terça-feira, 19 de outubro de 2010

Linha 50



"(...)
Amante
Porque te desprezei?
Ou com ares de rei
Porque te fiz rainha?
(...)"
555
São perguntas que, no poema "IX" do volume Da morte. Odes mínimas, Hilda Hilst se faz a respeito de como chegará a "cavalinha" para buscá-la. Ninguém precisa encerrar as dezenas de poemas que compõem a obra para saber que se tratam de perguntas meramente retóricas: ela virá com ares de rei porque a morte, nestes poemas, se transforma numa senhor mui branca e vermelha, figura cuja ausência provoca, à maneira dos trovadores, um aparente emaranhado de sons e ritmos e metros que, subitamente, se mostra também repleto de uma coesão sentimental um tanto rara.
...
A aposta que Hilda Hilst faz no que diz respeito à leitura dos seus poemas me intriga já há algum tempo. A rigor, ninguém sabe de antemão como um poeta espera que seu poema seja lido: em voz alta, em silêncio, numa determinada velocidade, com pausas calculadas, de forma ininterrupta, etc. No entanto, é óbvio que existem técnicas formais que permitem ao poeta conduzir a leitura: pontuação, métrica, quebra de versos, espaçamento, etc. Um exemplo óbvio: a presença de um enjambement num soneto. Acredito que nada disso deve ser gratuito, sob pena de tornar o poema um mero bibelô formal — a excelência está em saber conciliar a imagem (ou, vá lá, a idéia) que se cria e a forma sob a qual ela se apresenta. Pensem num caso clássico como a balada dos enforcados de Villon, especificamente o verso em que o poema e o leitor balançam junto aos falecidos:
666
"Puis çà, puis là, comme le vent varie,"
666
Não creio que seja uma idiossincrasia da minha leitura o fato destas palavras se formarem como se de fato passassem de um lado a outro, balançando-se — ainda mais se considerarmos que é justamente a palavra "vent" quem determina estas variações. Villon, que me parece um poeta tão preocupado em despedaçar suas imagens e remanejar a linguagem poética de forma a torná-la, se não fragmentária, muito mais veloz em associação — algo que o torna tanto medieval quanto moderno, alguém dirá, eu direi (exemplo maior é "Le debat du cuer et du corps de Villon", essa mistura de chiste popular e poesia) — também compõe, em muitos poemas, uma morte minimalista em sua canção e em suas variações, reservando-se o direito de brincar em outros momentos.
999
Eu não diria que Hilda Hilst está brincando nas suas "Odes mínimas", mas me surpreende como sua poesia de morte é musical — seja em momentos plácidos, seja em ocasiões dramáticas. A convivência do aspecto meramente lúdico de quem caça palavras que soem e escorram bem com o caráter de interrupção que a morte quase sempre representa é notável e, vez ou outra, se apresenta numa mesma composição, como é o caso da ode "XXI":
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"Por que vens ao meio-dia
De cornadura galopando conchas
De cornetim à frente da minha casa
Corta-capim, corta-águas?
Descansa. Faz entrepausa.
Colhe matiz, faz nuança (...)"
767
Percebam que nem a utilização do ponto no quarto verso e da vírgula no quinto é gratuita, mas é feita em razão daquilo que é dito.
999
O que me atrai na sonoridade e na forma de Hilda Hilst é o seu caráter de exceção em meio à melhor poesia brasileira do século passado, seja da primeira ou da segunda metade. Explico assim: ela consegue ser excelente com uma carpintaria formal que, a certa altura, todos nós achávamos que estivesse morta por causa da sua suposta e irreal facilidade e da sua suposta e ainda mais irreal falsidade diante de um mundo aos pedaços. Não é fácil fazer o que Hilda Hilst fez — e o que ela fez não foi falso.