interpretações de ordem histórica e sociológica:

"Como um acadêmico, era um desprezador de assuntos. Era um estético. Era um hedonista. Há contos dele movidos com tão pouca substância, tão sem uma base lírica de inspiração, que se tem a impressão de que Machado de Assis sentava para escrever. Escrever o que? Apenas escrever. Sentava para escrever um gênero chamado conto, chamado romance, porém não tal romance ou tal conto. E é porque tinha no mais alto grau uma técnica, e bem definida a sua personalidade intelectual, que saiu este conto ou aquele romance". (p.106)

Essa visão de Machado é certamente equivocada e, como se sabe, vai sendo abandonada pouco a pouco com uma notável profusão de trabalhos que enfatizam a relação íntima (se bem que desconfortável) entre Machado e os temas da época em que viveu e escreveu. Pode-se, numa primeira leitura desatenta, acreditar que "Missa do galo" foi feito sob as circunstâncias descritas por Mário, que Machado sentou-se e escreveu-o, mas qualquer observação atenta ao conto revela a poderosa substância psíquica de que os personagens, por exemplo, são compostos.

O posicionamento representado por Mário, no entanto, não parece ter gerado em momento algum (no seu ensaio, pelo menos, em momento algum) uma crítica propriamente estética. Parece-me que a fortuna machadiana passa do biografismo extremo para o historicismo igualmente exagerado, sem nenhuma mediação de ordem estrutural, formal ou, enfim, estética. Predomina, na nossa tradição crítica, o estudo do que Todorov chama relações literárias in absentia ("relações entre elementos presentes e ausentes" p. 21) em detrimento das relações in praesentia ("relações entre elementos copresentes" p. 21). O teórico búlgaro afirma, naturalmente, que não se tratam de relações absolutas. Como exemplo, escreve que "Há elementos ausentes do texto que estão de tal modo presentes na memória coletiva dos leitores de uma dada época que temos praticamente de nos haver com uma relação in praesentia" (pp. 21-22) — e isso, ao que parece, foi percebido pelos críticos na obra de Machado. Abriu-se um caminho promissor para novas leituras, mas não há indícios de que ele tenha sido devidamente explorado.

A princípio, parece-me um disparate posicionar-se contra a utilização de textos literários como fontes históricas. A literatura, sendo um produto humano, está lançada aos humanos, que a utilizam das mais variadas formas — e utilizá-la historicamente é uma das formas mais previsíveis e compreensíveis. O grande equívoco, no entanto, é desrespeitar o caráter particular do texto literário e tratá-lo como mero documento. Todorov escreve que "pondo a literatura no mesmo patamar que qualquer outro documento, desistimos, evidentemente, de ter em conta aquilo que a qualifica como literatura" (p. 28). Não se pode acreditar na possibilidade de tratar um texto literário historicamente sem tratá-lo esteticamente. E tratá-lo esteticamente é tratá-lo em todas as suas instâncias, sejam elas semânticas ou formais. É óbvio que essa visão total da obra não invalida uma posterior divisão a título de estudo — contudo, o estilo, a linguagem, as figuras retóricas, etc. são partes integrantes da estrutura primária de um texto ficcional; a História, por sua vez, não o é: está presente no texto, mas só pode ser alcançada por meio da consideração estilística, de linguagem, etc. Inverter essa relação no processo de análise é comprometer a leitura.

Tudo o que aqui se buscou resumir e entender, a meu ver, está ligado, sobretudo, à leitura de Machado de Assis como um autor realista ou, sendo ainda mais específico, à leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas como um romance realista. É sabido que Machado repudiou o preceito realista. Sobretudo ao criticar Eça de Queirós, o escritor brasileiro foi admiravelmente enfático: "Este messianismo literário não tem a força da universalidade nem da vitalidade; traz consigo a decrepitude (...) Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética"; antes, é irônico com as descrições excessivas, típicas do gênero: "Porque a nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha". É bastante simbólico que, nas Memórias Póstumas, o capítulo mais descritivo se concentre num delírio sofrido pelo narrador. Ainda assim, mesmo nesse capítulo, surgem algumas invectivas contra a descrição: "Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago". E, se se quiser encerrar definitivamente um parágrafo sobre a negação do Realismo por parte de Machado, cite-se outra afirmativa sua: "há um limite intranscendível entre a realidade, segundo a arte, e a realidade, segundo a natureza".

A partir do Machado anti-naturalista e anti-realista seria possível inferir, além de um Machado em posição contrária à do seu século darwinista, um Machado convicto da superioridade humana. Passo equivocado. Isso seria tomar Machado pelo Brás Cubas que, ainda não convertido ao Humanitismo, se depara com insetos e, aproveitando-se da ocasião, trata de afirmar sua superioridade em relação aos invertebrados. Mas a intenção de Machado, nessas cenas, é irônica. Machado jamais poderia, tal qual Quincas Borba, dissertar séria e apaixonadamente sobre a estreita relação entre a briga de dois cães por um osso e as disputas humanas. Ao que parece, só poderia observar tais disputas em níveis distintos, se bem que não hierarquizados: Machado se interessa pela consciência do homem não como um trunfo óbvio, mas como uma espécie de perigo sutil e perene. Por isso diz Pandora: "Vives: não quero outro flagelo"; por isso Brás Cubas vê o prazer, também no delírio, como uma "dor bastarda". À época, inexistiam idéias ou estilo semelhante no romance brasileiro, que nascia romântico. E, posto que o Ceticismo não foi escolhido como nome de nenhuma corrente ou escola literária, Machado foi filiado ao Realismo.

Inicialmente, o Realismo parece entendido, nesse caso, mais como uma reação e um posicionamento contrários ao Romantismo (no qual cabem as mais diferentes estéticas desde que todas elas se pautem — e aqui uso a definição algo rasteira da tradição didática brasileira — numa idealização menor ou inexistente) do que como uma escola coesa e discernível. Ainda hoje esse parece ser um problema didático decorrente de um entrave crítico. Todorov, a esse respeito, escreve que

"O problema da relação entre literatura e factos extraliterários confundiu-se muitas vezes, sob o nome de 'realismo', com um outro, que consiste na conformidade do texto particular com a norma textual que lhe é exterior; esta conformidade provoca a ilusão do realismo e faz-nos qualificar esse texto como verossímil". (p. 28)

Nada mais inverossímil do que o ponto de partida das Memórias Póstumas: o homem morto que pode narrar. Entenda-se que não importa se o narrador está morto de fato ou se finge de morto: o pressuposto inverossímil e agressivo em relação ao Realismo está presente nos dois casos. Daí que a definição moderna (aceitemos o moderna por falta de termo mais adequado) de Machado de Assis como realista é de outra índole, muito mais sociológica e política do que formal. Schwarz, por exemplo, parece pouco interessado em qualquer espécie de definição de uma corrente literária realista, sobretudo se específica do século XIX, mostrando-se mais preocupado com o realismo na medida em que este se define pelas intersecções entre obra ficcional e elementos extra-literários, sobretudo sociais e políticos. Trata-se de uma inegável (e potencialmente enriquecedora) evidência de transição do viés crítico sob o qual a obra de Machado havia sido trabalhada.

