Machado em particular
Mário de Andrade, em Aspectos da literatura brasileira, inicia seu escrito sobre Machado de Assis assumindo alguns riscos. E sua postura vai além, pois parece que gosta mais de se mostrar arriscando do que de propriamente arriscar. Orgulho compreensível do crítico: escrevendo em 1939, Mário já mexe num nome sagrado, já toca no intocável. Verdade que, à época, a fortuna crítica do Bruxo não era ainda tão vasta e nem tão laudatória (considerando-se, aqui, que a louvação aumentou na medida em que a fortuna também cresceu), mas já era, sim, um ato de coragem e de orgulho questionar nosso gênio em algum ponto. A condição sui generis da prosa ensaística de Mário não se encerra aqui. A idiossincrasia parece ser seu recurso preferido — e lemos o homem começar seu texto falando de amor. Não se ama Machado, não se pode amar Machado — Mário está convicto de que a sua admiração, de que a sua estupefação diante da obra de Machado não pode se converter em amor. Mas aqui se inicia uma confusão elementar: Mário já não está nos falando da obra, mas da figura. Na sua concepção, a obra de Machado aparece comprometida pela sua figura, que o ensaísta julga desagradável, pernóstica. Dá-nos alguns exemplos de escritores "amáveis": Castro Alves, Gonçalves Dias, Camões, o Dante lírico e juvenil da Vita Nuova — artistas aos quais não faltam "dons de generosidade", "confiança na vida e no homem" e "esperança". Embora me pareça difícil definir até que ponto Mário se deixa seduzir pelo biografismo, sobretudo porque hesita educadamente diante das conclusões de Peregrino Júnior a respeito das relações entre a obra de Machado e a sua doença, é inegável que a sedução e a entrega existem. Mas, para contrariar a sua idéia de amor literário, recordo-me, por ora, de Jack Kerouac, autor cuja obra é amada por um sem número de jovens leitores — ainda que, em certo momento da vida, ele tenha se tornado a antítese de tudo que a sua escritura revolucionária representa: um homem obeso, infeliz e reacionário que deplorava aquilo em que, junto com seus personagens, costumava acreditar. E o amor por On the road, no entanto, persiste.
Por ora, basta com Mário. Também preciso declarar os riscos que assumo: concentrando meu texto em outros textos que não as Memórias Póstumas propriamente, posso perder-me e encerrar o ensaio voltando-me pouco para Machado. É questão de modéstia, mas também de ousadia: modéstia ao reconhecer que não se diz algo válido sobre Machado acreditando-se sozinho diante da obra, desprezando o diálogo com quem, em diversos momentos, já se meteu a conhecê-la realmente; e ousadia, afinal, porque é minha intenção fugir de uma exegese básica e inevitavelmente repetitiva: estou interessado em superar a minha própria perplexidade diante do fenômeno machadiano que, em certa medida, também oblitera a minha apreensão da grandeza literária de sua obra — grandeza que o leitor brasileiro já não se preocupa em descobrir, contentando-se em reconhecer, constatando a descoberta alheia.
