sexta-feira, 29 de maio de 2009

Linha 23


Resenha imprópria de Moby Dick. Tola pretensão de abarcar suas 600 páginas em 6.337 caracteres.

Em 1891, morre Herman Melville — que, no obituário publicado pelo periódico NY Times, é chamado de Henry Melville. Não se pode desconsiderar o contexto no qual e pelo qual seu nome é grafado de forma incorreta: o autor de Moby Dick morria relativamente esquecido, ignorado pela crítica e pelos leitores da sua época, símbolo de uma prosa decadente e ultrapassada — um autor, enfim, que não tivera a capacidade de impor seu nome ao cânone da literatura anglófona. Por outro lado, esse equívoco jornalístico está cheio de simbologia: encena, desde o século XIX, a diluição que a sua obra-prima (história tresloucada de Ahab e de sua monomania) sofreria nos 1900 — Moby Dick seria adaptada para o cinema, transformada em desenho animado (descaracterizando o feroz animal do original literário) e considerada uma espécie de símbolo maior da literatura estadunidense — que, tantas vezes, estaria desvinculado por inteiro da figura do seu autor. Moby Dick, então, sobreviveria — ainda que muitos ignorassem se seu autor fora Herman ou Henry.

Das adaptações, é inevitável que se sobressaiam a simbologia e a alegoria que a grande baleia branca representa. Mas a leitura do romance revela que, antes disso, há o encanto da linguagem. Ishmael, narrador irônico, embora solene, desenvolve e se utiliza de uma voz e de um tom únicos, inimitáveis: há resquícios de uma escrita impoluta (algo datada) misturados a um vocabulário muito bem definido, mas amplo e muitas vezes desabusado (que abarca termos técnicos, gírias marítimas, falares amorosos, etc.). A fluidez da narrativa é admirável — há um fio muito tênue que conduz os parágrafos, alcançando certa musicalidade que, em trabalhos de traduções, deve ser preservado ao máximo (tarefa ingrata, é claro, mas relativamente bem sucedida na versão lusófona de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza).

E é essa excelência estilística que surpreende o leitor de início. Até porque a narrativa das relações entre Ahab e Moby Dick tarda a aparecer. Ishmael retarda o surgimento do capitão, retarda as revelações sobre a sua história, retarda o seu encontro com a baleia: nesse movimento cruel, mas tentador, Melville exige força e ímpeto ao leitor. A caça às baleias não é fácil, tampouco a leitura do romance. Num procedimento muito comum ao escritor do "romance total" (em sua utopia de retrato absoluto da realidade — desde conjunturas socioeconômicas às miudezas íntimas dos personagens), o autor desvia sua pena por diversos caminhos: de início, surpreende-nos com a impiedosa auto-descrição de Ishmael; em seguida, intriga-nos com as relações que surgem entre o narrador e o adorável e terrível canibal Queequeg; logo, mete-se a descrever a vasta paisagem humana das terras costeiras americanas, louvando-lhes a grandiosidade marítima, a coragem caçadora; por longas páginas, apresenta-nos as psicologias sutis e bem construídas dos marinheiros. Quando Ahab, enfim, aparece, o leitor já se sente íntimo dos homens que habitam o livro e a embarcação — e é essa intimidade que nos permite experimentar a mesma estranheza que eles sentem diante do capitão.

Mas consideremos, antes, seus companheiros de tripulação. Formam uma fauna expressiva, repleta de contrastes e tensões, simbólica e perigosa para quem a lê com a mente tacanha, guiada por preconceitos. O leitor obtuso tropeçará, de início, na relação entre Ishmael e Queequeg: refletir o possível homossexualismo entre os dois é polêmica vã ou questão necessária? Mais do que espreitar seus movimentos (ocultos sob cobertores) nas frias e solitárias noites da estalagem, que nos atentemos à sutil alteração de tom, à cadência nova que Melville traz nessas páginas. Nelas, tudo é narrado com doçura, numa prosa quase lírica: "Tentei tirar seu braço — desfazer seu abraço de noivo — mas, como ele estava dormindo, ele me abraçava com força, como se nada além da morte pudesse nos separar". Em contrapartida, há o humor evidente da situação, também refletido em tom e vocabulário jocosos: "Que situação mais embaraçosa, pensei; deitado na cama, em uma casa estranha, em pleno dia, com um canibal e uma machadinha!".