O perigo óbvio desse viés é o de desfazer o texto machadiano apenas em referências históricas concretas. Em entrevista a Augusto Massi, Schwarz afirma que "Machado é o romancista da desfaçatez das elites brasileiras, e não do 'homem em geral', como freqüentemente se diz" (p. 222). Trata-se de uma afirmação bastante redutora — que de forma alguma dá conta da complexidade dos personagens machadianos. Como já foi dito, a própria volubilidade e iconoclastia de Brás Cubas, apontada por Schwarz como traço central para a revolução da prosa de Machado, não é característica única dos personagens de elite — aliás, parece-me difícil vislumbrar uma elite brasileira do século XIX marcada pela iconoclastia e pelo anti-dogmatismo de Cubas. Schwarz continua dizendo que "A idéia é de superar o estudo a-histórico das formas, do qual uma história das formas que não saia do próprio plano delas na verdade é apenas uma variante" — e eu completaria afirmando que o estudo das relações entre forma e conceito marxista de história, a partir de um determinado ponto (no qual tanto historiador quanto crítico se vêem obrigados a ilustrar teses pré-determinadas) torna-se, também ele, a-histórico, de um formalismo estéril, desligado do mundo. Schwarz acredita que limitar o homem machadiano ao homem da elite brasileira é estar de acordo com os preceitos do próprio Machado. Antes, porém, atente-se para o fato de que Schwarz considera “metafísico” (aqui entendido como discurso vazio e despropositado) qualquer pensamento que se refira ao romancista preocupado com questões humanas “em geral”. O crítico cita “Teoria do Medalhão” como exemplo de que Machado adotava postura semelhante à sua: “Conforme o mestre [o pai que aconselha ao filho a profissão de medalhão], a maneira infalível de não dizer nada é evitar a controvérsia e limitar-se, de um lado, aos ‘negócios miúdos’, e, de outro, ‘à metafísica’” (p. 53). Schwarz, nessa citação, suprime uma parte fundamental do texto de Machado: nele, lemos o personagem dizer, em realidade, “metafísica política”. Nas questões políticas, de acordo com o romancista, dedicar-se à metafísica é, de fato, uma “nulidade”, mas não acredito que seja possível inferir que, no que concerne à arte, Machado tome posicionamento semelhante. Esse é, naturalmente, o teor do pensamento crítico e artístico do próprio Schwarz, marxista em sua essência — teor que ele procura imputar a Machado, autor dado, ao seu modo irônico e desconcertante, à filosofia em geral.

Outro exemplo muito claro desses perigos pode ser visto em Machado de Assis Historiador. Seu autor, Sidney Chalhoub, é historiador e a sua preocupação, naturalmente, se concentra nas possibilidades de retirar referências a fatos históricos do texto de Machado. No capítulo dedicado às Memórias Póstumas, por exemplo, reflete sobre um suposto "significado da febre amarela no Brasil da segunda metade do século XIX" (p. 121). Segundo Chalhoub, a morte de Eulália, com quem Brás Cubas pretendia se casar, não foi bem assimilada pelo narrador porque a febre amarela, "ao contrário da cólera e da varíola, (...), fazia número bem maior de vítimas entre a população branca (...)" (p. 121) tendo, portanto, uma lógica desconcertante: "dizimava brancos, seres tidos por superiores, e não causava maiores estragos entre os africanos e seus descendentes" (p. 122). Não sei até que ponto tal interpretação é sustentável, sobretudo se levarmos em conta que Brás Cubas, ao afirmar "Creio até que esta [a morte de Eulália] me pareceu ainda mais absurdas que todas as outras mortes", termina por compará-la também às outras mortes de outros brancos — aqui, portanto, não é tanto a consciência ultrajada da "raça" ou classe dominante que sucumbe e se revolta diante da febre, mas a individualidade do homem caprichoso que perde a futura noiva.

Ainda que, como afirma Todorov, práticas como essas neguem "o carácter autónomo da obra literária" e a considerem "como manifestação de leis que lhe são exteriores e que dizem respeito à psique, ou à sociedade, ou então ao 'espírito humano'" (pp. 10-11), suas realizações inscrevem-se como possibilidades abertas e indicadas pelo próprio Machado. O problema central é a predominância absoluta dessas vertentes. Na contramão, cite-se, a título de rápido exemplo, José Guilherme Merquior (para quem Machado foi um autor filiado ao impressionismo) e Alfredo Bosi, que busca conciliar o Machado "das elites brasileiras" e o Machado do "homem em geral". Parece-me impossível fugir dessa relativização e da conseqüente solução apontada por Bosi. O próprio Machado, no seu clássico ensaio "Instinto de Nacionalidade", faz alusão a essa estratégia de universalização da província.

Mas não posso, por ora, contentar-me com tão pouco. Na busca de maiores esclarecimentos, vou direto à obra.

Sublime és tu!

"Sublime és tu" é uma frase de Brás Cubas dirigida a Quincas Borba motivada por uma "profunda" refutação que o filósofo fez a um alienista que vislumbrara sandice em sua mente. Assim se passa a cena: o alienista, a título de exemplificar o grão de loucura que ocupa todos os homens, cita o "maníaco ateniense" que "supunha que todos os navios entrados no Pireu eram de sua propriedade" e era feliz assim. Em seguida, o alienista aponta o criado de Cubas, que se mostra bastante orgulhoso ao sacudir os tapetes da propriedade e que, tal qual o maníaco ateniense, perdia-se e contentava-se com a ilusão de ser o dono da tapeçaria e também era feliz dessa maneira.

Ao expor a tese do médico ao filósofo, Cubas ouve uma explicação diversa: "O que o teu criado tem é um sentimento nobre e perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: é o orgulho da servilidade", uma "prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, é sublime".

