sexta-feira, 29 de maio de 2009

Linha 23


Resenha imprópria de Moby Dick. Tola pretensão de abarcar suas 600 páginas em 6.337 caracteres.

Em 1891, morre Herman Melville — que, no obituário publicado pelo periódico NY Times, é chamado de Henry Melville. Não se pode desconsiderar o contexto no qual e pelo qual seu nome é grafado de forma incorreta: o autor de Moby Dick morria relativamente esquecido, ignorado pela crítica e pelos leitores da sua época, símbolo de uma prosa decadente e ultrapassada — um autor, enfim, que não tivera a capacidade de impor seu nome ao cânone da literatura anglófona. Por outro lado, esse equívoco jornalístico está cheio de simbologia: encena, desde o século XIX, a diluição que a sua obra-prima (história tresloucada de Ahab e de sua monomania) sofreria nos 1900 — Moby Dick seria adaptada para o cinema, transformada em desenho animado (descaracterizando o feroz animal do original literário) e considerada uma espécie de símbolo maior da literatura estadunidense — que, tantas vezes, estaria desvinculado por inteiro da figura do seu autor. Moby Dick, então, sobreviveria — ainda que muitos ignorassem se seu autor fora Herman ou Henry.

Das adaptações, é inevitável que se sobressaiam a simbologia e a alegoria que a grande baleia branca representa. Mas a leitura do romance revela que, antes disso, há o encanto da linguagem. Ishmael, narrador irônico, embora solene, desenvolve e se utiliza de uma voz e de um tom únicos, inimitáveis: há resquícios de uma escrita impoluta (algo datada) misturados a um vocabulário muito bem definido, mas amplo e muitas vezes desabusado (que abarca termos técnicos, gírias marítimas, falares amorosos, etc.). A fluidez da narrativa é admirável — há um fio muito tênue que conduz os parágrafos, alcançando certa musicalidade que, em trabalhos de traduções, deve ser preservado ao máximo (tarefa ingrata, é claro, mas relativamente bem sucedida na versão lusófona de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza).

E é essa excelência estilística que surpreende o leitor de início. Até porque a narrativa das relações entre Ahab e Moby Dick tarda a aparecer. Ishmael retarda o surgimento do capitão, retarda as revelações sobre a sua história, retarda o seu encontro com a baleia: nesse movimento cruel, mas tentador, Melville exige força e ímpeto ao leitor. A caça às baleias não é fácil, tampouco a leitura do romance. Num procedimento muito comum ao escritor do "romance total" (em sua utopia de retrato absoluto da realidade — desde conjunturas socioeconômicas às miudezas íntimas dos personagens), o autor desvia sua pena por diversos caminhos: de início, surpreende-nos com a impiedosa auto-descrição de Ishmael; em seguida, intriga-nos com as relações que surgem entre o narrador e o adorável e terrível canibal Queequeg; logo, mete-se a descrever a vasta paisagem humana das terras costeiras americanas, louvando-lhes a grandiosidade marítima, a coragem caçadora; por longas páginas, apresenta-nos as psicologias sutis e bem construídas dos marinheiros. Quando Ahab, enfim, aparece, o leitor já se sente íntimo dos homens que habitam o livro e a embarcação — e é essa intimidade que nos permite experimentar a mesma estranheza que eles sentem diante do capitão.

Mas consideremos, antes, seus companheiros de tripulação. Formam uma fauna expressiva, repleta de contrastes e tensões, simbólica e perigosa para quem a lê com a mente tacanha, guiada por preconceitos. O leitor obtuso tropeçará, de início, na relação entre Ishmael e Queequeg: refletir o possível homossexualismo entre os dois é polêmica vã ou questão necessária? Mais do que espreitar seus movimentos (ocultos sob cobertores) nas frias e solitárias noites da estalagem, que nos atentemos à sutil alteração de tom, à cadência nova que Melville traz nessas páginas. Nelas, tudo é narrado com doçura, numa prosa quase lírica: "Tentei tirar seu braço — desfazer seu abraço de noivo — mas, como ele estava dormindo, ele me abraçava com força, como se nada além da morte pudesse nos separar". Em contrapartida, há o humor evidente da situação, também refletido em tom e vocabulário jocosos: "Que situação mais embaraçosa, pensei; deitado na cama, em uma casa estranha, em pleno dia, com um canibal e uma machadinha!".