O leitor obtuso tropeçará, em seguida, ao analisar as complexas relações de poder a bordo do Pequod: como considerá-las? É possível enxergar prepotência imperialista, nacionalismo ignaro nas figuras centrais de personagens como Starbuck e Ahab? Há críticos que notam uma hierarquia muito nítida e imutável — afirmando que, ainda que tantas culturas e nações estejam ali representadas, encontram-se todas elas subjugadas à grande nação estadunidense. Parece-me, contudo, uma análise marcada pela má-fé, uma interpretação que desconsidera a profunda ironia de Ishmael — que, tantas vezes, volta-se contra os próprios ideais norte-americanos: impossível não percebê-la no momento em que o narrador envolve-se no culto pagão de Queequeg com uma desculpa risível ("Ora, Queequeg é meu semelhante. E o que gostaria que Queequeg fizesse por mim? Ora, unir-se a mim em meu rito Presbiteriano de adoração. Portanto, eu devo unir-me a ele, logo, devo tornar-me um idólatra"). D.H. Lawrence, num singular ensaio sobre o romance, afirma que isso "soa como Benjamin Franklin e é, irremediavelmente, teologia barata. Mas é a verdadeira lógica americana". Portanto, me parece irreal e tola a imagem de Melville, um vitoriano barbudo, escrevendo cheio de recalques e desejos de expansão imperialistas através de sua literatura. Até porque sua literatura procura o íntimo.

E essa procura surge a partir da famigerada simbologia do cetáceo. Porque, invariavelmente, há tantos símbolos quanto leitores. Pouco é taxativo, pouco se encerra neste romance. Ahab, sim, possui a sua alegoria particular sobre o leviatã: trata-se do mal transfigurado num animal de brancura perturbadora. Mas até que ponto não é perturbadora e má também a insânia, a morbidez que domina o capitão desde seu último encontro com a baleia? Melville, de forma deliberada, despreza a nitidez aborrecida dos escritores menores — a ele interessa muito mais a diluição (talvez se divertisse com o equívoco do redator anônimo do NY Times). Essa profusão de interpretações, além de acentuar o caráter intimista de um romance tão vasto e geral, assinala também a sua condição de eternidade, tão acertadamente apontada e descrita por Jorge Luis Borges: "Página por página, el relato se agranda hasta usurpar el tamaño del cosmos: al principio el lector puede suponer que su tema es la vida miserable de los arponeros de ballenas; luego, que el tema es la locura del capitán Ahab, ávido de acosar y destruir la Ballena Branca; luego, que la Ballena y Ahab y la persecución que fatiga los oceános del planeta son símbolos y espejos del Universo."

Para tornar-se tão grande quanto o cosmos, Moby Dick precisa conter (em seus temas e em suas formas) o próprio homem, que é quem determina a medida daquilo que o compõe — e é assim, portanto, que Melville alcança a condição de autor fundamental, criador irrefreável de mundos e visões, dotado de uma aura quase mística (e tão importante é o misticismo em Moby Dick, repleto de figuras proféticas e imagens premonitórias).

O mar e a imensa baleia, espelhos da terra habitada por homens tão pequenos, não se aquietam nunca, impossíveis de serem solucionados. Assim como não se sabe se o cachalote nada livremente pelos oceanos ou se são os oceanos que lhe determinam o perambular, é impossível ao leitor confortar-se com uma certeza de domínio total sobre Moby Dick — resta sempre a impressão de subjugação absoluta ante os segredos e sentidos do romance.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Linha 22



Durante o ano passado iniciei um estudo irregular e assistemático de provençal moderno, ao qual sempre me referi como occitano. Era, ao que me parecia, o único caminho possível para me familiarizar com a língua medieval na qual os trovadores da região de Provença escreveram suas canções. Não se pode dizer que seja um meio absolutamente equivocado, mas o proveito se concentra quase que exclusivamente no vocabulário — a sintaxe antiga é muito particular e pouco adiantará se iniciar por meio dos típicos diálogos e textos ordinários que os cursos de língua nos oferecem.