Aquilo que se deve perceber, nesse caso, é que o alvo central da ironia machadiana é o arranca-rabo existencial do Humanitismo, filosofia cujos preceitos, nesse caso, servem, sim, à perpetuação de diferenças classistas — interesse óbvio da elite brasileira. Porém, ao ridicularizar a postura conservadora e passiva do filósofo, Machado alcança ainda as idéias que se pautam na diferenciação dos homens a partir das distinções de classe, filiando-se à universalidade da loucura exposta pelo alienista.

Há, portanto, um nítido jogo de duplicidade semântico e, também, formal. Semântico pelas possibilidades diversas de apreensão da crítica e da ironia; formal porque o trecho entrelaça um narrador explícito, Brás Cubas, que se conforta na teoria do filósofo, e um autor implícito, que é o próprio Machado, prosador bastante afeito às intervenções nas suas obras, responsável pelo tom de sarcasmo que chega ao leitor. Assim, creio que é exagero creditar à voz típica da elite toda a responsabilidade pelas inovações narrativas de Machado: parece-me, antes, um resultado da volubilidade humana (já considerada anteriormente) e da dupla e antagônica perspectiva que Machado alcança a partir do momento em que passa a se utilizar da primeira pessoa, escondendo-se, ele autor, num discurso velado em contraponto constante e total à postura de Brás Cubas.

Como Alfonso Berardinelli aponta, houve, em tempos recentes, uma tendência geral a desconsiderar ou minimizar o papel do autor na construção da sua própria obra:

"A onisciência do escritor (um tanto rejeitada ou criticada nas últimas décadas: como se o autor não pudesse saber tudo das personagens que ele mesmo cria!) deve-se ao simples fato de que toda a realidade da personagem está nas mãos daquele que a está colocando em cena (...)" (p. 128).

Observo Machado como uma vítima recorrente desse expediente. É sobretudo na análise de Dom Casmurro que se costuma menosprezar os objetivos do autor e os meios de que se utiliza para lográ-los, mas também aqui, nas Memórias, há, por parte de críticos e leitores, uma considerável e indevida diminuição da presença do autor. Pois as Memórias Póstumas de Brás Cubas são, no mínimo, uma co-produção entre Cubas e Machado.

Marcela amou-me...

O fetiche do dinheiro, seja através da avareza, da ambição ou do esbanjamento, é trabalhado até a exaustão por Machado. Seu centro e ponto culminante é o trecho que liga os capítulos XVI e XVII, o célebre "(...) Marcela amou-me..." e "... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos". Tamanha justeza com o tema parece só ter sido outra vez alcançada em língua inglesa: Scott Fitzgerald, a certa altura de The Great Gatsby, escreve sobre uma personagem cuja voz é "full of money". As duas frases alcançaram se tornar clássicas pelo inusitado das relações que estabelecem.

Em Machado, acredito que se pode vislumbrar, no caso de Marcela, um dos momentos mais nítidos da presença dupla de narrador e autor nas páginas do romance. Para tanto, é necessário que se chegue, mais adiante, ao capítulo XXXVIII, no qual Brás Cubas reencontra uma Marcela com "a alma decrépita". Esse encontro fortuito e algo arbitrário indica a participação direta de Machado que, tal qual um moralista, faz reaparecer a personagem ambiciosa num estado de decadência. Aqui, o que se lê é um Machado tributário de certa tradição de narrativa esquemática (ainda que apareça, no contexto do romance, a partir de um encontro imprevisível e surpreendente) da qual, em outros momentos, ele foge deliberadamente.

Schwarz, em determinado trecho de seu estudo, escreve que "Mas é certo também que, a despeito da superioridade de todos os momentos, o narrador faz sempre figura de inferior: algo nas suas vitórias não convence, e a série delas configura uma completa derrota" (p. 44), afirmativa da qual acredito que seja difícil discordar. Sua explicação para esse fenômeno, no entanto, não convence; diz que "A volubilidade no caso é um valor relacional, que a concebe e processa referido ao padrão burguês da objetividade e da constância" (p. 44). Creio ser possível observar, na leitura das Memórias Póstumas, dois eixos distintos de volubilidade, quais sejam, 1) a volubilidade inerente à condição do homem, representada diretamente na figura do próprio Brás Cubas (que pode contê-la inteiramente ou representá-la em parte) e evidenciada tanto nos atos narrados quanto na variação constante da forma de narrá-los e 2) uma volubilidade de ordem ética e moral que nasce da presença constante do próprio Machado na narrativa. Esta última, em geral, se dá em paralelo com a primeira volubilidade citada — ainda que, vez ou outra (como no reencontro entre Cubas e Marcela), se explicite verdadeiramente em capítulos distintos.

Por isso, afinal, acredito que reputar a volubilidade moral, ética e formal (que é tanto do personagem Brás Cubas quanto da obra literária Memórias Póstumas) ao "padrão burguês da objetividade e da constância" e sua adaptação à sociedade escravocrata brasileira é subestimar essa presença de uma dupla voz na narrativa, expediente que, em Dom Casmurro, Machado voltaria a utilizar com uma maestria até então desconhecida.

Mário de Andrade escreve que "para se cultuar Machado de Assis, há que ser meticuloso". Não seria uma desfaçatez completa roubar uma observação tão verdadeira, adaptando a referida meticulosidade justamente ao que aqui se indicou como aspecto mais complexo e problemático das Memórias Póstumas. Assim que, se há muito a ser discernido ao longo da obra, sua leitura é, antes de tudo, um trabalho crítico que será proveitoso desde que não se distancie do seu objeto — no qual todas essas instâncias aparecem de forma simultânea. Pode-se dizer que decompô-la para fins eruditos é algo que cabe ao estudioso — no entanto, a leitura feita sem a atitude crítica do discernimento é caminho para equívocos ou para a aceitação passiva de pressupostos e conclusões alheias. Machado é um enigma a ser resolvido por qualquer um que procure entender o desenvolvimento da literatura brasileira — e acredito que essa resolução será mais válida na medida em que for buscada de forma particular. Portanto, não é exagero ou gratuidade utilizar-me de um expediente caro a Brás Cubas, rebaixando o gênero e o escrito com adaptações de frases feitas, afinal, é cada um com seus Machados — e resolva-os quem puder.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Linha 31


Texto antigo sobre Eugene O'Neill. Costumo chamá-lo "De sonhos e morfina"


