domingo, 7 de março de 2010

Linha 42


Forster, no começo do século XX, fez um retrato muito correto daquele sujeito que ele chamava de pseudo-erudito: o crítico ou apreciador que, diante de uma obra, checa todos os clichês do qual dispõe e escolhe o que melhor se encaixa e pronto, tudo está resolvido. Berardinelli, que é um seguidor declarado de Forster, aproveita a observação do inglês e percebe que Umberto Eco é um exemplo perfeito deste etiquetador cultural e literário. Diz Berardinelli que, para Eco, "(...) o Paraíso dantesco é, de início, glorificado como 'poesia da inteligência', depois como 'apoteose do virtual' e do 'puro software', por fim como 'odisséia triunfal no espaço' e como pílula de 'ecstasy' que tem a vantagem de não intoxicar". Daí que Eco age como se "na história não houvesse saltos, variações e descontinuidades; todas as épocas tivessem tido os mesmos recursos e as mesmas finalidades; as culturas grega, medieval, barroca, iluminista nada mais fossem do que reconfortantes antecedentes e animadoras confirmações de nossos gostos e de nossas idéias".

Jesus Cristo é o senhor.

Não tenho lido ataques mais bem direcionados e certeiros às nossas tolices culturais contemporâneas do que este. Nas salas de aula, nos debates e nas palestras que frequento, fala-se muito a respeito da noção de historicidade da obra artística — o que, a princípio, é algo louvável. No entanto, é perceptível que a própria historicidade, em 95% dos casos, é só mais uma etiqueta esterilizante, utilizada quase sempre para ressaltar vulgaridades políticas em detrimento de uma análise estética plena. O resultado acaba sendo proselitismo ideológico ou, ainda pior e mais inacreditável, partidário.

sss

Isto, naturalmente, não pode ter interesse algum — mas, ao mesmo tempo, não é desculpa o suficiente para que, diante de uma gesta medieval, o leitor crítico se sinta obrigado a forçar paralelos imaginários entre aquela obra e a sua própria época ou, pior, a sua vida particular. O mito da identificação, sempre em voga, tem também os seus perigos específicos. A postura de Eco é muito comum nas universidades, adotada por todos os professores que supõem lidar com idiotas em sala de aula — daí que, para que Dante seja compreendido, ele precisa ser decomposto em termos contemporâneos, de preferência cibernéticos. Trata-se de um indicativo claro da falta de consciência e, mais ainda, de imaginação histórica do leitor.

666

***

999

Todorov lançou A literatura em perigo há alguns anos. Trata-se de um mea culpa breve e criticamente irrelevante. Após se tornar uma espécie de líder estruturalista, Todorov se sentiu incompreendido e partiu para a frente oposta, tentando ressaltar, nas 80 e poucas páginas deste ensaio, o valor humano da literatura. Sem o rigor dos seus métodos de análise textual, Todorov não foi muito além do óbvio. Ainda assim, é sintomático que justo ele saia a público declarando o perigo de se ensinar os métodos e não os autores. Particularmente, a minha experiência de estudante de literatura numa universidade de província não se enquadra nos termos da crítica de Todorov: jamais tentaram me ensinar métodos analíticos formais ou estruturais — ao contrário: o que impera é a mais rigorosa assistematicidade, o vale-tudo teórico. Da mesma forma, não consigo imaginar que, nas escolas secundárias brasileiras, exista algum professor introduzindo nossos adolescentes desatentos às teorias de Chklovski. Para mim, está claro que o problema formalista, no Brasil, é um falso problema — pelo menos fora dos portões de alguma universidade nobre que eu não conheço ou frequento. A má qualidade e o fracasso do ensino literário no Brasil não têm nada a ver com isso. Nosso caso não é o de um sistema de ensino que ficou emperrado nos esquemas lingüísticos que nos perseguem desde Saussure — nem sequer chegamos até ele: nosso sistema de ensino nunca chegou a se livrar dos esquemas meramente catalogadores e biográficos; nõs não vamos ao texto literário, mas tampouco chegamos ao texto crítico ou teórico. Todorov lançou A literatura em perigo há alguns anos e alguém julgou que seus pontos seriam pertinentes ao debate do ensino literário no país — é curioso perceber como os críticos e professores brasileiros se dispõem a debater o que não existe e se empolgam com isso.

000

***

111

Acho curioso o fenômeno que passou a cercar a obra de Roberto Bolaño. Eu soube que sua repercussão em Portugal é uma coisa de dimensões quase inéditas — tal como já havia sido na Espanha e nos EUA. À parte a constatação óbvia de que os fenômenos literários que se tornam best-sellers não-programados se restringem a um círculo muito pequeno de pessoas (que só nos parece grande porque é grande o número de gente no planeta e a noção que temos deste fato não é exata), a fama que Bolaño alcançou ainda assim é fascinante e complexa. Seu principal romance, que é a obra fundamental para a disseminação do culto, tem mais de 1.000 páginas — algo que, por si só, afasta os leitores mais preguiçosos e menos assíduos, mas que, por outro lado, incrementa o culto de quem persiste. É muito triste quando lemos um livro por dois meses e depois disso somos obrigados a constatar e assumir a sua má qualidade. Pouca gente está disposta a tanto. Mas eu ainda não comecei a ler 2666 e não me adianto em dizer que o romance não presta — pelo contrário: a minha experiência com as obras mais curtas me faz esperar justamente o oposto. E o que existe para o leitor de Bolaño é esta noção de culminância, algo que satisfaz sobretudo aos leitores-escritores e às demais espécies de gente viciada em literatura porque lhes dá uma noção que antes de se mostrar perfeitamente global, a obra completa se mostra linear (e no rumo da imortalidade). É uma perspectiva de leitura que pode ser aplicada justamente aos autores mais cultuados que conhecemos, como Proust e Joyce, por exemplo.

...

***

lll

Eu lia Anna Kariênina e me veio uma certeza: escrever bem é uma preocupação verdadeira apenas para não-autores.