Não são poucas as minhas inquietações relativas à consolidação de Machado como o maior ficcionista brasileiro. Primeiro, volto-me às generalidades: fala-se muito de Machado 1) como um observador arguto da sociedade em que viveu e 2) com protagonista solitário da revolução realista na literatura brasileira. Na maior parte das vezes, o segundo ponto termina por ser submetido ao primeiro e a dita revolução machadiana não encontra a devida análise formal: a revolução literária se resume à revolução de ordem semântica. O valor de Machado, então, cresce a partir do momento em que determinado capítulo ou conto pode servir de ilustração a determinado aspecto ou fato social de época. Não é algo estranho à tradição crítica brasileira, tão pouco dada às análises estéticas ou formais, tão afeita aos estudos de extrato sociológico ou histórico. Roberto Schwarz, no que diz respeito à crítica específica de Machado, é talvez o exemplo mais bem acabado desse tipo de abordagem. Não se trata, de forma alguma, de negar o valor de estudos que se pautem nos princípios aqui considerados, mas de buscar ampliar o número de sistemas críticos na literatura brasileira e, afinal, na consideração da obra de Machado. O trabalho de Schwarz, a meu ver, parte da louvável tentativa de compreender o fenômeno machadiano e de situá-lo em seu tempo e espaço — a sua busca, nesse caso, é pela superação do deslumbramento, pelo entendimento do terreno que pôde gerar Machado de Assis. No entanto, a sua conclusão de que são os narradores machadianos, a partir das Memórias Póstumas de Brás Cubas, que permitem a escritura daquela prosa diferenciada (e que isso se dá por conta da adoção, por parte do escritor, do ponto de vista da elite brasileira), não me parece satisfatória. Schwarz gosta de enfatizar o que chama de aspectos "extra-estéticos" — mas sigo me perguntando de que modo um elemento extra-estético pode chegar a fazer parte de uma obra de arte sem se tornar, ele mesmo, um elemento estético em sua essência; e, embora Schwarz pareça aceitar essa premissa, em momento algum ele esclarece satisfatoriamente o modo como isso se dá na obra que analisa. Lukács, crítico e teórico caro a Schwarz, escreveu que “(...) uma tal concepção social não está em condições de oferecer ao crítico uma norma objetiva para julgar o valor estético dos fenômenos literários” (p. 225). Referia-se, àquele época, ao que chamava de “sociologia vulgar”, espécie de degeneração burguesa e decadentista, no âmbito da crítica literária, das relações entre arte e sociedade no século XIX — e aqui parece-me difícil tirar-lhe a razão. No entanto, a concepção social marxista, ainda que de natureza diversa da vulgarização sociológica apontada por Lukács, ainda que amparada numa objetividade que alcança o determinismo (ou justamente por isso), também perde a condição de oferecer ao crítico não uma norma, mas um método devido para julgar o valor estético dos fenômenos literários em suas particularidades. Percebe-se o perigo constante e real dos absolutismos e, sobretudo, do proselitismo.
A "conversão" dos elementos extra-estéticos, citada no parágrafo anterior, se impõe em todos os níveis e espécies de elementos extra-estéticos — e quem nos mostra a sua medida é o próprio Brás Cubas num capítulo direcionado aos críticos (CXXXVIII). Explica-nos brevemente as alterações de andamento e estilo de sua frase afirmando que "em cada fase da narração da minha vida experimento a sensação correspondente." A dita volubilidade desse narrador, que Schwarz prefere tributar à sua condição de brasileiro bem-nascido, é tratada, no romance, como decorrente das contradições e das metamorfoses do próprio homem — e, se não do homem geral, do homem que é Brás Cubas. Noutro momento, lê-se que o homem é "uma errata pensante... Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes". Considerando que a vida de Brás Cubas é o próprio livro, livro este repleto de gêneros, tons e traços literários diversos, não seria um disparate pensá-los (a Brás Cubas e ao livro de Brás Cubas) como a narração de sucessivas erratas cuja edição final é, como indica a dedicatória, dada literalmente aos vermes — o corpo enterrado e o livro oferecido. Perceba-se, então, que os registros volúveis do romance, mais do que da condição social do narrador, decorrem da intricada relação das tendências do indivíduo com as mediações daquilo e daqueles que cercam esse indivíduo; essa premissa parece livrar Machado de uma análise determinista (uma espécie de vertente econômica do naturalismo de época) à qual Schwarz procura submetê-lo. A referida volubilidade, por exemplo, é capaz de se fazer presente, inclusive, nas reviravoltas que atingem as vidas de pobres e miseráveis como Prudêncio e D. Plácida — portanto, não é, de forma alguma, exclusividade do narrador de elite. Schwarz, naturalmente, opõe-se à leitura das Memórias nesse sentido. Mais adiante, retornarei ao ponto. Por ora, volto a Mário de Andrade.