Uma forma mais aconselhável de se preparar para o trovadorismo provençal é a leitura da prosa que se fez, de forma paralela, no mesmo período. Refiro-me, naturalmente, às peças biográficas e curiosamente críticas das vidas e razós. Há uma belíssima edição preparada por Martín de Riquer e editada por Círculo de Lectores y Galaxia Gutenberg (Barcelona, 1995), que, além dos textos, traz as miniaturas que representam os trovadores. Desnecessário dizer que, por se tratar de prosa (e sucinta), não se pode comparar o nível de dificuldade de sua leitura ao da leitura das canções. Ainda assim, serve para enriquecer bastante o vocabulário e apresentar uma sintaxe que já é mais estranha. Na peça referente a Arnaut Daniel, por exemplo, lê-se o seguinte:

"Arnautz Daniels si fo d'aquella encontrada don fo N'Arnautz de Meruoill, de l'evesquat de Peiregors, d'un castel que a nom Ribairac, e fo gentils hom. Et amparet ben letras e delectet se en trobar. Et abandonet las letras, et fetz se joglars, e pres una maniera de trobar en caras rimas, per que soas cansons no son leus ad entendre ni ad aprendre."

Numa tradução rápida, conservando os nomes próprios, percebe-se que "Arnautz Daniels foi [si fo] daquela comarca [encontrada] de onde foi N'Arnautz de Meruoill, da diocese [de Riquer anota "obispado"] de Peiregors, de um castelo chamado [que a nom] Ribairac, e foi homem gentil. E aprendeu bem as letras e se deleitou em trovar. E abandonou as letras, e se tornou jogral, e [de Riquer converte "pres" em "adquirió"; de início, intui que fosse "prezou" mas, caso se tratasse do verbo prear ou presar, "pres" indicaria a forma conjugada na primeira pessoa do presente indicativo, o que não faria o menor sentido nesse contexto: seguir de Riquer será sempre a melhor opção] adquiriu uma forma de trovar em rimas raras, motivo pelo qual suas canções não são fáceis de entender e [o "ni" ora é "e", ora "nem", etc. — nesse caso, não faz a menor diferença] de aprender"

Vê-se logo que ninguém precisa ser filólogo de formação ou poliglota de berço para captar as semelhanças com outras línguas românicas e, por indução, desvendar os sentidos.

As vidas estão repletas de casos pitorescos e fantasiosos, motivo que leva muita gente a considerá-las como peças de ficção. Segundo de Riquer, "Vidas y razós inauguran la narrativa breve románica, y al influir sobre el Novellino y tangencialmente sobre el Decameron ocupan un lugar primordial en la historia de la novela moderna". Daí se conclui, portanto, que sua leitura não serve apenas para familiarização com o provençal da Idade Média: é coisa que interessa ao estudo da literatura que, aos poucos, se formaria nas línguas latinas.

E, voltando à questão da língua, nenhuma preparação será o bastante para que o leitor pressinta o impacto que terá ao enfrentar uma canção. Estou longe de já ter feito uma leitura exatamente ampla das 2.542 composições, mas já insisti o suficiente para perceber que cada canção é uma língua particular, que cada uma delas exige um tempo longo até a compreensão e, sobretudo, até uma leitura fluente em algum nível. Fácil, obviamente, não é — mas, ainda que seja um trabalho e tanto, a partir de algum momento será possível acessar a origem de imagens e versos como os seguintes, de uma canção de Bernart de Ventadorn (...1147-1170...):

"Domna, per cui chan e demor,
per la bocha m feretz al cor
d'un doutz baizar de fin'amor coral,
(...)"


ou

"C'ora qu'eu fos d'amor a l'or,
er sui de l'or vengutz al cor"

que, em paráfrase, são "Dona, por quem canto e espero [de Riquer anota "existo", mas aqui me reservo o direito de discordar do mestre], pela boca me feriste o coração com um doce beijo de amor verdadeiro e cordial [a belíssima "coral"]" e "Uma vez estive à margem [or, orilla] do amor, agora da margem cheguei ao coração". O vocábulo "cor", por sinal, é outro que apresenta alguns problemas/possibilidades. Na canção "Quan lo rius de la fontana", de Jaufré Rudel (...1125-1148...), os versos

