sábado, 16 de maio de 2009

Linha 21

No verbete "Conto" de seu Dicionário de Termos Literários, Massaud Moisés afirma que não tem o menor cabimento a utilização de uma estrutura temporal bergsoniana numa produção do gênero. Por acaso, Felisberto Hernández, um dos meus contistas prediletos (e leitor fiel e apaixonado de Bergson) faz exatamente isso: seu trabalho é quase todo pautado pela superposição temporal. Posto, dessa vez, um trecho do meu ensaio "Música e memória", a respeito das suas obras narrativas.

E vale dizer que ainda aprecio os dicionários.


A discrição de Hernández, que tinha o piano e a música clássica como ocupações principais e a literatura como atividade paralela, desenvolvendo a sua narrativa com pinceladas mais íntimas e menos perceptíveis, parece exigir um tempo maior para a apreciação devida — é muito difícil ligá-lo, de imediato, às manifestações literárias que se tornaram típicas da América Hispânica. Reverenciado por Cortázar, tornou-se um narrador lido, compreendido e admirado quase que apenas por escritores. Não por acaso, foi Italo Calvino quem alertou os possíveis leitores do uruguaio no sentido de não diminuí-lo em ligações apressadas a outros autores latino-americanos, pois, com a típica astúcia dos grandes artistas, Felisberto Hernández "desafia toda classificação ou rótulo". O intelectual brasileiro Davi Arrigucci Jr., responsável pelas únicas traduções dos contos de Felisberto disponíveis no Brasil, define-o como "um memoralista, um memoralista proustiano" - e, dessa forma, aponta um caminho para a compreensão da sua obra, sempre enigmática e sutil.

A aproximação entre Proust e Felisberto não se dá simplesmente pelo tom evocativo que as suas criações possuem. O primeiro ponto que os une é a própria construção da narrativa, marcada por uma tentativa urgente de tornar alheio o que nela não se concentra. Ao entrar nas primeiras páginas de No caminho de Swann, o leitor atento do clássico francês notará o esforço do narrador na criação de um mundo específico. É esta a mesma impressão deixada por contos como "A casa inundada" ou "O cavalo perdido", duas das melhores obras do uruguaio. O que distancia Em busca do tempo perdido dos contos de Felisberto é, entre outras coisas, o método utilizado para esta busca. Proust ergue o seu mundo inconfundível por meio de descrições minuciosas, numa recriação poética da realidade vulgar e cotidiana que já é superficialmente conhecida pelo leitor, mas que, em suas filigranas, passa despercebida pelo olhar cansado dirigido a um mundo cada vez menos apreensível; o grande mérito do francês consiste em acentuar detalhes que muitos considerariam supérfluos, meros adornos — seja da decoração, da vestimenta, das ruas de Combray ou Paris, das atitudes dos seus personagens mais ínfimos ou das impressões do seu narrador. Hernández, porém, trabalha de maneira oposta: não se preocupa com a recriação total, pois seu mundo é constituído de fragmentos, quase sempre oníricos e confusos. Não busca o chão, a realidade, mas trabalha no vácuo. Dessemelhanças compreensíveis, afinal, por lidarem, esses autores, com formas textuais distintas — e, de certa maneira, ligam-se através dessa diferença, já que ambos potencializam ao máximo os atributos e as possibilidades do romance, no caso de Proust, e do conto, no caso de Felisberto. O francês demonstra tal preocupação com sua sanha descritiva e através do grande volume de páginas que legou — enquanto o artista sul-americano trabalha ao máximo a possibilidade de sugestão e inconclusão que a narrativa curta lhe permite. Não seria correto, contudo, filiar a obra de Hernández a uma tradição que se baseia em reputados manuais do conto — sua prosa não é exatamente concisa e direta, mas difusa. Desenvolve-se em tempos distintos, alongando-se e, quando necessário, aproximando-se de uma forma um tanto novelística.