Costuma-se afirmar que um autor atinge a sua maturidade quando desiste de utilizar-se como tema central de suas obras, quando se abandona enquanto personagem. Ao iniciante, mais do que uma tentação, uma fácil tentação, essa criatividade auto-centrada parece ser uma necessidade — e é Scott Fitzgerald quem o diz, considerando ser esse ("transferir emoções a outra pessoa através do expediente desesperado e radical de arrancar do coração a trágica história de seu primeiro amor, e expô-la nas páginas para que os outros vejam") o verdadeiro preço da admissão. É bastante provável que a carreira de inúmeros grandes autores justifique esta afirmativa: não parece nítida a intenção de James Joyce ao deslocar Stephen Dedalus, seu alter-ego, do centro que ocupava em Retrato de um artista quando jovem, para a posição ainda importante, é verdade, mas notadamente ofuscada pelo peso de Leopold Bloom — peso que, certamente, seria imperceptível ao ficcionista iniciante, que o consideraria um personagem desinteressante e enfadonho se comparado à carga poética e ao peso psicológico de um artista atormentado como Dedalus? O autor irlandês está, de certa forma, renunciando a si mesmo - talvez por notar que seria uma tolice pensar que não estaria imprimindo sua subjetividade mesmo num personagem que julgava ser sua antítese absoluta. Opto por Joyce por ser este um caso nítido e deliberado, mas a literatura está repleta de casos semelhantes.

Mas, se é esta uma das verdades incontestes da literatura, pode-se relativizá-la (e não só a ela) com outra constatação inegável: encontram-se, na história da literatura, casos de todos os tipos. Pois não foi pondo-se como centro de sua ficção que Marcel Proust ergueu talvez o maior monumento literário da modernidade? Não está Hans Castorp, no sanatório, tão cheio dos bacilos que lhe imprimem a tuberculose quanto do próprio Thomas Mann que lhe imprime interesse ficcional? E que dizer, então, de Eugene O'Neill, homem e autor maduro, já vencedor de três Pulitzer e do prêmio Nobel e, reconhecidamente, um dos maiores dramaturgos do século XX, debruçando-se corajosamente sobre sua juventude ao lado de uma família despedaçada? Longa jornada noite adentro é documento inquestionável (e raro) da viabilidade da união entre maturidade estética e confissão despudorada.

Finalizada em 1941, a obra permaneceu inédita por 15 anos — um tempo relativamente curto, se considerada a vontade do autor, morto em 1953, de que a peça só fosse publicada passados 25 anos do seu falecimento; tudo porque, segundo ele, um dos personagens ainda vivia. Sua esposa, porém, permitiu que fosse publicada e levada aos palcos antes do tempo desejado por O'Neill. Ao se deparar com o texto de Longa jornada noite adentro, o leitor sensível rapidamente percebe o pudor e a cautela demonstrada pelo autor: a autobiografia dramática (como é comumente referida) está carregada de um ressentimento que, por certo, causaria constrangimentos ao homem envolvido naqueles personagens e ao escritor perdido naquela atmosfera. O'Neill revela, de forma cruel, o ambiente que o criou — e, portanto, revela também de onde partiu para, em seguida, erigir uma das obras mais assombrosas do século passado. Longa jornada noite adentro, assim, torna-se texto fundamental para a compreensão da dramaturgia moderna.

Tal qual a maioria da produção dramática do século passado, a peça não possui variações de cenário e se encerra num único dia, num único local. Talvez seja esse, aliás, o maior risco assumido pelos grandes dramaturgos da modernidade: ao evitar variações cenográficas, ao reprimir a ação e prender-se basicamente à situação psicológica dos personagens, a possibilidade de entediar o leitor ou o espectador cresce de forma considerável. Um dos autores mais bem-sucedidos nesta luta foi, sem dúvida alguma, Samuel Beckett. Utilizando-se de personagens patéticos (derrotados, desesperançosos, mas cômicos e empáticos), diálogos velozes e cenários e figurinos incomuns, o escritor irlandês rompe de imediato a ligação do público com o drama e, assim, deixa-o desconfortável o bastante para que não se entedie, exigindo-lhe atenção redobrada pelo fato de encontrar-se sob uma atmosfera pouco conhecida e potencialmente perigosa. De certa forma, é este o procedimento utilizado também por O'Neill em peças como Fog (apenas um curto ato de inegável qualidade dramática), na qual uma espessa névoa envolve um bote salva-vidas e não permite ao espectador a visualização total dos personagens que, no texto, são inicialmente identificados como First Voice e Second Voice e, em seguida, durante um diálogo no qual revelam suas tendências psicológicas e ao longo do qual a claridade da manhã já consegue penetrar a névoa e revelar características físicas dos sobreviventes do naufrágio do vapor Starland, passam a se chamar The Poet e The Business Man. A tensão criada pela situação inusitada de uma cena em alto mar, sob um nevoeiro, na qual dois desconhecidos (de si mesmos e do público) têm ainda a companhia de outros dois personagens silenciosos que, por fim, revelam-se mortos (tal qual afirma Luiz Arthur Nunes sobre a heroína defunta de Nelson Rodrigues em Valsa Nº 6, pode-se dizer que ambos estão biologicamente mortos, mas dramaticamente vivos) é um subterfúgio maduro e inteligente para suprir a falta de ação e mudanças cenográficas.

O que se vê em Longa jornada noite adentro, contudo, é a tentativa deliberada de não oferecer facilidades ao espectador. O'Neill dispensa as situações incomuns ou os personagens fisicamente misteriosos para montar um drama familiar repleto de situações banais (almoço, jantar, trabalho no jardim, telefonemas) e de falas longas que, nas mãos de um autor inexperiente, talvez se tornasse tedioso. Para enfrentar a sua própria biografia, para legar aos palcos e à dramaturgia norte-americana um texto que, de certa forma, assume a característica de uma sessão de análise, de um sincero e corajoso acerto de contas entre sua família (àquela altura biologicamente morta, mas dramaticamente viva), O'Neill já precisava possuir toda a técnica literária da maturidade. Inverte-se, dessa forma, a idéia tradicional de que a ficção autobiográfica pertence ao jovem: para fazê-la bem, necessita-se a experiência do autor formado.

