sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Linha 58


Há qualquer coisa de jazz a respeito de Highway 61. Mais, talvez, do que qualquer coisa de rock. Tanto a concepção quanto a execução de "Like a Rolling Stone" e de "Ballad Of a Thin Man" (representando, aqui, também as outras canções do álbum) mostram um inegável pendor para o improviso, a idéia súbita, a crença romântica na inspiração inexplicável — que, quando supostamente surge, não é negada: o líder e a banda trabalham de forma a aceitá-la e adequá-la a uma estrutura básica e ainda tradicional de composição. Portanto, a revolução que Dylan inicia a partir de Highway 61 não é propriamente de composição, mas de conceito e execução.
o rock morreu
É assim que "Like a Rolling Stone" vai ganhando camadas e camadas de órgão que conseguem ser discretas, ainda que sejam exageradas e que seus tubos apitem sem cessar. Assim, também, os arranjos e a cadência diferenciada no andamento de "It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry" transformam uma canção folk ordinária numa verdadeira celebração blueseira — tal procedimento, aliás, estará ainda mais coeso em Blonde on Blonde, cuja música de abertura ("Rainny Day Women") é o exemplo perfeito.
o jazz morreu
Todo esse conceito, para tornar-se ainda mais ilustrativo e claro, precisa do auxílio de bootlegs e registros de shows deste período específico. No palco, Dylan parece pôr em prática tais idéias esquisitas: basta ver a transformação que "Just Like Tom Thumb's Blues" sofre nas apresentações ao vivo e como "One Too Many Mornings" (balada quase silenciosa de The Times They Are A-Changin') ganha ares quase roqueiros, com guitarras dedilhadas, baixo pesado e um órgão constante.
coltrane vive
Muitos já alertaram que, em gravações piratas e em registros de ensaios, há toda uma carreira paralela que é indispensável para quem pretende compreender e apreciar Dylan, esse Judas. Por fora dos discos oficiais de estúdio, ele se desenvolve e se sente mais livre para improvisar e variar justamente nessas gravações menos formais, mais despojadas, por exemplo, da pressão mercadológica. E é exatamente a partir de Highway 61 que se inicia esse trabalho.
bird is not dead
Dylan passa a acreditar muito mais na música como uma experiência imediata. E é justamente nesse ponto que se encontra a suprema contradição, a mais irônico dos fatos: ao eletrificar suas canções, tornando-as modernas, Dylan passa a agir da forma mais arcaica possível — viajando em turnês intermináveis, põe em prática um método de relação com o público anterior ao registro sonoro e ao conceito de álbum.
enterrem michael jackson
Suas letras — para as quais ele já encontrara um molde nos discos anteriores — tornam-se ainda mais irônicas e amargas. "Queen Jane Approximately" é um desses ataques sutis, cuja representação mais bem acabada encontra-se na longa "Ballad of a Thin Man", um blues climático e sombrio que serve de base para Dylan destilar suas ironias pra cima de um personagem (que muitos dizem ser um jornalista, outros afirmam ser um músico e alguns ainda definem como um homem qualquer) deslocado e perdido diante de fatos que não podem ser abarcados por seus conceitos curtos. A canção assemelha-se a uma carta de intenções do próprio Dylan — disposto, a partir daquele momento, após descartar o Dylan romântico e essencialmente folk dos primeiros anos de sua carreira, a forçar um tanto de confusão na quase sempre obtusa e curta música popular.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Linha 57



