quinta-feira, 21 de maio de 2009

Linha 22



Durante o ano passado iniciei um estudo irregular e assistemático de provençal moderno, ao qual sempre me referi como occitano. Era, ao que me parecia, o único caminho possível para me familiarizar com a língua medieval na qual os trovadores da região de Provença escreveram suas canções. Não se pode dizer que seja um meio absolutamente equivocado, mas o proveito se concentra quase que exclusivamente no vocabulário — a sintaxe antiga é muito particular e pouco adiantará se iniciar por meio dos típicos diálogos e textos ordinários que os cursos de língua nos oferecem.

Uma forma mais aconselhável de se preparar para o trovadorismo provençal é a leitura da prosa que se fez, de forma paralela, no mesmo período. Refiro-me, naturalmente, às peças biográficas e curiosamente críticas das vidas e razós. Há uma belíssima edição preparada por Martín de Riquer e editada por Círculo de Lectores y Galaxia Gutenberg (Barcelona, 1995), que, além dos textos, traz as miniaturas que representam os trovadores. Desnecessário dizer que, por se tratar de prosa (e sucinta), não se pode comparar o nível de dificuldade de sua leitura ao da leitura das canções. Ainda assim, serve para enriquecer bastante o vocabulário e apresentar uma sintaxe que já é mais estranha. Na peça referente a Arnaut Daniel, por exemplo, lê-se o seguinte:

"Arnautz Daniels si fo d'aquella encontrada don fo N'Arnautz de Meruoill, de l'evesquat de Peiregors, d'un castel que a nom Ribairac, e fo gentils hom. Et amparet ben letras e delectet se en trobar. Et abandonet las letras, et fetz se joglars, e pres una maniera de trobar en caras rimas, per que soas cansons no son leus ad entendre ni ad aprendre."

Numa tradução rápida, conservando os nomes próprios, percebe-se que "Arnautz Daniels foi [si fo] daquela comarca [encontrada] de onde foi N'Arnautz de Meruoill, da diocese [de Riquer anota "obispado"] de Peiregors, de um castelo chamado [que a nom] Ribairac, e foi homem gentil. E aprendeu bem as letras e se deleitou em trovar. E abandonou as letras, e se tornou jogral, e [de Riquer converte "pres" em "adquirió"; de início, intui que fosse "prezou" mas, caso se tratasse do verbo prear ou presar, "pres" indicaria a forma conjugada na primeira pessoa do presente indicativo, o que não faria o menor sentido nesse contexto: seguir de Riquer será sempre a melhor opção] adquiriu uma forma de trovar em rimas raras, motivo pelo qual suas canções não são fáceis de entender e [o "ni" ora é "e", ora "nem", etc. — nesse caso, não faz a menor diferença] de aprender"

Vê-se logo que ninguém precisa ser filólogo de formação ou poliglota de berço para captar as semelhanças com outras línguas românicas e, por indução, desvendar os sentidos.

As vidas estão repletas de casos pitorescos e fantasiosos, motivo que leva muita gente a considerá-las como peças de ficção. Segundo de Riquer, "Vidas y razós inauguran la narrativa breve románica, y al influir sobre el Novellino y tangencialmente sobre el Decameron ocupan un lugar primordial en la historia de la novela moderna". Daí se conclui, portanto, que sua leitura não serve apenas para familiarização com o provençal da Idade Média: é coisa que interessa ao estudo da literatura que, aos poucos, se formaria nas línguas latinas.

E, voltando à questão da língua, nenhuma preparação será o bastante para que o leitor pressinta o impacto que terá ao enfrentar uma canção. Estou longe de já ter feito uma leitura exatamente ampla das 2.542 composições, mas já insisti o suficiente para perceber que cada canção é uma língua particular, que cada uma delas exige um tempo longo até a compreensão e, sobretudo, até uma leitura fluente em algum nível. Fácil, obviamente, não é — mas, ainda que seja um trabalho e tanto, a partir de algum momento será possível acessar a origem de imagens e versos como os seguintes, de uma canção de Bernart de Ventadorn (...1147-1170...):

"Domna, per cui chan e demor,
per la bocha m feretz al cor
d'un doutz baizar de fin'amor coral,
(...)"


ou

"C'ora qu'eu fos d'amor a l'or,
er sui de l'or vengutz al cor"

que, em paráfrase, são "Dona, por quem canto e espero [de Riquer anota "existo", mas aqui me reservo o direito de discordar do mestre], pela boca me feriste o coração com um doce beijo de amor verdadeiro e cordial [a belíssima "coral"]" e "Uma vez estive à margem [or, orilla] do amor, agora da margem cheguei ao coração". O vocábulo "cor", por sinal, é outro que apresenta alguns problemas/possibilidades. Na canção "Quan lo rius de la fontana", de Jaufré Rudel (...1125-1148...), os versos

"Amors de terra lonhdana,
per vos totz lo cors mi dol;"


são compreendidos por Martín de Riquer da seguinte forma: "Amor de tierra lejana: por vos todo el corazón me duele". Peter Dronke, em The medieval lyric, faz uma paráfrase quase idêntica, mas com uma diferença essencial: "cors" é traduzido como corpo. Numa composição de Bernart de Ventadorn, Martín de Riquer também traduz "cors" como corpo. Augusto de Campos, em algumas canções de Arnaut Daniel, traduz "cor" (sem o s) por ser ou coração. A rigor, pode-se dizer que o contexto determinará o sentido justo. No caso dos versos de Jaufré Rudel, a versão de Dronke parece mais acertada ("todo o corpo me dói"), enquanto que no já citado "er sui de l'or vengutz al cor", não seria aceitável a tradução por "corpo", já que há mais sentido em partir da margem ao coração.

