segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Linha 51


O Yankee Hotel Foxtrot é o melhor e mais representativo disco da década que está acabando ou que já acabou. Quando, em 2001, as torres caíram, os Strokes lançaram seu álbum de estréia e o White Stripes foi descoberto, o futuro parou de fazer sentido e a década deu início a um processo inacreditável, intenso e cheio de falsidade de reviver pelo menos 50 anos nos 9 ou 10 que restavam. Por isso pareceu mais interessante reabilitar coisas até então consideradas cafonas e mortas como o country e o pop sintético dos anos 80 do que perder tempo tentando inventar algo novo. Jeff Tweedy escreveu versos como
2001
"The cash machine is blue and green
For a bundle of twenties and a small service fee
I could spend three dollars and sixty-three cents
On Diet Coca-Cola and unlit cigarettes
I wonder why we listen to poets when nobody gives a fuck
How hot and sorrowful, the machine begs for luck"
2002
e transformou suas canções de estrutura country e folk em suítes de microfonia e pianos e guitarras distorcidas. Foi uma saída inteligente — ainda que, um pouco depois, a coisa tenha se transformado numa fórmula de composição que rende boas canções, mas nada de memorável. Ao que parece, Tweedy foi o único a saber equilibrar um olhar fetichista e cheio de charme no passado com uma vontade anacrônica de desvendar o que viria na sequência. Thom Yorke, por exemplo, errou com seu futurismo extremo — apesar de maravilhas como "Idioteque" e da minha fortíssima impressão (ponham na conta dos meus quinze anos), ele errou. Tweedy, por sua vez, usou a bateria eletrônica oitentista e compôs uma piada impecável como "Heavy metal drummer" — e não desistiu da canção de amor perfeita, escrevendo pelo menos duas neste disco: "I'm trying to break your heart" e "I'm the man who loves you". Existe ainda, obviamente, a representatividade do Yankee Hotel Foxtrot no processo de diluição da indústria musical que apenas começava — para quem não se lembra ou não sabe, a gravadora se recusou a lançar o disco inexplicável e tudo foi parar na internet. Mas isso, naturalmente, é caso para livros de história, não para os ouvidos, aos quais está reservado a melhor parte da coisa, que é justamente "Jesus, etc." ou "Poor places".

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Linha 50



"(...)
Amante
Porque te desprezei?
Ou com ares de rei
Porque te fiz rainha?
(...)"
555
São perguntas que, no poema "IX" do volume Da morte. Odes mínimas, Hilda Hilst se faz a respeito de como chegará a "cavalinha" para buscá-la. Ninguém precisa encerrar as dezenas de poemas que compõem a obra para saber que se tratam de perguntas meramente retóricas: ela virá com ares de rei porque a morte, nestes poemas, se transforma numa senhor mui branca e vermelha, figura cuja ausência provoca, à maneira dos trovadores, um aparente emaranhado de sons e ritmos e metros que, subitamente, se mostra também repleto de uma coesão sentimental um tanto rara.
...
A aposta que Hilda Hilst faz no que diz respeito à leitura dos seus poemas me intriga já há algum tempo. A rigor, ninguém sabe de antemão como um poeta espera que seu poema seja lido: em voz alta, em silêncio, numa determinada velocidade, com pausas calculadas, de forma ininterrupta, etc. No entanto, é óbvio que existem técnicas formais que permitem ao poeta conduzir a leitura: pontuação, métrica, quebra de versos, espaçamento, etc. Um exemplo óbvio: a presença de um enjambement num soneto. Acredito que nada disso deve ser gratuito, sob pena de tornar o poema um mero bibelô formal — a excelência está em saber conciliar a imagem (ou, vá lá, a idéia) que se cria e a forma sob a qual ela se apresenta. Pensem num caso clássico como a balada dos enforcados de Villon, especificamente o verso em que o poema e o leitor balançam junto aos falecidos:
666
"Puis çà, puis là, comme le vent varie,"
666
Não creio que seja uma idiossincrasia da minha leitura o fato destas palavras se formarem como se de fato passassem de um lado a outro, balançando-se — ainda mais se considerarmos que é justamente a palavra "vent" quem determina estas variações. Villon, que me parece um poeta tão preocupado em despedaçar suas imagens e remanejar a linguagem poética de forma a torná-la, se não fragmentária, muito mais veloz em associação — algo que o torna tanto medieval quanto moderno, alguém dirá, eu direi (exemplo maior é "Le debat du cuer et du corps de Villon", essa mistura de chiste popular e poesia) — também compõe, em muitos poemas, uma morte minimalista em sua canção e em suas variações, reservando-se o direito de brincar em outros momentos.
999
Eu não diria que Hilda Hilst está brincando nas suas "Odes mínimas", mas me surpreende como sua poesia de morte é musical — seja em momentos plácidos, seja em ocasiões dramáticas. A convivência do aspecto meramente lúdico de quem caça palavras que soem e escorram bem com o caráter de interrupção que a morte quase sempre representa é notável e, vez ou outra, se apresenta numa mesma composição, como é o caso da ode "XXI":
767
"Por que vens ao meio-dia
De cornadura galopando conchas
De cornetim à frente da minha casa
Corta-capim, corta-águas?
Descansa. Faz entrepausa.
Colhe matiz, faz nuança (...)"
767
Percebam que nem a utilização do ponto no quarto verso e da vírgula no quinto é gratuita, mas é feita em razão daquilo que é dito.
999
O que me atrai na sonoridade e na forma de Hilda Hilst é o seu caráter de exceção em meio à melhor poesia brasileira do século passado, seja da primeira ou da segunda metade. Explico assim: ela consegue ser excelente com uma carpintaria formal que, a certa altura, todos nós achávamos que estivesse morta por causa da sua suposta e irreal facilidade e da sua suposta e ainda mais irreal falsidade diante de um mundo aos pedaços. Não é fácil fazer o que Hilda Hilst fez — e o que ela fez não foi falso.

domingo, 10 de outubro de 2010

Linha 49



Os senhores me perdoem dar ao blog um terrível caráter de portal através do qual divulgo meus textos publicados em outros sítios, mas, por ora, é tudo o que posso fazer. Na Desenredos, é possível ler um ensaio que escrevi e que se chama "Equilíbrio e unidade na poética de e.e. cummings".

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Neste ensaio, aproveito para me apoiar um pouco em Haroldo de Campos, teórico com o qual compartilho pouquíssimos pressupostos, mas tradutor ao qual agradeço o volume Escritos sobre jade, no qual "reimagina" alguns nomes da poesia clássica chinesa. Sua teoria e sua crítica, no geral, se comprometem por culpa de uma mentalidade afeita demais aos programas pouco ou nada flexíveis de sua própria vanguarda, mas é curioso notar como esta mesma teoria resulta em excelentes traduções para a poesia composta por ideogramas. Não me importa o que há de equivocado ou falacioso nos textos de Fenollosa e nas lições que Haroldo (ou Pound) tira a partir deles: quando postas em prática, as conclusões ou intuições do sinólogo americano costumam dar em grandes versões — quase sempre bem sucedidas por causa da excelente idéia de refazer a velocidade e a agilidade visual e fonética do ideograma e dos sons monossilábicos chineses por meio da supressão de termos conectivos do português, mesmo a custo de criar vocábulos grandes e estranhos como "verdeazul" (que lemos de forma muito mais rápida do que se supõe).

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Como estudante relapso e de memória curta da língua chinesa, traduzi um poema de um verso de Han Shan, que pode ser lido aqui mesmo no Chanzos.