"Amors de terra lonhdana,
per vos totz lo cors mi dol;"


são compreendidos por Martín de Riquer da seguinte forma: "Amor de tierra lejana: por vos todo el corazón me duele". Peter Dronke, em The medieval lyric, faz uma paráfrase quase idêntica, mas com uma diferença essencial: "cors" é traduzido como corpo. Numa composição de Bernart de Ventadorn, Martín de Riquer também traduz "cors" como corpo. Augusto de Campos, em algumas canções de Arnaut Daniel, traduz "cor" (sem o s) por ser ou coração. A rigor, pode-se dizer que o contexto determinará o sentido justo. No caso dos versos de Jaufré Rudel, a versão de Dronke parece mais acertada ("todo o corpo me dói"), enquanto que no já citado "er sui de l'or vengutz al cor", não seria aceitável a tradução por "corpo", já que há mais sentido em partir da margem ao coração.

Como se vê, sempre haverá algum problema. Resta a cada um decidir se é uma forma valiosa ou desnecessária de gastar algum tempo.

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Tudo isso dito, ousei traduzir uma canção de Raimbaut d'Aurenga. Ele, considerado um dos maiores representantes do "trobar clus", já foi bem traduzido por Augusto dos Campos, que se dedicou justamente à sua lírica mais complexa. Optei por verter, portanto, uma canção mais "fácil" (para amenizar o meu trabalho, obviamente), referida por "No chant per auzel ni per flor", seu primeiro verso. Segundo de Riquer, "esta canción constituye un ejemplo de la facilidad y de la natural fluidez de que es capaz Raimbaut d'Aurenga, en oposición a la artificiosidad de su estilo más frecuente".

É uma canção muito representativa do lirismo amoroso dos provençais. Desde a sua abertura, com as referências aos elementos da natureza (sempre a flor, o que levou D. Denis a uma espécie de crítica ou sátira com sua cantiga "Proençaes non an coyta"), encontramos traços que são comuns à maioria das composições do período. Há, ainda, uma nota de erotismo bastante direto e o constante convite ao adultério e à dissimulação diante do marido. Se se quiser buscar e encontrar o conceito de fin' amor (o amor cortês) em versos, assim será. Mas que se observe, além disso (disso que costuma ajudar, mas também minar nossa leitura da poesia medieval), a situação particular e variada do sujeito poético, que se revela tão pouco confiável na segunda estrofe, lascivo na terceira, atrevidamente ditatorial na quarta, suplicante na quinta e demoníaco na sexta.

Sem mais delongas, a tradução:

Não canto por pássaro ou flor
nem por neve ou por geada,
sequer por frio ou por calor
ou pela grama esverdeada;
diante de outros regozijos
sempre permaneci mudo,
canto pra a dama a quem sirvo,
pois é a mais bela do mundo.

Agora longe da pior,
nunca vista nem cantada,
amo entre as damas a melhor
e também a mais louvada;
disso, pois, farei a minha rima:
que mais não amo nem beijo,
que sinto que a dama se anima
comigo — assim é que vejo.

Eu bem vos digo, minha dona,
que sob vossas cobertas,
tal me seria uma grande honra:
sentir-vos nua e desperta.
Às outras superais em tudo
— mas contenho o meu ardor —
penso e ponho no peito orgulho
como se fora imperador.

Dela me ouso dono e senhor
e nem é meu o seu destino
já que embriagado de amor
terei de amar escondido.
O amor de Tristão e Isolda foi outro
embora igual no agir;
eu amo a dama por um acordo
que não se pode trair.

E o meu valor será mais alto
se uma manta me for dada
como deu Isolda ao seu amado
uma peça nunca usada.
Tristão! Como vos alegrastes:
sentimento igual desejo!
Se também logro tal manto,
bom irmão, não vos invejo.