É curioso notar que, a certa altura do seu ensaio, Mário entenda Machado de Assis como um autor pouco propício a interpretações de ordem histórica e sociológica:
"Como um acadêmico, era um desprezador de assuntos. Era um estético. Era um hedonista. Há contos dele movidos com tão pouca substância, tão sem uma base lírica de inspiração, que se tem a impressão de que Machado de Assis sentava para escrever. Escrever o que? Apenas escrever. Sentava para escrever um gênero chamado conto, chamado romance, porém não tal romance ou tal conto. E é porque tinha no mais alto grau uma técnica, e bem definida a sua personalidade intelectual, que saiu este conto ou aquele romance". (p.106)
Essa visão de Machado é certamente equivocada e, como se sabe, vai sendo abandonada pouco a pouco com uma notável profusão de trabalhos que enfatizam a relação íntima (se bem que desconfortável) entre Machado e os temas da época em que viveu e escreveu. Pode-se, numa primeira leitura desatenta, acreditar que "Missa do galo" foi feito sob as circunstâncias descritas por Mário, que Machado sentou-se e escreveu-o, mas qualquer observação atenta ao conto revela a poderosa substância psíquica de que os personagens, por exemplo, são compostos.
O posicionamento representado por Mário, no entanto, não parece ter gerado em momento algum (no seu ensaio, pelo menos, em momento algum) uma crítica propriamente estética. Parece-me que a fortuna machadiana passa do biografismo extremo para o historicismo igualmente exagerado, sem nenhuma mediação de ordem estrutural, formal ou, enfim, estética. Predomina, na nossa tradição crítica, o estudo do que Todorov chama relações literárias in absentia ("relações entre elementos presentes e ausentes" p. 21) em detrimento das relações in praesentia ("relações entre elementos copresentes" p. 21). O teórico búlgaro afirma, naturalmente, que não se tratam de relações absolutas. Como exemplo, escreve que "Há elementos ausentes do texto que estão de tal modo presentes na memória coletiva dos leitores de uma dada época que temos praticamente de nos haver com uma relação in praesentia" (pp. 21-22) — e isso, ao que parece, foi percebido pelos críticos na obra de Machado. Abriu-se um caminho promissor para novas leituras, mas não há indícios de que ele tenha sido devidamente explorado.
A princípio, parece-me um disparate posicionar-se contra a utilização de textos literários como fontes históricas. A literatura, sendo um produto humano, está lançada aos humanos, que a utilizam das mais variadas formas — e utilizá-la historicamente é uma das formas mais previsíveis e compreensíveis. O grande equívoco, no entanto, é desrespeitar o caráter particular do texto literário e tratá-lo como mero documento. Todorov escreve que "pondo a literatura no mesmo patamar que qualquer outro documento, desistimos, evidentemente, de ter em conta aquilo que a qualifica como literatura" (p. 28). Não se pode acreditar na possibilidade de tratar um texto literário historicamente sem tratá-lo esteticamente. E tratá-lo esteticamente é tratá-lo em todas as suas instâncias, sejam elas semânticas ou formais. É óbvio que essa visão total da obra não invalida uma posterior divisão a título de estudo — contudo, o estilo, a linguagem, as figuras retóricas, etc. são partes integrantes da estrutura primária de um texto ficcional; a História, por sua vez, não o é: está presente no texto, mas só pode ser alcançada por meio da consideração estilística, de linguagem, etc. Inverter essa relação no processo de análise é comprometer a leitura.