A delicada situação da família é visível desde o início da peça — quando, após fazer patéticos elogios à esposa Mary, Tyrone, o patriarca, acusa os filhos de permanecerem na sala de jantar, mesmo após o café já tomado, para que, juntos, possam urdir um "plano para extorquir dinheiro do 'velho'". Ao longo dos quatro atos, a avareza de Tyrone revela-se de maneira cada vez mais hedionda: por conta dela, desperdiçou sua promissora carreira como ator shakesperiano, decide mandar Edmund (jovem alter-ego de O'Neill que, durante o drama, tem a confirmação de que está acometido pela tuberculose) para um ordinário sanatório estatal e, ao optar por um médico barato (mas incompetente) para o parto do filho caçula, fez com que Mary entrasse em contato com a morfina. A avareza do pai e o vício da mãe são, por sinal, fatores essenciais para uma melhor apreensão da obra: enquanto o primeiro, segundo os críticos, não corresponde à realidade, sendo mero artifício ficcional, o segundo é real e, a princípio (ao menos para os que enfrentam a obra sem o conhecimento prévio da biografia), enigmática. Sabe-se que Mary retornara há pouco, mas não por onde esteve; sabe-se que temem uma recaída, mas não sobre o que. A dúvida permanece até que, numa frase, são revelados o vício e a personalidade de Jamie (o primogênito), que a profere: "Mais outra espetadela no braço!". Figura maldita, carrega em si todos os erros da família: é dependente químico tal qual a mãe (alcoólatra tal qual o pai), demonstra falta de tato com relação ao dinheiro (ao contrário de Tyrone, não consegue acumulá-lo) e nutre uma relação ambígua com Edmund — na qual o ama e protege e o guia à decadência (a certa altura, afirma ser Edmund o seu Frankenstein).

Sob tais condições, não surpreende a impressão de Tyrone — que diz perceber "uma atmosfera tão carregada e tão lúgubre que poderia ser cortada à faca" já no segundo ato. O dia segue com a recaída absoluta de Mary, a confirmação da tuberculose no caçula e o acirramento da tensão entre Jamie e Tyrone, que se acusam e se ofendem todo o tempo. Grande parte da ação está apenas no passado rememorado pelos personagens - e do qual se dizem vítimas. Ao contrário do que se vê em obras que vão desde King Lear até Casa de bonecas, o espectador não persegue a decadência, não a sente como conseqüência dos erros de um velho rei ou do desgaste da convivência tola de um casal unido por Ibsen; ele já encontra (prontos, escuros e abafados) o fracasso absoluto e a sua atmosfera. De certa forma, o drama de O'Neill inicia-se onde deveria encerrar-se. Assim cria-se a tensão, evita-se o tédio: como vivem personagens que já se acostumaram à derrota, que já afirmam "Somos da substância de que é feito o esterco" e, cientes disso, continuam vivendo e, mais importante, convivendo?

Como se acertassem contas, os quatro personagens falam muito e falam longamente. Os imensos e reveladores diálogos realizados no ato final do drama, quando O'Neill dispõe a família sob luzes apagadas e em torno de uma simbólica garrafa de uísque (nelas estão o vício e a avareza do pai que, inicialmente, ressente-se pela energia elétrica consumida sem necessidade e por estar desperdiçando a cara bebida), revelam também outra faceta da distância entre Longa jornada noite adentro e as peças modernas - representadas sobretudo por Samuel Beckett e seus Fim de partida e Esperando Godot, nas quais os diálogos são ligeiros e, de certa forma, interdependentes; em alguns deles, aliás, a mesma idéia ultrapassa a capacidade expressiva de um personagem e só encontra conclusão na fala de outro personagem — por isso só dispõem de frases curtas e, a princípio, pouco significativas. Quando, em Esperando Godot, um dos personagens arrisca uma colocação mais longa, que no papel supera uma página inteira, seu discurso está repleto de informações inúteis e idéias desencontradas — um puro emaranhado de palavras sem sentido ou serventia. Jamie, Edmund, Tyrone e Mary, ao contrário, discorrem longamente sobre o passado, sobre seus erros e remorsos. Esta característica, contudo, não pode ser encarada como uma discreta esperança que seu autor ainda depositava na comunicação (àquela altura, aliás, a morte já a encerrara): se falam muito, parece também que falam sozinhos, que não são ouvidos e, por isso, a maior parte de suas considerações não são respondidas e, ao que parece, sequer ouvidas e analisadas pelos outros. Sobre isto, logo após chamar e não ser escutado pela mãe, que está totalmente envolvida pela droga, Jamie evoca versos de Swinburne: "Vamo-nos daqui, canções minhas, ela não as ouvirá. (...)/ Sim. Ainda mesmo que feito anjos lhe cantássemos ao ouvido,/ Ela não nos ouviria."

As formas que cada um encontra para continuar nesta convivência atroz são variadas: enquanto Jamie afunda-se no cinismo e na grosseria, na absoluta falta de esperanças e numa comodidade amparada, sobretudo, nos vícios de um homem com mais de 30 anos ainda sustentado e maltratado pelo pai, Tyrone renega a morbidez, clamando por uma vida irreal de devoção ao trabalho (ao dinheiro) e a Deus (ao dinheiro), embora seja um católico relapso e muito pouco exemplar. Sua personalidade dúbia e hipócrita é claramente retratada quando, após ouvir os versos de Swinburne recitados pelo primogênito, ele diz "Passe-me essa garrafa, Jamie! E deixe de recitar essa poesia mórbida. Não a admito mais em minha casa." Edmund, o único que, em tese, está realmente condenado (tuberculoso, sem o interesse do pai em mandá-lo a um bom sanatório) passa o quarto ato tentando mediar o tenso encontro da família. Pede controle ao pai, calma ao irmão, compreensão para com a mãe. Resta a Mary, contudo, encerrar o drama com um emblemático regresso ao seu passado de jovem que, "durante algum tempo", foi "tão feliz". Certas vezes, cogita a morte, mas não possui coragem para, deliberadamente, exagerar a dose – e, sobre a morte, não é demais lembrar que The Poet, ainda identificado por Second Voice, em Fog, afirma “But death was kind to the child”. Retratando-a presa aos delírios provocados pela morfina, O'Neill transforma-a numa personagem realmente composta "da substância de que são feitos os sonhos" - de fato, ao fim da peça, informa-nos que Mary "Olha fixamente diante de si, mergulhada no seu sonho triste". Numa ironia amarga, num desencanto que permeia toda a obra, O'Neill não contradiz Shakespeare (o único autor que agrada ao pai e aos filhos), mas compreende que a tal substância de que são feitos os sonhos, muitas vezes, é apenas a morfina.

Linha 30

Gosto do conforto que o cinismo e a descrença oferecem. Mas não escrevo com intenção de buscar definições filosóficas ou existenciais para tais posturas: vou ser menor. Por menor, entenda-se que esse post busca apenas esclarecer (a mim e aos dois ou três que, por motivos que ignoro, se interessem pelo tema) a minha relação com o curso de Letras, sobretudo nos aspectos que, diante da reforma do ensino superior no Brasil, extrapolam a grade curricular e as preferências particulares e políticas dos que fazem a universidade. Extrapolam, a meu ver, com a intenção clara de tornar obsoleto o pensamento crítico e científico no que diz respeito aos estudos literários e aos estudos lingüísticos, respectivamente.