Vede, dona, que Deus ajuda
dona que de amar se farta.
Isolda, temerosa e muda,
logo foi aconselhada;
ela fez juras ao marido
de que jamais a tocara
homem algum de mãe nascido,
usai vós da mesma arma

Carestia, trazei dali
(de onde vive minha dona)
o que nem posso traduzir:
gozo novo que me toma.


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Agora, alguns problemas.

Tentei ao máximo conservar a métrica e as rimas, mas não foi possível uma equivalência absoluta (pecado imperdoável: não preservei as coblas unissonans). Dessa forma, busquei todo tipo de assonância nos finais dos versos. Procurei, ainda, evitar qualquer contato ou fuga através das paráfrases de Martín de Riquer com a intenção de não viciar a tradução no literal.

* Na segunda estrofe, o verso "disso, pois, farei a minha rima" é, originalmente, "que d'alres non sui amaire", algo como "pois não amo outra coisa".

* O verso que verti como "já que embriagado de amor" é, no original, "Car ieu begui de la amor" (literalmente, "pois eu bebi do amor") e faz referência, como se infere a partir da evocação de Tristão e Isolda na seqüência, às "poções do amor" típicas das grandes lendas e histórias amorosas da Idade Média.

* Sobre Carestia, Martín de Riquer anota o seguinte: "Como ha demostrado Aurelio Roncaglia (Carestia, "Cultura Neolatina", XVIII, 1958, págs. 121-137), Carestia es, aquí, un senhal con el que Raimbaut d'Aurenga designa al gran novelista champañés Chrétien de Troyes, quine, como es sabido, afirma que escribió un relato, hoy perdido, "del roi Marc et d"Ysalt la blonde" (Cligés, verso 5), y en varios de sus ramons alude al tema de Tristán e Iseut con franca hostilidad".

* Esse "o que nem posso traduzir:/ gozo novo que me toma", no original, equivale ao "(...) qe.m tem gauzen/ plus q'ieu eis non sai retraire". Literalmente, é "que me deixa mais satisfeito (gozoso, segundo de Riquer) do que posso explicar". Como se vê, aproveitei para pedir uma desculpa pela má tradução.

sábado, 16 de maio de 2009

Linha 21

No verbete "Conto" de seu Dicionário de Termos Literários, Massaud Moisés afirma que não tem o menor cabimento a utilização de uma estrutura temporal bergsoniana numa produção do gênero. Por acaso, Felisberto Hernández, um dos meus contistas prediletos (e leitor fiel e apaixonado de Bergson) faz exatamente isso: seu trabalho é quase todo pautado pela superposição temporal. Posto, dessa vez, um trecho do meu ensaio "Música e memória", a respeito das suas obras narrativas.

E vale dizer que ainda aprecio os dicionários.


A discrição de Hernández, que tinha o piano e a música clássica como ocupações principais e a literatura como atividade paralela, desenvolvendo a sua narrativa com pinceladas mais íntimas e menos perceptíveis, parece exigir um tempo maior para a apreciação devida — é muito difícil ligá-lo, de imediato, às manifestações literárias que se tornaram típicas da América Hispânica. Reverenciado por Cortázar, tornou-se um narrador lido, compreendido e admirado quase que apenas por escritores. Não por acaso, foi Italo Calvino quem alertou os possíveis leitores do uruguaio no sentido de não diminuí-lo em ligações apressadas a outros autores latino-americanos, pois, com a típica astúcia dos grandes artistas, Felisberto Hernández "desafia toda classificação ou rótulo". O intelectual brasileiro Davi Arrigucci Jr., responsável pelas únicas traduções dos contos de Felisberto disponíveis no Brasil, define-o como "um memoralista, um memoralista proustiano" - e, dessa forma, aponta um caminho para a compreensão da sua obra, sempre enigmática e sutil.

