terça-feira, 9 de junho de 2009

Linha 25



Algumas anotações sobre Isaac Bábel.

Num clássico ensaio acerca da obra de Stendhal, Balzac chamava a atenção dos leitores para uma característica nova da literatura francesa: ela deveria ser dividida e compreendida como uma "triplicidade" contrária às tiranias "de um homem ou um sistema" que teriam sido obedecidas pelos séculos XVII e XVIII. Balzac, com sua visão aguçada, termina apontando a notória e óbvia faceta fragmentária dos novos tempos. Se o século XIX parecia indefinível com esta triplicidade (mais a força de autores absolutamente únicos, como Stendhal e o próprio Balzac), a profusão de artistas que toma o começo dos anos 1900 de assalto é suficiente para desnortear quem quer que tente defini-lo.

Além das vanguardas européias, mais estudadas em seus conceitos do que ilustradas pelas obras que geraram, tem-se o século de Joyce, o tempo kafkiano, a era de Proust (talvez o mais solitário em estilo e tema), a onipresença do espírito moderno fotografado por Beckett. Ao lado destes, porém, quase sempre esteve colocado um autor ucraniano pouco lido e comentado no Brasil. Aparentemente o último dos grandes da prosa moderna a ser introduzido e reconhecido no país, talvez seja Isaac Bábel, nascido em Odessa no ano de 1894 e fuzilado pelo regime stalinista em 1940, o prosador que mais incorreu nos erros e nos acertos dos anos 1900.

A aparência e a posição discretas que mantém no cânone da prosa moderna contrastam, de maneira gritante, com a força e o exotismo do seu estilo — e com a violência dos seus temas. Comumente descrito como "expressionista", o texto de Bábel não comporta floreios estilísticos, embora seja marcado por uma imagética exuberante e uma textura irreal que beira a sinestesia em diversos pontos. De uma beleza plástica inegável, Bábel revela-se, em contrapartida, um partidário de uma literatura tipicamente revolucionária, instigante e anti-simbolista, com pés e armas cravadas no puramente real. Em seu A rebelião das massas, Ortega y Gasset faz o elogio dos livros que possuem a capacidade de dialogar com seus leitores — que sentem "como se uma mão ectoplásmica saísse das linhas para tocar sua pessoa, para acariciá-la — ou então, cortesmente, dar-lhe um soco." Em O exército de cavalaria, Isaac Bábel não dialoga com o leitor: grita-lhe sem a menor educação; também não o soca cortesmente: acerta-o com coronhadas e, em certos momentos, atropela-o com as suas montarias.

Composto por 36 contos (originalmente contavam-se 34, porém dois outros foram acrescentados em edições posteriores), o livro registra, sob a ótica de um único narrador, episódios curtos ocorridos durante a guerra russo-polonesa dos anos 1920-1921 na Sexta Divisão do Primeiro Exército de Cavalaria, comandado pelo general Budiónni — para o qual Bábel fora realmente destacado. A Sexta Divisão compunha-se, basicamente, de cossacos (descritos por Bábel como "revolucionários" cheios de uma "crueldade bestial") e, portanto, a recepção e a integração do autor ao regimento foi lenta e complicada — implicavam, sobretudo, com os seus óculos e com a sua condição de intelectual.

No primeiro dos relatos, o leitor se depara com o desespero da filha que perde o pai pelas mãos dos poloneses. No terceiro ("Uma carta"), para confirmar a recorrência do tema paterno, narra-se a história de uma família desfeita entre os brancos e os vermelhos — e aqui, na imagem da foto invocada na parte final do conto, na qual pais e filhos destoam grotescamente, como se cada um pertencesse a épocas e fotografias diferentes, pode-se recorrer a Bazárov e ao seu niilismo indiferente até mesmo aos sentimentos maternais em Pais e filhos, romance de onde talvez possam partir diversas das considerações em torno do livro de Bábel.

Na narrativa de Turguêniev, o sentimento revolucionário é mortífero para aquilo que o cerca e para si mesmo: morre o homem revolucionário e os antigos, seus alvos, padecem. Bábel, por outro lado, partidário fiel que foi, durante toda a sua vida, da revolução, apresenta o filho revolucionário não apenas indiferente, mas convencido de que o assassinato do pai, cometido por outro irmão, é imprescindível: "Meu pai era um cachorro", sentencia. O envolvimento absoluto com a causa não concedia, para ele, tratamento diferenciado para familiares se estes fossem representantes do "velho regime".

Nos três primeiros contos, poloneses, brancos e vermelhos matam sem piedade. A violência e o assassinato revelam-se condições primeiras para a sobrevivência naqueles tempos. Nestas mesmas quinze páginas iniciais, poloneses, brancos e vermelhos sofrem ininterruptamente. Derrota parece ser a sentença particular de cada um deles. Esta condição desditosa, aos olhos de Bábel, parece ser proveniente da multiplicidade que a vida moderna abarca: inadaptados a viver com interpretações diversas, com verdades particulares (que, subitamente, tornam-se inabaláveis e sentem necessidade de se impor) e, sobretudo, com a inadequação da maioria em relação a essas interpretações e essas verdades, seus personagens buscam, desesperadamente, a anulação do que lhes é alheio ou incômodo. Os personagens de Isaac Bábel são, em essência, destruidores de mundos e de possibilidades.