Antes que esqueça, segue uma explicação: falo de cinismo e descrença porque, por muito tempo, minha postura diante dos meus estudos universitários se baseou em cinismo e descrença. A rigor, fiz o caminho inverso da vida universitária típica — que se inicia sempre com ímpetos juvenis de renovação para acabar-se num lavar de mãos quase bíblico. Perto de encerrar o meu curso, percebi-me diante de certa responsabilidade — e não acho que a fuga seja uma atitude digna. Mas quero ir além de devaneios particulares, quero basear o meu texto no que, neste exato momento, ocorre no curso de Letras da Universidade Estadual de Feira de Santana — que, por sua vez, está apenas seguindo diretrizes dadas pelo MEC a todos os cursos de licenciatura em Letras do país.

A rigor, o MEC é visto e considerado sem desconfiança. Chega a ser espantoso: assumiu-se, de uma hora para a outra, que o Ministério da Educação tem uma história que lhe possibilita usufruir de um crédito quase ilimitado. Ainda não ouvi ninguém, na minha universidade, demonstrar algum discernimento diante dos documentos que devem guiar as graduações na área de Letras (e que não se esqueça, ainda, da atuação da CAPES no nível da pós-graduação). Óbvio que há uma sutileza no projeto do MEC, mas detectar especificidades de um discurso, sobretudo oficial, vindo de fonte com um histórico questionável, deveria ser especialidade nossa. Deixou de ser. Não se percebe mais nada.

O Ministério da Educação desejar tornar mais nítida a linha divisória entre a licenciatura e o bacharelado. Assim em Geografia, assim em Biologia, assim em Letras. Mas há uma armadilha clara nessa idéia: o curso de Letras tem um caráter específico — não encontramos letrólogos como encontramos geógrafos ou biólogos. O estudante formado em Letras, para atuar na área, vai ser quase que inevitavelmente professor. A idéia do MEC, então, continua: o curso de Licenciatura terá que, pouco a pouco, adequar as suas pesquisas, eliminando qualquer traço de "pureza", tornando-as pesquisas aplicadas ao ensino. Acredita-se, sabe-se lá como, que a pesquisa pura em Letras, seja lingüística ou literária, continuará sendo feita no âmbito do bacharelado, mas é óbvio que se trata de uma falácia: a tendência é que os cursos de bacharelado sejam ainda mais esvaziados. Pois não sei de muitas universidades brasileiras que poderão se dar ao luxo de financiar profissionais dedicados especificamente à pesquisa nos departamentos de Letras, esses marginais.

Daí que a conclusão é óbvia: o pensamento crítico na área de literatura e o caráter científico na área de lingüística estarão estagnados — ou, pelo menos, restritos a algumas poucas instituições nobres. A longo prazo, esse cenário indica, por exemplo, o fim da revisão crítica da obra de João Cabral de Melo Neto, Drummond ou Machado de Assis: em 100 anos, os professores brasileiros estarão ensinando, sobre esses autores, o mesmo que, hoje, nós ensinamos - o método será outro, o conteúdo será idêntico. Nenhuma visão nova surgirá. Óbvio que, no período de 100 anos, pode surgir um crítico que faça tal revisão — mas ele estará solitário e sua produção não encontrará eco no ensino superior e, portanto, não chegará aos níveis mais básicos da escola. Continuando nos exemplos, a pesquisa pura em lingüística, como o registro e a análise de particularidades da fala (que, para ser realizado, pressupõe a ida a campo), também vai parar no tempo — e ainda que isso soe mais estapafúrdio do que o exemplo literário, são idênticos, representam a mesma falência.

No meu convívio diário com os estudantes, percebo que a maioria corrobora a atitude do MEC. Partem do princípio absurdo de que o problema da educação no Brasil é um problema meramente didático e não estrutural, político ou mesmo conceitual. Crêem (e não duvidam sequer um instante) que a pesquisa pura não se reflete de forma alguma na sala de aula e que, por isso, é obsoleta, descartável. Tudo isso, naturalmente, é reflexo da nossa preguiça de pensar a educação em toda a sua significação e de acreditar que profissionalizar o professor é prepará-lo quase que fisicamente para ensinar nada.

domingo, 26 de julho de 2009

Linha 29


De início, afirmo que me ausentei desse espaço por motivos diversos e que nenhum deles merece ser citado. Pretendo retornar em breve. Por enquanto, ficam aí alguns pedaços de um ensaio sobre Roberto Bolaño. Mais um.

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Julio Cortázar jamais se recusou a ensaiar profecias, compartilhar quimeras e registrar suas singulares epifanias. Retorno, por ora, a uma breve declaração que se desloca entre essas três privilegiadas formas de conhecimento e intuição:
“El día en que América Latina cumpla su destino revolucionario, cualquiera leerá a Felisberto con la familiaridad que hoy falta en muchos lectores.” Refere-se a Felisberto Hernández, contista uruguaio, cuja narrativa, ainda hoje, parece estrangeira e incompreensível para tantos. Contudo, mais do que a referência à obra de Felisberto, interessa-me, agora, outro aspecto dessa frase: saber a que espécie de revolução se refere Cortázar. Como se percebe, existe também a idéia, central, de que a revolução, mais do que necessidade ou conveniência, é um destino — acontecerá, Felisberto será compreendido; resta-nos conjeturar acerca de datas e métodos. Não se explicita, contudo, se se trata de uma revolução política, estética, filosófica — sabe-se apenas que há algo diverso que aguarda o continente e pelo qual o continente também espera, num estado de suspensão e incompreensão de si mesmo. É, contudo, um processo continental, sem dúvidas supranacional. Superação de literaturas de nacionalidade, encerradas por fronteiras políticas.

Não é possível ignorar, porém, que o caminho inverso é tentador — sendo, paulatinamente, revigorado. Analistas e leitores, partindo do pressuposto equivocado de que a observação dos fenômenos latino-americanos enquanto latino-americanos é de procedência puramente européia ou norte-americana, fruto do olhar que ignora particularidades daquilo que despreza (o Uruguai, o México, a Guatemala, o Haiti, o Brasil), dão início a um discurso nacionalista, de viés claramente reacionário e anacrônico. Em certos momentos, na sua concepção algo defensiva, chegam também a ofender: minimiza-se o valor estético e mesmo político das obras do modernismo latino-americano. Jaime Alejandro Rodriguez Ruiz, por exemplo, afirma, a respeito dos modernistas, que

"Elogiaban lo universal y el cosmopolitismo, y precisamente por esto nosotros consideramos que aunque los modernistas dieron un visible empuje a la literatura hispanoamericana, no influyeron decididamente en la formación del concepto de la literatura nacional. Si es obvio que le garantizaron el vigor literario propio, pero únicamente en los aspectos formales".