A aproximação entre Proust e Felisberto não se dá simplesmente pelo tom evocativo que as suas criações possuem. O primeiro ponto que os une é a própria construção da narrativa, marcada por uma tentativa urgente de tornar alheio o que nela não se concentra. Ao entrar nas primeiras páginas de No caminho de Swann, o leitor atento do clássico francês notará o esforço do narrador na criação de um mundo específico. É esta a mesma impressão deixada por contos como "A casa inundada" ou "O cavalo perdido", duas das melhores obras do uruguaio. O que distancia Em busca do tempo perdido dos contos de Felisberto é, entre outras coisas, o método utilizado para esta busca. Proust ergue o seu mundo inconfundível por meio de descrições minuciosas, numa recriação poética da realidade vulgar e cotidiana que já é superficialmente conhecida pelo leitor, mas que, em suas filigranas, passa despercebida pelo olhar cansado dirigido a um mundo cada vez menos apreensível; o grande mérito do francês consiste em acentuar detalhes que muitos considerariam supérfluos, meros adornos — seja da decoração, da vestimenta, das ruas de Combray ou Paris, das atitudes dos seus personagens mais ínfimos ou das impressões do seu narrador. Hernández, porém, trabalha de maneira oposta: não se preocupa com a recriação total, pois seu mundo é constituído de fragmentos, quase sempre oníricos e confusos. Não busca o chão, a realidade, mas trabalha no vácuo. Dessemelhanças compreensíveis, afinal, por lidarem, esses autores, com formas textuais distintas — e, de certa maneira, ligam-se através dessa diferença, já que ambos potencializam ao máximo os atributos e as possibilidades do romance, no caso de Proust, e do conto, no caso de Felisberto. O francês demonstra tal preocupação com sua sanha descritiva e através do grande volume de páginas que legou — enquanto o artista sul-americano trabalha ao máximo a possibilidade de sugestão e inconclusão que a narrativa curta lhe permite. Não seria correto, contudo, filiar a obra de Hernández a uma tradição que se baseia em reputados manuais do conto — sua prosa não é exatamente concisa e direta, mas difusa. Desenvolve-se em tempos distintos, alongando-se e, quando necessário, aproximando-se de uma forma um tanto novelística.

Embora diferenciados, ambos os expedientes são bem traçados pelos autores e resultam em êxitos plenos. Em Proust, sentimo-nos num local quase familiar que, por vezes, parece-nos uma realidade ainda mais completa - enquanto que, na obra de Hernández, é o estranhamento que se instala: estamos sempre adentrando terras ignoradas, mas tão reais quanto as que pisamos diariamente. Numa analogia musical, é possível utilizar-se da pequena frase da sonata de Vinteuil que, ao longo do monumental romance do francês, acompanha um dos personagens. Embora seja ficcional, ao leitor surge perfeitamente definida (“dançante, pastoral, intercalada, episódica, pertencente a um outro mundo”, e representação maior duma “felicidade nobre, ininteligível e precisa”). As canções de Felisberto, jamais identificadas, mas claramente reais e apreciadas pelo autor, são descritas de maneiras mais oníricas: “Ella encendía las cuatro velas de los candelabros y tocaba notas tan lentas y tan separadas en el silencio como si también fuera encendiendo, uno por uno, los sonidos.” – como se pequenas suítes de Debussy ou Fauré fossem cuidadosamente deturpadas em interpretações imprecisas, reservadas a dedos experientes. A associação à música não é gratuita. A memória dos narradores de Felisberto, na maioria das vezes, está estranhamente relacionada às canções — ambas são fugazes e inapreensíveis. A esse respeito, evoque-se certa personagem de "O cavalo perdido":

“Eu também comecei a estudar piano; e estudava que estudava, e nunca via avanço, não via resultado. Em compensação, agora que faço flores e frutas de cera, posso vê-las... tocá-las... é alguma coisa, a senhora compreende”.

Situação devidamente ilustrada pelo narrador, ao afirmar que “O cinema das minhas lembranças é mudo. Se para recordar posso usar meus olhos velhos, meus ouvidos são surdos para as recordações”.

A indefinição dos cenários termina por cristalizar-se também no estilo que, alternando períodos longos e trechos francamente truncados e entrecortados (demarcados, sobretudo, pelo ponto-e-vírgula), quase sempre provoca a tentação, ou mesmo a necessidade, de uma ou mais releituras para uma familiarização e uma compreensão maior destas narrativas. As bifurcações não parecem sugerir que escolhamos apenas uma vereda e a sigamos: é necessário que, após a exploração de uma, a outra também seja percorrida.