Quinta-feira passada foi lançado, em formato de livro artesanal, pela editora Tulle, um ensaio meu — o título: Trovar tadio. É um texto relativamente antigo (deve ter uns 3 anos) sobre Elomar, músico que muito aprecio, escritor pelo qual não tenho tanto interesse. Para quem não conhece, recomendo enfaticamente três discos: Das barrancas do Rio Gavião e Cartas Catingueiras, no campo da canção popular, e Fantasia leiga para um rio seco, para quem gosta de se meter com música erudita. São, na minha opinião, três obras-primas indiscutíveis — ou que podem ter seu valor discutido por alguém muito chato e/ou sensível às opiniões e preferências idiossincráticas de Elomar, que vê o demônio pintado em tudo que nos chega da Inglaterra ou dos Estados Unidos e acha Castro Alves o maior de todos os poetas brasileiros (ter estudado num colégio chamado Castro Alves e ter sido obrigado a lê-lo em voz alta em todas as aulas de Língua Portuguesa, às terças, na oitava série, também me fizeram ter essa opinião por algum tempo). Meu ensaio se concentra na música porque, àquela altura, seu primeiro livro, Sertanílias, ainda não havia sido lançado. Também porque, após lê-lo, não achei tanto valor em sua literatura — ainda muito confusa em sua mistura de poesia, roteiro de cinema, entrevista, prosa de ficção e um longo etc. Não deixa de ser curioso que alguém com uma visão tão tradicionalista da arte e da cultura apareça com um livro impuro desses, mas isso ficou como tema para outro momento.
eu escolhi a palavra de deus
Discos em mp3:
666
Das barrancas do Rio Gavião.
sim
Fantasia leiga para um rio seco.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Linha 56



"avuis només presto atenció
a formes triangulars"


Sumari astral é o livro hermético e ocultista de Joan Brossa. Simulando ser uma espécie de Trismegisto catalão, o poeta assume o número três e a forma do triângulo como símbolos do percurso das coisas e da linguagem. Não há originalidade alguma nisso — mesmo porque a originalidade não é um conceito aceitável para quem crê no ritmo de eterna correspondência e recriação. Dito isto, há que se assumir: até hoje, homem nenhum escreveu uma teoria poética de maior influência do que Hermes. Brossa cita A Tábua de Esmeralda quase que textualmente em alguns versos: "El mar de baix és igual que el de dalt". Fronteiras, bandeiras, linguagem, correspondência: tudo se encaixa entre as três sessões do poema — mesmo a questão do gênero aparece brevemente no verso "Amb els vestits no vull imitar res", espécie de assunção do caráter feminino como natural ao masculino e não como desejo de identificação com algo externo e estranho a ele. A segunda parte do livro, os "outros poemas", reintroduz Brossa como ele é mais conhecido: poucos versos, imagens raras, preocupações essencialmente políticas. A relação com o Sumari, no entanto, pode ser percebida — afinal, o que Brossa deseja, mais que injetar sentido poético em elementos banais, é desvendar o sentido poético oculto nos elementos banais. Isto, naturalmente, também é criação — que ele alcança por meio do emparelhamento de observações corriqueiras e de reflexões ou imagens inesperadas. Seu método, portanto, parece se pautar na vontade de que estas duas esferas "aparentes" da linguagem se revelem, aos olhos do leitor, como uma única. Não digo que não seja uma crença perigosa, um método arriscado, mas Brossa parecia ser um homem e um poeta disposto a correr alguns riscos, como se percebe pela foto abaixo.


quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Linha 55


Há certos autores que, de tão mal tratados e revirados pelo senso comum, não podem ser lidos: o primeiro contato com suas obras já é uma releitura. A celebridade vitimizou autores como Dante ou Kafka, por exemplo — mas, apesar de fazer a constatação, não estou muito disposto a observar o fato como um problema sério. Este tipo de releitura, considerando o leitor como uma figura relativamente autônoma e sensata, acaba incitando uma espécie de crítica imediata que alerta para a necessidade de desconfiança e para a possibilidade de redimensionar conceitos e preconceitos variados.
xxx
Estou atravessando uma experiência deste tipo enquanto leio Byron. O Lord, massacrado pela historiografia literária brasileira ao ser associado ao que de pior havia no romantismo (ainda que, de passagem, fosse aludida a sua ligação com o que de melhor havia no romantismo, a saber, a auto-ironia, o humor negro, etc.), está muito além do sentimentalismo desenfreado e tolo. É claro que a desfaçatez metrificada de Byron provocou alguns ecos no romantismo brasileiro, os mais óbvios entre Álvares de Azevedo e Sousândrade — mas o primeiro tem algo mais típico a ser ressaltado (o chororô) e o segundo esteve esquecido por um longo tempo.
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Os excertos do Don Juan, selecionados e traduzidos por Augusto de Campos (com sua peculiar liberdade), têm uma força e uma eficácia raras e conseguem reunir, sob o signo do riso e da amargura, reflexões filosóficas (sempre beirando o ridículo, de forma muito calculada), observações sociais e preocupações com a forma e a fama do próprio poema que está sendo escrito, uma espécie de metalinguagem desabusada que não se importa de fazer graça com Dante, Virgílio ou Homero.
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Estes trechos são chamados por Augusto de Campos de "digressões" e nenhum ou quase nenhum deles toma parte direta nas narrativas das peripécias do personagem que dá título ao poema. Segundo o tradutor, também ele observava Byron como uma "legenda padronizada" — à qual só passou a prestar atenção após o seu contato com Sousândrade, que tinha um apreço particular pelo inglês. Neste ponto chegamos a um outro problema.
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Byron é citado nominalmente no famoso "Inferno de Wall Street", que faz parte d'O Guesa. Como se sabe, este é o trecho mais lido, relido e louvado do épico brasileiro porque este é o trecho ao longo do qual Sousândrade tem sua linguagem perturbada, fugindo da regularidade que preenche quase todos os outros espaços da obra e fazendo antecipações de métodos modernistas como a colagem — é, enfim, o trecho mais doido do poema. Aquele que, para a nossa sensibilidade, chama mais atenção e indica mais claramente sua ligação com aquilo que tomamos por "poesia moderna" (aqui devidamente confundida com aquilo que foi um poema modernista — e que muitas vezes pode ter sido apenas isso, um poema modernista).
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A seleção de Augusto de Campos também faz esta opção em relação a Byron. Segundo ele, as digressões são aquilo que, no Don Juan, "mais interessam à perspectiva moderna". Não sei até que ponto esta postura, digamos, interesseira pode ser de fato interessante para o leitor e o poeta dos dias que andam. Este contato parcial, dando preferência sempre àquilo que mais se assemelha à nossa noção de bom gosto e eficácia poética pode ser obscurantista e é arrogante. No limite, o seu resultado mais imediato é o proselitismo e a padronização das leituras, da criação, da sensibilidade.
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Não me interessa aquilo que ficou datado, óbvio — a não ser como peça pitoresca do museu de tudo. As obras poéticas, no entanto, não são produtos naturais que naturalmente perdem a validade: são fatores diversos que as elevam ou as derrubam — às vezes fatores estúpidos como a falta de amigos importantes ou de reedições. O processo que excluiu Pedro Kilkerry do simbolismo brasileiro, por exemplo, foi deste nível. Aquele que nos fez esquecer Sousândrade, porém, foi de outra ordem: falta de conexão mais óbvia entre aquilo que fazia o poeta maranhense e aquilo que buscavam os versejadores de sua época. Ele não interessava, pois, ao panorama da produção e da sensibilidade poética do momento. O fato dele ter sido reavaliado pelos leitores modernos, porém, não exime estes leitores da possibilidade de que cometam o mesmo equívoco — seja com autores contemporâneos seus ou com gente morta há trezentos anos.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Linha 54