Há, por trás de semelhante pensamento, a crença (que alguns poderiam imaginar ingênua, mas que me parece bastante pensada) de que a função primordial de romances, contos, dramas ou poemas é delimitar fronteiras, criar mitos fundadores de uma nação — crença que parecerá defasada em algumas centenas de anos. Não há qualquer tipo de apreciação ou consideração estética na afirmação de Rodriguez Ruiz: é puramente política. E é perceptível, ainda, um considerável menosprezo pelo valor político que as obras do modernismo hispano-americano possuíram: a súbita valorização que alcançaram autores como Cortázar, Onetti, Neruda, García Marquez, Vargas Llosa ou Borges também foi fundamental para a consolidação do peso histórico e político da América Latina.

(...)

Os detetives selvagens, nos dados de catalogação das obras de Roberto Bolaño, é classificado como mexicana enquanto que Amuleto é registrada e apresentada como "ficção chilena". A rigor, é de se esperar que México e Chile procurem enquadrá-lo no seu próprio cânone nacional — num ímpeto provinciano e orgulhoso. Cite-se, por exemplo, a enigmática (para dizer o mínimo) declaração do romancista espanhol Javier Cercas, segundo a qual Roberto Bolaño foi, acima de tudo, um "escritor espanhol". É uma luta vã, desperdício de tempo e força diante de uma literatura tão vasta e profunda quanto essa produzida por Bolaño, autor e cidadão latino-americano — como ele mesmo se declarou em entrevista à revista Playboy, quando questionado se se considerava "mexicano, chileno ou espanhol". A influência que Bolaño exerce na atual literatura em língua espanhola (e que não tardará a se transformar em paradigma a ser superado) deve-se, em parte, a esse seu desenraizamento, essa rara sensibilidade de tocar numa grande quantidade de temas, de não confinar-se aos tipos, problemas e paisagens de uma nação. Segundo Rodrigo Fresán, sua relação com Bolaño nasce, justamente, do fato de que não procuram "ser literaturas nacionais, porque as raízes foram postas na biblioteca e em sua leitura; eu sempre digo: a pátria é a biblioteca de um escritor, o DNA é a biblioteca". E não será difícil imaginar a profusão de livros do modernismo hispano-americano na biblioteca de Roberto Bolaño se acreditarmos na afirmação de Fresán — para quem Bolaño "em nenhum momento, trai os grandes temas da literatura latino-americana. (...) Lá estão o exílio, a derrota, os militares, a tortura, os desaparecidos, está tudo lá, os cavalinhos de batalha e todos os clichês (...)".

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Linha 28


Toquei nesse assunto ao longo do ensaio sobre Catulo. É mesmo o centro do referido texto, eu diria. Por isso, então, retorno. Há um verso de Calímaco, no Epigrama "XIII: 43", assim traduzido por José Paulo Paes:

"me aborrece tudo quanto seja público."

Não recordo o motivo, mas não citei esse verso no ensaio. A bem dizer, não recordar o motivo pode indicar uma falta de memória que me fez, também, esquecer do verso. Depois recordei-me, agora cito-o:

"me aborrece tudo quanto seja público."

Antes, o seguinte:

"Odeio também o amado a varejo, não bebo da fonte;"

Catulo enche sua obra de referências sarcásticas e depreciativas ao público. Assim se desenvolve sua lírica amorosa — sempre a caminho de poucos; no limite, a caminho dele e de Lésbia. Haveria uma óbvia contradição entre tal posicionamento e a construção de uma obra poética, mas aqui entra-se nos limites da poesia como representação direta e ingênua de desejos e sentimentos de um poeta ególatra e exilado em si mesmo. Essa não me parece ser a situação de Calímaco ou Catulo. Assim como não é a posição de Ricardo Reis, que escreve

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos. Tudo é alheio
ssssNem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
Onde esconder-nos, tímidos do insulto
ssssDo tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
ssssSeja sacro por nosso.

O Horácio grego que escrevia em língua portuguesa, como foi definido por Pessoa, tem essa obsessão casual. Catulo e Lésbia, Reis e Lídia: elevados, tornam-se estrangeiros diante da vulgaridade do que é alheio ao amor que sentem. Recordo-me ainda da engenhosa ode 84 — que quase é, ela mesma, a confusão que Catulo propõe em alguns dos seus versos. A bem dizer, a ode 84 tem uma lógica discernível, não se enquadra na movimentação moderna de poetizar de forma caótica — seria um despropósito ligar algum dos poetas aqui citados a esse fenômeno.

Se há indicação de um percurso que busca conduzir ao hermetismo puro e simples, ela não é central. Daí que é perfeitamente compreensível (no sentido de não ser obscuro) o poema amoroso de Catulo ou de Reis. Vai mais longe, no entanto, a indicada ode 84:

Quantos gozam o gozo de gozar
Sem que o gozem o gozo, e o dividem
sssEntre eles e o que os outros
Vêem que gozam eles.

E, mesmo assim, não se trata de caos, mas de uma lógica algo rara e baseada na repetição do termo gozar e variantes que, a princípio, soa aborrecida e desnecessária. Mas são bons os versos que encerram:

Cada um é ele só, e se com outros
Goza, dos outros goza, não com eles.
sssAprende o que te ensina
sssTeu corpo, teu limite.

É possível perceber, inclusive, que é um caminho absolutamente diverso do percorrido pela poesia modernista, que busca liquidar limites — o fato dessa busca conduzir até a obscuridade e a limitação da poesia a um número bastante restrito de leitores é assunto diverso. O problema no qual se concentrar, por ora, é outro: o verso modernista, o obscuro e pessoalíssimo verso modernista, é o verso do eu que não quer limites. Mas, a bem dizer, já tenho pudores em me referir a um verso "modernista".

***

Dirceu Villa, no já famoso "Como diz o tenente Columbo: I’m just tying up some loose ends here, that’s all" dá certas alfinetadas no ensino literário brasileiro:

"A peculiar infelicidade, no Brasil, quando pensamos (supondo que se pense nisso, que alguém o faça) numa educação literária, poderia ser, de início, o fato dela simplesmente não existir.