Tudo o que aqui se buscou resumir e entender, a meu ver, está ligado, sobretudo, à leitura de Machado de Assis como um autor realista ou, sendo ainda mais específico, à leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas como um romance realista. É sabido que Machado repudiou o preceito realista. Sobretudo ao criticar Eça de Queirós, o escritor brasileiro foi admiravelmente enfático: "Este messianismo literário não tem a força da universalidade nem da vitalidade; traz consigo a decrepitude (...) Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética"; antes, é irônico com as descrições excessivas, típicas do gênero: "Porque a nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha". É bastante simbólico que, nas Memórias Póstumas, o capítulo mais descritivo se concentre num delírio sofrido pelo narrador. Ainda assim, mesmo nesse capítulo, surgem algumas invectivas contra a descrição: "Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago". E, se se quiser encerrar definitivamente um parágrafo sobre a negação do Realismo por parte de Machado, cite-se outra afirmativa sua: "há um limite intranscendível entre a realidade, segundo a arte, e a realidade, segundo a natureza".
A partir do Machado anti-naturalista e anti-realista seria possível inferir, além de um Machado em posição contrária à do seu século darwinista, um Machado convicto da superioridade humana. Passo equivocado. Isso seria tomar Machado pelo Brás Cubas que, ainda não convertido ao Humanitismo, se depara com insetos e, aproveitando-se da ocasião, trata de afirmar sua superioridade em relação aos invertebrados. Mas a intenção de Machado, nessas cenas, é irônica. Machado jamais poderia, tal qual Quincas Borba, dissertar séria e apaixonadamente sobre a estreita relação entre a briga de dois cães por um osso e as disputas humanas. Ao que parece, só poderia observar tais disputas em níveis distintos, se bem que não hierarquizados: Machado se interessa pela consciência do homem não como um trunfo óbvio, mas como uma espécie de perigo sutil e perene. Por isso diz Pandora: "Vives: não quero outro flagelo"; por isso Brás Cubas vê o prazer, também no delírio, como uma "dor bastarda". À época, inexistiam idéias ou estilo semelhante no romance brasileiro, que nascia romântico. E, posto que o Ceticismo não foi escolhido como nome de nenhuma corrente ou escola literária, Machado foi filiado ao Realismo.
Inicialmente, o Realismo parece entendido, nesse caso, mais como uma reação e um posicionamento contrários ao Romantismo (no qual cabem as mais diferentes estéticas desde que todas elas se pautem — e aqui uso a definição algo rasteira da tradição didática brasileira — numa idealização menor ou inexistente) do que como uma escola coesa e discernível. Ainda hoje esse parece ser um problema didático decorrente de um entrave crítico. Todorov, a esse respeito, escreve que
"O problema da relação entre literatura e factos extraliterários confundiu-se muitas vezes, sob o nome de 'realismo', com um outro, que consiste na conformidade do texto particular com a norma textual que lhe é exterior; esta conformidade provoca a ilusão do realismo e faz-nos qualificar esse texto como verossímil". (p. 28)
Nada mais inverossímil do que o ponto de partida das Memórias Póstumas: o homem morto que pode narrar. Entenda-se que não importa se o narrador está morto de fato ou se finge de morto: o pressuposto inverossímil e agressivo em relação ao Realismo está presente nos dois casos. Daí que a definição moderna (aceitemos o moderna por falta de termo mais adequado) de Machado de Assis como realista é de outra índole, muito mais sociológica e política do que formal. Schwarz, por exemplo, parece pouco interessado em qualquer espécie de definição de uma corrente literária realista, sobretudo se específica do século XIX, mostrando-se mais preocupado com o realismo na medida em que este se define pelas intersecções entre obra ficcional e elementos extra-literários, sobretudo sociais e políticos. Trata-se de uma inegável (e potencialmente enriquecedora) evidência de transição do viés crítico sob o qual a obra de Machado havia sido trabalhada.