Os desentendimentos entre lírica e sociedade estão entre os temas centrais de quem quer que se interesse, leia e pense sobre poesia. Para os não-leitores, poesia e sociedade são coisas antagônicas, que nem chegam a se desentender: vivem tão distantes uma da outra que este não é um risco verdadeiro — uma está na lua, outra na rua. Porém, para os leitores esporádicos, aqueles que preenchem as vagas nos cursos de Letras e que vão efetivamente às escolas e "ensinam poesia", a relação entre lírica e sociedade é clara, ainda que seja uma relação de confronto e negação explícitas.
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Não se trata do confronto e da negação identificada por Adorno — de ordem sutil e muita vezes imperceptível numa primeira leitura. Nada disso. É que a poesia (ou qualquer arte), para estes leitores, está sempre denunciando e anunciando a falsidade, a hipocrisia, a nossa burrice. Para isso, acredito, é necessário que a arte e os artistas estejam num patamar superior, observando a coisa toda, muito pacientes e preparados para nos desmascarar. No caso brasileiro, em específico, a esta percepção se juntou uma mentalidade que é, em essência, de esquerda, anti-religiosa, supostamente igualitária, afeita às lutas sociais de minorias, etc. Não me interessa questionar esta mentalidade e seus princípios, mas sim a sua aplicação a todo e qualquer discurso. Lembro que, ainda na escola, eu e alguns amigos meus percebemos esta tendência e aí, em qualquer momento de qualquer aula, fosse após a leitura de um problema de matemática ou durante um debate sobre um poema de Álvares de Azevedo, um de nós levantava a voz e dizia, com a cara mais séria do mundo: "É uma crítica". Acho que nunca disseram que estávamos errados.
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Já na universidade, presenciei um caso que, para mim, foi particularmente chocante. Assistia a uma aula sobre Nelson Rodrigues e todos lemos uma de suas crônicas. Perdoem-me por não lembrar qual delas, mas era uma daquelas em que Nelson esculhamba um "padre de passeata" e louva o Papa e a Igreja. A turma conseguiu inverter tudo e transformar o texto numa crítica à suposta hipocrisia do Papa e da Igreja e num elogio aos padres engajados em lutas sociais. Eles não pareciam aceitar a possibilidade de um autor de literatura, homem supostamente culto e esclarecido, posicionar-se de forma diferente. A professora, na ocasião, optou por não corrigir a interpretação, que havia sido de 99% da turma. Quando ela me perguntou a respeito, fiquei calado. A correção era dever dela, não meu.
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Ontem, no entanto, era eu quem ensinava. Numa aula sobre poesia, preparada e ministrada junto com Clarisse, levamos e lemos um poema de Érico Nogueira. "A um vaso grego", que faz parte d'O livro de Scardanelli, é uma espécie de Arte Poética, uma teoria da arte acomodada de forma muito bela e eficiente em três quartetos.
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Não fosse o traje, que atrai e oculta
e as máscaras de boca curva
não se suportaria ver o riso
ou a catástrofe da carne estúpida.
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Um grito sem disfarce, sem a música
que o modula e faz enfim audível,
seria tão alto, tão agudo
que estouraria os vidros e os tímpanos.
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Aquilo que sangra e que nos salva,
a única coisa que interessa,
quer chamemos de corpo, quer de alma,
se não veste uma capa, não se despe.
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Após a primeira leitura, um silêncio e tanto. Na segunda, mais pausada, parando após cada estrofe, os alunos (quase todos, no início da aula, disseram não gostar/não entender poesia) começaram a interpretar o poema: tratava-se de uma denúncia à hipocrisia da sociedade, que veste disfarces e capas para enganar. Logo estavam falando sobre a política brasileira. A coisa ia se desenvolvendo neste sentido e eu e Clarisse, cada um por si só, tentávamos imaginar a melhor maneira de desfazer o equívoco sem, como se costuma dizer, "traumatizá-los" — já que uma correção muitas vezes é entendida como uma tentativa do professor de segurar a imaginação livre do estudante/leitor. Por sorte, uma aluna solitária, a partir de uma analogia que ela fez com o teatro (inferida a partir da primeira estrofe), levantou a mão e disse que o disfarce, neste poema, não está colocado como algo negativo, feito para encobrir a verdade, mas justamente o contrário. Mais alguns minutos e todos pareciam concordar que era um poema sobre a arte.
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Durante a aula, tivemos que lidar e tentar alertá-los para outros mitos e clichês interpretativos: a dignidade e elevação da poesia, que faz com que certos temas sejam impróprios (como já escrevi aqui, há algum tempo), a busca d'Aquele Outro (como dizia Hilda Hilst), o sentimentalismo, a possibilidade infinita de interpretação, etc. A oficina, que durou cerca de 3h, acabou sendo excelente, apesar deste tipo de percalço — ou sobretudo por causa disso. Foi gratificante, por exemplo, quando eles desistiram de interpretar um poema de e.e. cummings, concordando entre si que não havia lógica nenhuma naquilo, mas que eram bons versos. Também achei curioso como adoraram Angélica Freitas, mesmo antes de esclarecermos quem era Rilke, e como conseguiram aceitar e compreender que Érico Nogueira havia nascido e escrito seu poema após Marianne Moore.