Mas vou evitar toda espécie de fatalismo, & direi que é, em uma palavra, o culto do típico."

Certo. Daí meu pudor em falar de modernistas — pudor que existe também ao falar de parnasianos, simbolistas, barrocos, etc. Há uma justificativa para tudo: dividir a literatura em escolas é facilitar o trabalho em sala de aula. Mas é também torná-lo tedioso e desvirtuado. Sei de algumas necessidades — como, por exemplo, a de estudar enquanto escolas os movimentos que se pretenderam, de fato, escolas, inclusive definindo marcos e escrevendo manifestos. Justo. Mas daí a estudar os ditos poetas barrocos dessa forma vai um passo e tanto.

Pois então, se a escola literária é um empecilho para o ensino e quase inútil para a crítica, deve-se insistir? Sua função, a princípio unificadora, facilitando o entendimento superficial de diversos autores com base em ligações legítimas entre eles, torna-se tanto simplificadora quanto desagregadora, visto que impede o jovem leitor de provocar um contato verdadeiro entre Camões e um poeta do romantismo, entre Camões e Pessoa — assim como desabilita a demarcação de diferenças e contradições entre o Camões de um soneto e o Camões de outro soneto.

***

Mas é que o caminho que interessa e que cabe ao aluno, que é o da dúvida, infeliz e hipocritamente não pode ferir a dignidade e a pretensa sabedoria do professor. Mas retorno aos poemas.

***

Há que se atentar às aparentes ou verdadeiras contradições que, inevitavelmente, serão encontradas no desenvolvimento e mesmo na origem das diversas linhas da poética ocidental. Há o profundamente subjetivo que se espalha, o essencialmente objetivo que se isola. Tal constatação, ainda que traga confusão à percepção do leitor, é necessária e útil para que sejam derrubadas as noções estanques e tediosas acerca do lirismo, gênero que, desde o batismo, já se destinava à confusão.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Linha 27


Decidi parar de ler ficção e, por seis meses, estive longe de romances e contos. Retornei semana passada, li A noite dos cristais, de Luís Fulano de Tal, e estou lendo Putas assassinas, coletânea de contos assombrosos de Roberto Bolaño. O exílio sempre influencia e, no retorno, tudo nos sabe melhor. Lembro que, em janeiro, li Joyce de forma automática e estúpida. Agora posso ler Lazarillo de Tormes com os olhos devidos. Mas quero chegar a Alfonso Berardinelli, crítico literário e ensaísta italiano. Polemista, gosta de escrever contra qualquer tipo de uniformização. É conhecido o seu elogio do provincianismo. Também a sua desconfiança diante da obscuridade. É bom lê-lo quando ironiza Umberto Eco ou quando desconstrói Hugo Friedrich. Verdade que, vez ou outra, comete o mesmo pecado dos seus alvos e tende à uniformização, sobretudo no que diz respeito à poesia norte-americana — mas não serei eu a exigir santidade e ausência de pecados na conduta intelectual de quem quer que seja. E é do romance que quero falar. Mais propriamente, das idéias de Berardinelli sobre o romance. O italiano parece assustado diante da profusão de livros desse gênero e dos números expressivos em suas vendas. É justo: quem já conversou com escritores, quem conhece um pouco que seja do mecanismo e da relação entre artistas e editoras, sabe que o romance é a meta, que o romance é a exigência e que, caso haja encomenda, será encomendado um romance. É fácil discernir a situação quando se fala em best-seller, gênero consumido pela burguesia semiculta, mas desprezado pelos semi-intelectuais — os mesmos semi-intelectuais que, quando o assunto é distanciado das listas de vendas, têm a visão obliterada e já não percebem mais o engodo. Entenda-se: basta um leve verniz para que se tome Daniel Galera como exemplo de romancista absolutamente oposto à Fernanda Young. Entenda-se ainda: essa separação se baseia num critério inválido, que julga a obra a partir do escritor, da imagem pública do escritor, excluindo-se por completo qualquer consideração acerca da qualidade do que está escrito. Trata-se, obviamente, de um argumento ilusório que serve para preservar e aguçar a vaidade dos leitores jovens e semi-intelectuais, no caso de Galera, mas que pode servir também aos adultos semi-intelectuais, aos velhos semi-intelectuais ou a qualquer outro grupo semi-intelectual que se reúna em torno de Bernardo Carvalho, Daniel Galera ou João Paulo Cuenca — para fechar com três nomes. Escreve Berardinelli sobre o otimismo com o romance que ele é "parte daquela disseminada democracia cultural, fatalmente hipócrita, que deve oferecer a todos a possibilidade ou a ilusão de ser tudo: até romancistas. Ou seja, a democracia mata o romance ao incentivá-lo; ou o incentiva tanto assim porque sabe que já o matou." Diz o italiano que aquilo que falta é autocrítica. Por outro lado, é inevitável perceber, sobretudo no caso brasileiro, que antes disso falta mesmo a crítica: não é incomum, por exemplo, ouvir acadêmicos afirmando que não se pode julgar obra alguma a partir de um critério (que eles julgam impossível) de qualidade. Há que se entender as diferenças e respeitá-las. Transforma-se o crítico num compreensivo e passivo leitor que, nos seus escritos, tece exegeses desnecessárias e óbvias sobre o lido. As considerações estéticas resumem-se em clichês que tomam cerca de três linhas do texto. De resto, elucubrações sobre um vago sentido da obra. A última polêmica sobre o romance brasileiro foi levantada por Décio Pignatari. Há muito de exagero: sua fixação por um romance urbano e industrial é tão vaga e supérflua quanto a idéia, que ele diz ser disseminada entre os escritores brasileiros, de que o romancista só precisa contar uma história. É simples: levar esse preceito urbanóide ao extremo é a mesma coisa que avaliar o romance pela história contada, pela ambientação da história que se conta, pelo caráter típico do personagem que compõe a história contada. Pignatari usa o mesmo método, modifica apenas os objetos: sai o mato, entra o asfalto; sai o cavalo, entra o ônibus, etc. Acredito que isso dê a medida justa do momento que a prosa brasileira atravessa: romancistas que se tornam celebridades, celebridades que se tornam romancistas, professores que se eximem covardemente da crítica, críticos que desistem de ensinar. É o cenário, o ambiente ideal para perpetuar o romance quase bom, feito sob encomenda, cujo estilo ordinário se justifica pela secura do tema e cuja data de validade só não vem indicada na quarta-capa por pudores incompreensíveis dos editores e por desleixo das entidades de defesa do consumidor.