sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Linha 54


Os desentendimentos entre lírica e sociedade estão entre os temas centrais de quem quer que se interesse, leia e pense sobre poesia. Para os não-leitores, poesia e sociedade são coisas antagônicas, que nem chegam a se desentender: vivem tão distantes uma da outra que este não é um risco verdadeiro — uma está na lua, outra na rua. Porém, para os leitores esporádicos, aqueles que preenchem as vagas nos cursos de Letras e que vão efetivamente às escolas e "ensinam poesia", a relação entre lírica e sociedade é clara, ainda que seja uma relação de confronto e negação explícitas.
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Não se trata do confronto e da negação identificada por Adorno — de ordem sutil e muita vezes imperceptível numa primeira leitura. Nada disso. É que a poesia (ou qualquer arte), para estes leitores, está sempre denunciando e anunciando a falsidade, a hipocrisia, a nossa burrice. Para isso, acredito, é necessário que a arte e os artistas estejam num patamar superior, observando a coisa toda, muito pacientes e preparados para nos desmascarar. No caso brasileiro, em específico, a esta percepção se juntou uma mentalidade que é, em essência, de esquerda, anti-religiosa, supostamente igualitária, afeita às lutas sociais de minorias, etc. Não me interessa questionar esta mentalidade e seus princípios, mas sim a sua aplicação a todo e qualquer discurso. Lembro que, ainda na escola, eu e alguns amigos meus percebemos esta tendência e aí, em qualquer momento de qualquer aula, fosse após a leitura de um problema de matemática ou durante um debate sobre um poema de Álvares de Azevedo, um de nós levantava a voz e dizia, com a cara mais séria do mundo: "É uma crítica". Acho que nunca disseram que estávamos errados.
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Já na universidade, presenciei um caso que, para mim, foi particularmente chocante. Assistia a uma aula sobre Nelson Rodrigues e todos lemos uma de suas crônicas. Perdoem-me por não lembrar qual delas, mas era uma daquelas em que Nelson esculhamba um "padre de passeata" e louva o Papa e a Igreja. A turma conseguiu inverter tudo e transformar o texto numa crítica à suposta hipocrisia do Papa e da Igreja e num elogio aos padres engajados em lutas sociais. Eles não pareciam aceitar a possibilidade de um autor de literatura, homem supostamente culto e esclarecido, posicionar-se de forma diferente. A professora, na ocasião, optou por não corrigir a interpretação, que havia sido de 99% da turma. Quando ela me perguntou a respeito, fiquei calado. A correção era dever dela, não meu.
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Ontem, no entanto, era eu quem ensinava. Numa aula sobre poesia, preparada e ministrada junto com Clarisse, levamos e lemos um poema de Érico Nogueira. "A um vaso grego", que faz parte d'O livro de Scardanelli, é uma espécie de Arte Poética, uma teoria da arte acomodada de forma muito bela e eficiente em três quartetos.
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Não fosse o traje, que atrai e oculta
e as máscaras de boca curva
não se suportaria ver o riso
ou a catástrofe da carne estúpida.
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Um grito sem disfarce, sem a música
que o modula e faz enfim audível,
seria tão alto, tão agudo
que estouraria os vidros e os tímpanos.
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Aquilo que sangra e que nos salva,
a única coisa que interessa,
quer chamemos de corpo, quer de alma,
se não veste uma capa, não se despe.
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Após a primeira leitura, um silêncio e tanto. Na segunda, mais pausada, parando após cada estrofe, os alunos (quase todos, no início da aula, disseram não gostar/não entender poesia) começaram a interpretar o poema: tratava-se de uma denúncia à hipocrisia da sociedade, que veste disfarces e capas para enganar. Logo estavam falando sobre a política brasileira. A coisa ia se desenvolvendo neste sentido e eu e Clarisse, cada um por si só, tentávamos imaginar a melhor maneira de desfazer o equívoco sem, como se costuma dizer, "traumatizá-los" — já que uma correção muitas vezes é entendida como uma tentativa do professor de segurar a imaginação livre do estudante/leitor. Por sorte, uma aluna solitária, a partir de uma analogia que ela fez com o teatro (inferida a partir da primeira estrofe), levantou a mão e disse que o disfarce, neste poema, não está colocado como algo negativo, feito para encobrir a verdade, mas justamente o contrário. Mais alguns minutos e todos pareciam concordar que era um poema sobre a arte.
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Durante a aula, tivemos que lidar e tentar alertá-los para outros mitos e clichês interpretativos: a dignidade e elevação da poesia, que faz com que certos temas sejam impróprios (como já escrevi aqui, há algum tempo), a busca d'Aquele Outro (como dizia Hilda Hilst), o sentimentalismo, a possibilidade infinita de interpretação, etc. A oficina, que durou cerca de 3h, acabou sendo excelente, apesar deste tipo de percalço — ou sobretudo por causa disso. Foi gratificante, por exemplo, quando eles desistiram de interpretar um poema de e.e. cummings, concordando entre si que não havia lógica nenhuma naquilo, mas que eram bons versos. Também achei curioso como adoraram Angélica Freitas, mesmo antes de esclarecermos quem era Rilke, e como conseguiram aceitar e compreender que Érico Nogueira havia nascido e escrito seu poema após Marianne Moore.