O leitor obtuso tropeçará, em seguida, ao analisar as complexas relações de poder a bordo do Pequod: como considerá-las? É possível enxergar prepotência imperialista, nacionalismo ignaro nas figuras centrais de personagens como Starbuck e Ahab? Há críticos que notam uma hierarquia muito nítida e imutável — afirmando que, ainda que tantas culturas e nações estejam ali representadas, encontram-se todas elas subjugadas à grande nação estadunidense. Parece-me, contudo, uma análise marcada pela má-fé, uma interpretação que desconsidera a profunda ironia de Ishmael — que, tantas vezes, volta-se contra os próprios ideais norte-americanos: impossível não percebê-la no momento em que o narrador envolve-se no culto pagão de Queequeg com uma desculpa risível ("Ora, Queequeg é meu semelhante. E o que gostaria que Queequeg fizesse por mim? Ora, unir-se a mim em meu rito Presbiteriano de adoração. Portanto, eu devo unir-me a ele, logo, devo tornar-me um idólatra"). D.H. Lawrence, num singular ensaio sobre o romance, afirma que isso "soa como Benjamin Franklin e é, irremediavelmente, teologia barata. Mas é a verdadeira lógica americana". Portanto, me parece irreal e tola a imagem de Melville, um vitoriano barbudo, escrevendo cheio de recalques e desejos de expansão imperialistas através de sua literatura. Até porque sua literatura procura o íntimo.

E essa procura surge a partir da famigerada simbologia do cetáceo. Porque, invariavelmente, há tantos símbolos quanto leitores. Pouco é taxativo, pouco se encerra neste romance. Ahab, sim, possui a sua alegoria particular sobre o leviatã: trata-se do mal transfigurado num animal de brancura perturbadora. Mas até que ponto não é perturbadora e má também a insânia, a morbidez que domina o capitão desde seu último encontro com a baleia? Melville, de forma deliberada, despreza a nitidez aborrecida dos escritores menores — a ele interessa muito mais a diluição (talvez se divertisse com o equívoco do redator anônimo do NY Times). Essa profusão de interpretações, além de acentuar o caráter intimista de um romance tão vasto e geral, assinala também a sua condição de eternidade, tão acertadamente apontada e descrita por Jorge Luis Borges: "Página por página, el relato se agranda hasta usurpar el tamaño del cosmos: al principio el lector puede suponer que su tema es la vida miserable de los arponeros de ballenas; luego, que el tema es la locura del capitán Ahab, ávido de acosar y destruir la Ballena Branca; luego, que la Ballena y Ahab y la persecución que fatiga los oceános del planeta son símbolos y espejos del Universo."

Para tornar-se tão grande quanto o cosmos, Moby Dick precisa conter (em seus temas e em suas formas) o próprio homem, que é quem determina a medida daquilo que o compõe — e é assim, portanto, que Melville alcança a condição de autor fundamental, criador irrefreável de mundos e visões, dotado de uma aura quase mística (e tão importante é o misticismo em Moby Dick, repleto de figuras proféticas e imagens premonitórias).

O mar e a imensa baleia, espelhos da terra habitada por homens tão pequenos, não se aquietam nunca, impossíveis de serem solucionados. Assim como não se sabe se o cachalote nada livremente pelos oceanos ou se são os oceanos que lhe determinam o perambular, é impossível ao leitor confortar-se com uma certeza de domínio total sobre Moby Dick — resta sempre a impressão de subjugação absoluta ante os segredos e sentidos do romance.