(...)

Todos os personagens de Hernández são solitários irremediáveis. Quase sempre pianistas e contistas, possuem traços autobiográficos óbvios. Caminham por ruas úmidas e escuras de Montevidéu e do interior do Uruguai e da Argentina, entre teatros, animais e pessoas estranhas. Verdadeiros vagões desatrelados, parecem guiados por uma pulsão indefinível: às vezes, como em "O balcão", parece ser a compaixão que de início os guia (muito embora em seguida ela se transfigure em sentimentos menos nobres e mais violentos) e, noutras, como fica claro em "O lanterninha" e em "A casa inundada", a pura curiosidade e a necessidade de sobrevivência os fazem caminhar. A solidão do lanterninha que descobre possuir uma luz própria que se lhe acende dos olhos e que diz afundar-se em si mesmo "como num pântano" é a mesma que atravessa toda a ansiedade, o aparente fracasso e o aparente sucesso do narrador de "Mi primer concierto", no qual desenrola-se a primeira e sofrida apresentação de um pianista ("Pero donde más sufría, era en la memoria"). Se através da sua obra quisermos conhecer o autor (expediente que, segundo Nabokov, é "infantil"), vamos percebê-lo como um homem sombrio e apaixonado, debatendo-se entre o horror e a atração pela vida, pelos homens e, sobretudo, pelo passado. Por outro lado, talvez seja uma incorreção especular sobre a suposta atração que autor e personagens nutrem pelo passado: esses homens, em realidade, jamais conseguiram livrar-se de sua presença dúbia, ao mesmo tempo necessária e incômoda. Na poética sutil (mas contundente) do autor, as visões passadas são águas que encharcam os homens e suas roupas — calças e paletós molhados que pesam e insinuam resfriados (não por acaso, há inúmeras referências ao perigo de afogar-se na memória). Num dos trechos mais significativos de "O cavalo perdido", o homem relembra a impressão que tinha, quando criança, ao chegar à casa da professora após atravessar uma rua cheia de magnólias:

“No instante de chegar à casa de Celina, eu tinha os olhos cheios de tudo o que tinham juntado pela rua. (...) O que nuca dormia de todo era uma certa idéia de magnólias. Embora as árvores onde viviam tivessem ficado no caminho, elas estavam por perto, escondidas atrás dos olhos.”

Há sempre a idéia de que a memória e o passado constituem-se de resquícios indeléveis.

Tais personagens, ademais, parecem sobreviver num desconforto absoluto, que não é apenas psicológico e sentimental, mas também físico — o jovem pianista aprendiz de "O cavalo perdido", por exemplo, chega a afirmar que sua professora lhe conhecia as mãos melhor do que ele mesmo. Trata-se de algo perceptível também na insônia e nas dúvidas gestuais que assolam o narrador de "Mi primer concierto" no momento de entrar, caminhar até o piano e saudar o público — “Después me encontré con otra dificultad grande: las manos”. Parece compreensível, portanto, que a maioria dos seus personagens demonstre certo encanto diante da imobilidade dos objetos, devotando-lhe atenção e certa inveja. Desde a infância, o memorialista de "O cavalo perdido" explicita sua curiosidade diante dos móveis da casa da professora de piano — curiosidade que, a certa altura, ganha conotações sensuais, francamente eróticas. No breve "Ninguém acendia as luzes" é uma estátua quem parece servir de figura de paixão ou, pelo menos, de alívio ao narrador; enquanto lê um conto de sua autoria, ele se obriga a desviar sua atenção dos bustos, olhos e cabelos dos convivas, procurando contemplar a placidez com que uma estátua feminina parece permitir que um grupo de pombas sobrevoe a sua cabeça. Não surpreende, afinal, que uma personagem de "O balcão" se declare apaixonada pelo balcão referido no título — ama, sobretudo, a fidelidade e a mansidão daquela varanda; e o encerramento trágico desse conto nasce exatamente de um movimento realizado pelo balcão, que desaba.