O perigo óbvio desse viés é o de desfazer o texto machadiano apenas em referências históricas concretas. Em entrevista a Augusto Massi, Schwarz afirma que "Machado é o romancista da desfaçatez das elites brasileiras, e não do 'homem em geral', como freqüentemente se diz" (p. 222). Trata-se de uma afirmação bastante redutora — que de forma alguma dá conta da complexidade dos personagens machadianos. Como já foi dito, a própria volubilidade e iconoclastia de Brás Cubas, apontada por Schwarz como traço central para a revolução da prosa de Machado, não é característica única dos personagens de elite — aliás, parece-me difícil vislumbrar uma elite brasileira do século XIX marcada pela iconoclastia e pelo anti-dogmatismo de Cubas. Schwarz continua dizendo que "A idéia é de superar o estudo a-histórico das formas, do qual uma história das formas que não saia do próprio plano delas na verdade é apenas uma variante" — e eu completaria afirmando que o estudo das relações entre forma e conceito marxista de história, a partir de um determinado ponto (no qual tanto historiador quanto crítico se vêem obrigados a ilustrar teses pré-determinadas) torna-se, também ele, a-histórico, de um formalismo estéril, desligado do mundo. Schwarz acredita que limitar o homem machadiano ao homem da elite brasileira é estar de acordo com os preceitos do próprio Machado. Antes, porém, atente-se para o fato de que Schwarz considera “metafísico” (aqui entendido como discurso vazio e despropositado) qualquer pensamento que se refira ao romancista preocupado com questões humanas “em geral”. O crítico cita “Teoria do Medalhão” como exemplo de que Machado adotava postura semelhante à sua: “Conforme o mestre [o pai que aconselha ao filho a profissão de medalhão], a maneira infalível de não dizer nada é evitar a controvérsia e limitar-se, de um lado, aos ‘negócios miúdos’, e, de outro, ‘à metafísica’” (p. 53). Schwarz, nessa citação, suprime uma parte fundamental do texto de Machado: nele, lemos o personagem dizer, em realidade, “metafísica política”. Nas questões políticas, de acordo com o romancista, dedicar-se à metafísica é, de fato, uma “nulidade”, mas não acredito que seja possível inferir que, no que concerne à arte, Machado tome posicionamento semelhante. Esse é, naturalmente, o teor do pensamento crítico e artístico do próprio Schwarz, marxista em sua essência — teor que ele procura imputar a Machado, autor dado, ao seu modo irônico e desconcertante, à filosofia em geral.
Outro exemplo muito claro desses perigos pode ser visto em Machado de Assis Historiador. Seu autor, Sidney Chalhoub, é historiador e a sua preocupação, naturalmente, se concentra nas possibilidades de retirar referências a fatos históricos do texto de Machado. No capítulo dedicado às Memórias Póstumas, por exemplo, reflete sobre um suposto "significado da febre amarela no Brasil da segunda metade do século XIX" (p. 121). Segundo Chalhoub, a morte de Eulália, com quem Brás Cubas pretendia se casar, não foi bem assimilada pelo narrador porque a febre amarela, "ao contrário da cólera e da varíola, (...), fazia número bem maior de vítimas entre a população branca (...)" (p. 121) tendo, portanto, uma lógica desconcertante: "dizimava brancos, seres tidos por superiores, e não causava maiores estragos entre os africanos e seus descendentes" (p. 122). Não sei até que ponto tal interpretação é sustentável, sobretudo se levarmos em conta que Brás Cubas, ao afirmar "Creio até que esta [a morte de Eulália] me pareceu ainda mais absurdas que todas as outras mortes", termina por compará-la também às outras mortes de outros brancos — aqui, portanto, não é tanto a consciência ultrajada da "raça" ou classe dominante que sucumbe e se revolta diante da febre, mas a individualidade do homem caprichoso que perde a futura noiva.