O choque entre as realidades cristaliza-se, também, na situação do narrador-personagem (identificado, raras vezes, como Kirill Vassílievitch Liútov) — homem inadaptado por sua condição de intelectual e judeu em meio aos cossacos rústicos numa época de pogroms constantes. "Meu primeiro ganso", um dos melhores textos da coletânea, mostra como este narrador consegue inserir-se na convivência dos cossacos: numa tarde em que "o sol moribundo exalava seu hálito rosado no céu", atormentado pela fome e cheio de raiva contra uma senhora polonesa que se nega a preparar-lhe uma refeição, ele agarra um ganso e, pisando sobre o seu pescoço, mata-o e obriga a senhora a assá-lo. Imediatamente ouve um dos cossacos dizer: "O rapaz é dos nossos". Durante a noite (na qual, sobre o quintal onde estavam, a lua "pendia como um brinco barato"), ele lê para os novos companheiros, em voz alta, o último discurso de Lênin publicado no Pravda — e, juntos, dormem num celeiro, "um aquecendo o outro, com as pernas entrelaçadas". Esta aparente ligação entre eles, alcançada por meio da violência e do desejo conjunto da revolução, todavia, também se revela frágil, pois Liútov, enquanto dormia e tinha os sonhos invadidos por mulheres, sentia que o seu coração, "banhado pela matança, gemia e sangrava". Sua incapacidade para ser um homem da revolução de fato é ratificada ainda posteriormente quando, ao encontrar um camarada já prestes a morrer, com as entranhas derramando-se sobre os joelhos e o coração pulsante à mostra, Liútov nega-se a matá-lo para livrá-lo da dor — e foge.

Parece-me impossível, afinal, permanecer imune à força das imagens de Bábel — que são sempre insólitas e irônicas: a lua rebaixada à comparação com o brinco barato, o sol moribundo. Ao contrário do que se poderia imaginar, não seria acertado classificar o seu texto como descritivo. É tudo muito veloz e compacto; as cores jamais são trabalhadas — tudo se derrama, ainda que sob o devido controle de um óbvio leitor de Maupassant.

Mesmo na religião, onde comumente impera maior uniformidade, vemos a clara oposição entre a tradição e a postura revolucionária. Em diversos contos, Liútov reflete acerca da sua condição de judeu. Numa das cidades destroçadas pela guerra, encontra o velho Guedáli, comerciante de origem judaica que dá nome a uma das mais marcantes narrativas do livro. De início, Bábel enceta um sem-número de recordações dos seus avós ("meu avô acariciava com sua barba amarela os volumes de Ibn Ezra" e "A vovó, (...), tirava a sorte com seus dedos nodosos à luz do círio do sábado e soluçava suavemente") e diz estar em busca da "tímida estrela" (que seria a estrela-de-davi). Vê, pelas ruas, "judeus de barbas proféticas, com trágicos farrapos sobre os peitos cavados" e perde-se numa longa conversa com Guedáli, na qual o velho diz estar confuso com o rumo da revolução — que, segundo ele, tal qual a contra-revolução dos poloneses, apenas atira ("Quem dirá a Guedáli de que lado está a Revolução e de que lado está a contra-revolução?"). Neste caso, duas realidades opostas se confundem na mente do velho judeu. O narrador, embora mantenha uma visão e uma postura conciliadora ao longo do conto, encerra-o com uma ironia cortante ao dizer que Guedáli, "fundador de uma Internacional irrealizável, foi para a sinagoga rezar". Mais adiante, em outro relato, Liútov o definirá como "ridículo".

Já em "O rabino", tradição judaica e revolução encontram-se transfiguradas nas imagens do hebreu Motale e do seu filho caçula, o rebelde, descrito como "um jovem com o rosto de Espinosa". Indiferente às tradições do sabá, o jovem apenas fuma enquanto os outros judeus oram e dão prosseguimento às celebrações do dia santo. Num dos últimos contos, a morte desse jovem Espinosa rebelde será o tema central. Liútov parece oscilar entre a ridicularização do seu povo e uma indisfarçável compaixão pelo sofrimento imposto a ele. Se o descreve como uma variedade de "impostores, possessos e basbaques" num momento, em outro, ao visitar um velho cemitério de um povoado judaico e ao ler as lápides, se compadece e questiona-se: "Ó morte! Ó insaciável! Ó ladra voraz! Por que não tiveste compaixão de nós sequer uma vez?".

Nestas narrativas, personagens, narrador e autor se perdem em meio a uma busca violenta pela sobrevivência. A animalidade cerca os cossacos rústicos e o bacharel em direito formado pela Universidade de Petersburgo que narra suas histórias de trincheira. Adeptos da ação direta (seja na guerra, na revolução ou na contra-revolução), são estes os homens que, como diz Gasset, transformam a violência em prima ratio da civilização, subvertendo a sua condição anterior de ultima ratio. Issac Bábel, por seu turno, também se utiliza da força e da ação direta, tornando-as recursos imprescindíveis para a sua literatura ("Com seu sabor acre de sangue e terra", como a define Boris Schnaidermann), sendo ele, portanto, um dos poucos escritores que, a serviço confesso de uma ideologia, impôs seu nome entre os grandes autores do século XX — ainda que permaneça solitário e feroz.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Linha 24


Colaborei com a revista Modo de Usar & Co. preparando uma breve postagem sobre Raimbaut de Vaqueiras e apresentando, ainda, uma tradução de uma cantiga de amigo atribuída ao trovador provençal. Para ler, basta clicar aqui.