Como se vê, sempre haverá algum problema. Resta a cada um decidir se é uma forma valiosa ou desnecessária de gastar algum tempo.

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Tudo isso dito, ousei traduzir uma canção de Raimbaut d'Aurenga. Ele, considerado um dos maiores representantes do "trobar clus", já foi bem traduzido por Augusto dos Campos, que se dedicou justamente à sua lírica mais complexa. Optei por verter, portanto, uma canção mais "fácil" (para amenizar o meu trabalho, obviamente), referida por "No chant per auzel ni per flor", seu primeiro verso. Segundo de Riquer, "esta canción constituye un ejemplo de la facilidad y de la natural fluidez de que es capaz Raimbaut d'Aurenga, en oposición a la artificiosidad de su estilo más frecuente".

É uma canção muito representativa do lirismo amoroso dos provençais. Desde a sua abertura, com as referências aos elementos da natureza (sempre a flor, o que levou D. Denis a uma espécie de crítica ou sátira com sua cantiga "Proençaes non an coyta"), encontramos traços que são comuns à maioria das composições do período. Há, ainda, uma nota de erotismo bastante direto e o constante convite ao adultério e à dissimulação diante do marido. Se se quiser buscar e encontrar o conceito de fin' amor (o amor cortês) em versos, assim será. Mas que se observe, além disso (disso que costuma ajudar, mas também minar nossa leitura da poesia medieval), a situação particular e variada do sujeito poético, que se revela tão pouco confiável na segunda estrofe, lascivo na terceira, atrevidamente ditatorial na quarta, suplicante na quinta e demoníaco na sexta.

Sem mais delongas, a tradução:

Não canto por pássaro ou flor
nem por neve ou por geada,
sequer por frio ou por calor
ou pela grama esverdeada;
diante de outros regozijos
sempre permaneci mudo,
canto pra a dama a quem sirvo,
pois é a mais bela do mundo.

Agora longe da pior,
nunca vista nem cantada,
amo entre as damas a melhor
e também a mais louvada;
disso, pois, farei a minha rima:
que mais não amo nem beijo,
que sinto que a dama se anima
comigo — assim é que vejo.

Eu bem vos digo, minha dona,
que sob vossas cobertas,
tal me seria uma grande honra:
sentir-vos nua e desperta.
Às outras superais em tudo
— mas contenho o meu ardor —
penso e ponho no peito orgulho
como se fora imperador.

Dela me ouso dono e senhor
e nem é meu o seu destino
já que embriagado de amor
terei de amar escondido.
O amor de Tristão e Isolda foi outro
embora igual no agir;
eu amo a dama por um acordo
que não se pode trair.

E o meu valor será mais alto
se uma manta me for dada
como deu Isolda ao seu amado
uma peça nunca usada.
Tristão! Como vos alegrastes:
sentimento igual desejo!
Se também logro tal manto,
bom irmão, não vos invejo.

Vede, dona, que Deus ajuda
dona que de amar se farta.
Isolda, temerosa e muda,
logo foi aconselhada;
ela fez juras ao marido
de que jamais a tocara
homem algum de mãe nascido,
usai vós da mesma arma

Carestia, trazei dali
(de onde vive minha dona)
o que nem posso traduzir:
gozo novo que me toma.


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Agora, alguns problemas.

Tentei ao máximo conservar a métrica e as rimas, mas não foi possível uma equivalência absoluta (pecado imperdoável: não preservei as coblas unissonans). Dessa forma, busquei todo tipo de assonância nos finais dos versos. Procurei, ainda, evitar qualquer contato ou fuga através das paráfrases de Martín de Riquer com a intenção de não viciar a tradução no literal.

* Na segunda estrofe, o verso "disso, pois, farei a minha rima" é, originalmente, "que d'alres non sui amaire", algo como "pois não amo outra coisa".

* O verso que verti como "já que embriagado de amor" é, no original, "Car ieu begui de la amor" (literalmente, "pois eu bebi do amor") e faz referência, como se infere a partir da evocação de Tristão e Isolda na seqüência, às "poções do amor" típicas das grandes lendas e histórias amorosas da Idade Média.

* Sobre Carestia, Martín de Riquer anota o seguinte: "Como ha demostrado Aurelio Roncaglia (Carestia, "Cultura Neolatina", XVIII, 1958, págs. 121-137), Carestia es, aquí, un senhal con el que Raimbaut d'Aurenga designa al gran novelista champañés Chrétien de Troyes, quine, como es sabido, afirma que escribió un relato, hoy perdido, "del roi Marc et d"Ysalt la blonde" (Cligés, verso 5), y en varios de sus ramons alude al tema de Tristán e Iseut con franca hostilidad".

* Esse "o que nem posso traduzir:/ gozo novo que me toma", no original, equivale ao "(...) qe.m tem gauzen/ plus q'ieu eis non sai retraire". Literalmente, é "que me deixa mais satisfeito (gozoso, segundo de Riquer) do que posso explicar". Como se vê, aproveitei para pedir uma desculpa pela má tradução.