Ainda que, como afirma Todorov, práticas como essas neguem "o carácter autónomo da obra literária" e a considerem "como manifestação de leis que lhe são exteriores e que dizem respeito à psique, ou à sociedade, ou então ao 'espírito humano'" (pp. 10-11), suas realizações inscrevem-se como possibilidades abertas e indicadas pelo próprio Machado. O problema central é a predominância absoluta dessas vertentes. Na contramão, cite-se, a título de rápido exemplo, José Guilherme Merquior (para quem Machado foi um autor filiado ao impressionismo) e Alfredo Bosi, que busca conciliar o Machado "das elites brasileiras" e o Machado do "homem em geral". Parece-me impossível fugir dessa relativização e da conseqüente solução apontada por Bosi. O próprio Machado, no seu clássico ensaio "Instinto de Nacionalidade", faz alusão a essa estratégia de universalização da província.
Mas não posso, por ora, contentar-me com tão pouco. Na busca de maiores esclarecimentos, vou direto à obra.
Sublime és tu!
"Sublime és tu" é uma frase de Brás Cubas dirigida a Quincas Borba motivada por uma "profunda" refutação que o filósofo fez a um alienista que vislumbrara sandice em sua mente. Assim se passa a cena: o alienista, a título de exemplificar o grão de loucura que ocupa todos os homens, cita o "maníaco ateniense" que "supunha que todos os navios entrados no Pireu eram de sua propriedade" e era feliz assim. Em seguida, o alienista aponta o criado de Cubas, que se mostra bastante orgulhoso ao sacudir os tapetes da propriedade e que, tal qual o maníaco ateniense, perdia-se e contentava-se com a ilusão de ser o dono da tapeçaria e também era feliz dessa maneira.
Ao expor a tese do médico ao filósofo, Cubas ouve uma explicação diversa: "O que o teu criado tem é um sentimento nobre e perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: é o orgulho da servilidade", uma "prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, é sublime".
Aquilo que se deve perceber, nesse caso, é que o alvo central da ironia machadiana é o arranca-rabo existencial do Humanitismo, filosofia cujos preceitos, nesse caso, servem, sim, à perpetuação de diferenças classistas — interesse óbvio da elite brasileira. Porém, ao ridicularizar a postura conservadora e passiva do filósofo, Machado alcança ainda as idéias que se pautam na diferenciação dos homens a partir das distinções de classe, filiando-se à universalidade da loucura exposta pelo alienista.
Há, portanto, um nítido jogo de duplicidade semântico e, também, formal. Semântico pelas possibilidades diversas de apreensão da crítica e da ironia; formal porque o trecho entrelaça um narrador explícito, Brás Cubas, que se conforta na teoria do filósofo, e um autor implícito, que é o próprio Machado, prosador bastante afeito às intervenções nas suas obras, responsável pelo tom de sarcasmo que chega ao leitor. Assim, creio que é exagero creditar à voz típica da elite toda a responsabilidade pelas inovações narrativas de Machado: parece-me, antes, um resultado da volubilidade humana (já considerada anteriormente) e da dupla e antagônica perspectiva que Machado alcança a partir do momento em que passa a se utilizar da primeira pessoa, escondendo-se, ele autor, num discurso velado em contraponto constante e total à postura de Brás Cubas.
Como Alfonso Berardinelli aponta, houve, em tempos recentes, uma tendência geral a desconsiderar ou minimizar o papel do autor na construção da sua própria obra:
"A onisciência do escritor (um tanto rejeitada ou criticada nas últimas décadas: como se o autor não pudesse saber tudo das personagens que ele mesmo cria!) deve-se ao simples fato de que toda a realidade da personagem está nas mãos daquele que a está colocando em cena (...)" (p. 128).
Observo Machado como uma vítima recorrente desse expediente. É sobretudo na análise de Dom Casmurro que se costuma menosprezar os objetivos do autor e os meios de que se utiliza para lográ-los, mas também aqui, nas Memórias, há, por parte de críticos e leitores, uma considerável e indevida diminuição da presença do autor. Pois as Memórias Póstumas de Brás Cubas são, no mínimo, uma co-produção entre Cubas e Machado.
Marcela amou-me...
