quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Linha 55


Há certos autores que, de tão mal tratados e revirados pelo senso comum, não podem ser lidos: o primeiro contato com suas obras já é uma releitura. A celebridade vitimizou autores como Dante ou Kafka, por exemplo — mas, apesar de fazer a constatação, não estou muito disposto a observar o fato como um problema sério. Este tipo de releitura, considerando o leitor como uma figura relativamente autônoma e sensata, acaba incitando uma espécie de crítica imediata que alerta para a necessidade de desconfiança e para a possibilidade de redimensionar conceitos e preconceitos variados.
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Estou atravessando uma experiência deste tipo enquanto leio Byron. O Lord, massacrado pela historiografia literária brasileira ao ser associado ao que de pior havia no romantismo (ainda que, de passagem, fosse aludida a sua ligação com o que de melhor havia no romantismo, a saber, a auto-ironia, o humor negro, etc.), está muito além do sentimentalismo desenfreado e tolo. É claro que a desfaçatez metrificada de Byron provocou alguns ecos no romantismo brasileiro, os mais óbvios entre Álvares de Azevedo e Sousândrade — mas o primeiro tem algo mais típico a ser ressaltado (o chororô) e o segundo esteve esquecido por um longo tempo.
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Os excertos do Don Juan, selecionados e traduzidos por Augusto de Campos (com sua peculiar liberdade), têm uma força e uma eficácia raras e conseguem reunir, sob o signo do riso e da amargura, reflexões filosóficas (sempre beirando o ridículo, de forma muito calculada), observações sociais e preocupações com a forma e a fama do próprio poema que está sendo escrito, uma espécie de metalinguagem desabusada que não se importa de fazer graça com Dante, Virgílio ou Homero.
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Estes trechos são chamados por Augusto de Campos de "digressões" e nenhum ou quase nenhum deles toma parte direta nas narrativas das peripécias do personagem que dá título ao poema. Segundo o tradutor, também ele observava Byron como uma "legenda padronizada" — à qual só passou a prestar atenção após o seu contato com Sousândrade, que tinha um apreço particular pelo inglês. Neste ponto chegamos a um outro problema.
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Byron é citado nominalmente no famoso "Inferno de Wall Street", que faz parte d'O Guesa. Como se sabe, este é o trecho mais lido, relido e louvado do épico brasileiro porque este é o trecho ao longo do qual Sousândrade tem sua linguagem perturbada, fugindo da regularidade que preenche quase todos os outros espaços da obra e fazendo antecipações de métodos modernistas como a colagem — é, enfim, o trecho mais doido do poema. Aquele que, para a nossa sensibilidade, chama mais atenção e indica mais claramente sua ligação com aquilo que tomamos por "poesia moderna" (aqui devidamente confundida com aquilo que foi um poema modernista — e que muitas vezes pode ter sido apenas isso, um poema modernista).
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A seleção de Augusto de Campos também faz esta opção em relação a Byron. Segundo ele, as digressões são aquilo que, no Don Juan, "mais interessam à perspectiva moderna". Não sei até que ponto esta postura, digamos, interesseira pode ser de fato interessante para o leitor e o poeta dos dias que andam. Este contato parcial, dando preferência sempre àquilo que mais se assemelha à nossa noção de bom gosto e eficácia poética pode ser obscurantista e é arrogante. No limite, o seu resultado mais imediato é o proselitismo e a padronização das leituras, da criação, da sensibilidade.
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Não me interessa aquilo que ficou datado, óbvio — a não ser como peça pitoresca do museu de tudo. As obras poéticas, no entanto, não são produtos naturais que naturalmente perdem a validade: são fatores diversos que as elevam ou as derrubam — às vezes fatores estúpidos como a falta de amigos importantes ou de reedições. O processo que excluiu Pedro Kilkerry do simbolismo brasileiro, por exemplo, foi deste nível. Aquele que nos fez esquecer Sousândrade, porém, foi de outra ordem: falta de conexão mais óbvia entre aquilo que fazia o poeta maranhense e aquilo que buscavam os versejadores de sua época. Ele não interessava, pois, ao panorama da produção e da sensibilidade poética do momento. O fato dele ter sido reavaliado pelos leitores modernos, porém, não exime estes leitores da possibilidade de que cometam o mesmo equívoco — seja com autores contemporâneos seus ou com gente morta há trezentos anos.