O fetiche do dinheiro, seja através da avareza, da ambição ou do esbanjamento, é trabalhado até a exaustão por Machado. Seu centro e ponto culminante é o trecho que liga os capítulos XVI e XVII, o célebre "(...) Marcela amou-me..." e "... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos". Tamanha justeza com o tema parece só ter sido outra vez alcançada em língua inglesa: Scott Fitzgerald, a certa altura de The Great Gatsby, escreve sobre uma personagem cuja voz é "full of money". As duas frases alcançaram se tornar clássicas pelo inusitado das relações que estabelecem.
Em Machado, acredito que se pode vislumbrar, no caso de Marcela, um dos momentos mais nítidos da presença dupla de narrador e autor nas páginas do romance. Para tanto, é necessário que se chegue, mais adiante, ao capítulo XXXVIII, no qual Brás Cubas reencontra uma Marcela com "a alma decrépita". Esse encontro fortuito e algo arbitrário indica a participação direta de Machado que, tal qual um moralista, faz reaparecer a personagem ambiciosa num estado de decadência. Aqui, o que se lê é um Machado tributário de certa tradição de narrativa esquemática (ainda que apareça, no contexto do romance, a partir de um encontro imprevisível e surpreendente) da qual, em outros momentos, ele foge deliberadamente.
Schwarz, em determinado trecho de seu estudo, escreve que "Mas é certo também que, a despeito da superioridade de todos os momentos, o narrador faz sempre figura de inferior: algo nas suas vitórias não convence, e a série delas configura uma completa derrota" (p. 44), afirmativa da qual acredito que seja difícil discordar. Sua explicação para esse fenômeno, no entanto, não convence; diz que "A volubilidade no caso é um valor relacional, que a concebe e processa referido ao padrão burguês da objetividade e da constância" (p. 44). Creio ser possível observar, na leitura das Memórias Póstumas, dois eixos distintos de volubilidade, quais sejam, 1) a volubilidade inerente à condição do homem, representada diretamente na figura do próprio Brás Cubas (que pode contê-la inteiramente ou representá-la em parte) e evidenciada tanto nos atos narrados quanto na variação constante da forma de narrá-los e 2) uma volubilidade de ordem ética e moral que nasce da presença constante do próprio Machado na narrativa. Esta última, em geral, se dá em paralelo com a primeira volubilidade citada — ainda que, vez ou outra (como no reencontro entre Cubas e Marcela), se explicite verdadeiramente em capítulos distintos.
Por isso, afinal, acredito que reputar a volubilidade moral, ética e formal (que é tanto do personagem Brás Cubas quanto da obra literária Memórias Póstumas) ao "padrão burguês da objetividade e da constância" e sua adaptação à sociedade escravocrata brasileira é subestimar essa presença de uma dupla voz na narrativa, expediente que, em Dom Casmurro, Machado voltaria a utilizar com uma maestria até então desconhecida.
Mário de Andrade escreve que "para se cultuar Machado de Assis, há que ser meticuloso". Não seria uma desfaçatez completa roubar uma observação tão verdadeira, adaptando a referida meticulosidade justamente ao que aqui se indicou como aspecto mais complexo e problemático das Memórias Póstumas. Assim que, se há muito a ser discernido ao longo da obra, sua leitura é, antes de tudo, um trabalho crítico que será proveitoso desde que não se distancie do seu objeto — no qual todas essas instâncias aparecem de forma simultânea. Pode-se dizer que decompô-la para fins eruditos é algo que cabe ao estudioso — no entanto, a leitura feita sem a atitude crítica do discernimento é caminho para equívocos ou para a aceitação passiva de pressupostos e conclusões alheias. Machado é um enigma a ser resolvido por qualquer um que procure entender o desenvolvimento da literatura brasileira — e acredito que essa resolução será mais válida na medida em que for buscada de forma particular. Portanto, não é exagero ou gratuidade utilizar-me de um expediente caro a Brás Cubas, rebaixando o gênero e o escrito com adaptações de frases feitas, afinal, é cada um com seus Machados — e resolva-os quem puder.