Embora diferenciados, ambos os expedientes são bem traçados pelos autores e resultam em êxitos plenos. Em Proust, sentimo-nos num local quase familiar que, por vezes, parece-nos uma realidade ainda mais completa - enquanto que, na obra de Hernández, é o estranhamento que se instala: estamos sempre adentrando terras ignoradas, mas tão reais quanto as que pisamos diariamente. Numa analogia musical, é possível utilizar-se da pequena frase da sonata de Vinteuil que, ao longo do monumental romance do francês, acompanha um dos personagens. Embora seja ficcional, ao leitor surge perfeitamente definida (“dançante, pastoral, intercalada, episódica, pertencente a um outro mundo”, e representação maior duma “felicidade nobre, ininteligível e precisa”). As canções de Felisberto, jamais identificadas, mas claramente reais e apreciadas pelo autor, são descritas de maneiras mais oníricas: “Ella encendía las cuatro velas de los candelabros y tocaba notas tan lentas y tan separadas en el silencio como si también fuera encendiendo, uno por uno, los sonidos.” – como se pequenas suítes de Debussy ou Fauré fossem cuidadosamente deturpadas em interpretações imprecisas, reservadas a dedos experientes. A associação à música não é gratuita. A memória dos narradores de Felisberto, na maioria das vezes, está estranhamente relacionada às canções — ambas são fugazes e inapreensíveis. A esse respeito, evoque-se certa personagem de "O cavalo perdido":

“Eu também comecei a estudar piano; e estudava que estudava, e nunca via avanço, não via resultado. Em compensação, agora que faço flores e frutas de cera, posso vê-las... tocá-las... é alguma coisa, a senhora compreende”.

Situação devidamente ilustrada pelo narrador, ao afirmar que “O cinema das minhas lembranças é mudo. Se para recordar posso usar meus olhos velhos, meus ouvidos são surdos para as recordações”.

A indefinição dos cenários termina por cristalizar-se também no estilo que, alternando períodos longos e trechos francamente truncados e entrecortados (demarcados, sobretudo, pelo ponto-e-vírgula), quase sempre provoca a tentação, ou mesmo a necessidade, de uma ou mais releituras para uma familiarização e uma compreensão maior destas narrativas. As bifurcações não parecem sugerir que escolhamos apenas uma vereda e a sigamos: é necessário que, após a exploração de uma, a outra também seja percorrida.

(...)

Todos os personagens de Hernández são solitários irremediáveis. Quase sempre pianistas e contistas, possuem traços autobiográficos óbvios. Caminham por ruas úmidas e escuras de Montevidéu e do interior do Uruguai e da Argentina, entre teatros, animais e pessoas estranhas. Verdadeiros vagões desatrelados, parecem guiados por uma pulsão indefinível: às vezes, como em "O balcão", parece ser a compaixão que de início os guia (muito embora em seguida ela se transfigure em sentimentos menos nobres e mais violentos) e, noutras, como fica claro em "O lanterninha" e em "A casa inundada", a pura curiosidade e a necessidade de sobrevivência os fazem caminhar. A solidão do lanterninha que descobre possuir uma luz própria que se lhe acende dos olhos e que diz afundar-se em si mesmo "como num pântano" é a mesma que atravessa toda a ansiedade, o aparente fracasso e o aparente sucesso do narrador de "Mi primer concierto", no qual desenrola-se a primeira e sofrida apresentação de um pianista ("Pero donde más sufría, era en la memoria"). Se através da sua obra quisermos conhecer o autor (expediente que, segundo Nabokov, é "infantil"), vamos percebê-lo como um homem sombrio e apaixonado, debatendo-se entre o horror e a atração pela vida, pelos homens e, sobretudo, pelo passado. Por outro lado, talvez seja uma incorreção especular sobre a suposta atração que autor e personagens nutrem pelo passado: esses homens, em realidade, jamais conseguiram livrar-se de sua presença dúbia, ao mesmo tempo necessária e incômoda. Na poética sutil (mas contundente) do autor, as visões passadas são águas que encharcam os homens e suas roupas — calças e paletós molhados que pesam e insinuam resfriados (não por acaso, há inúmeras referências ao perigo de afogar-se na memória). Num dos trechos mais significativos de "O cavalo perdido", o homem relembra a impressão que tinha, quando criança, ao chegar à casa da professora após atravessar uma rua cheia de magnólias:

“No instante de chegar à casa de Celina, eu tinha os olhos cheios de tudo o que tinham juntado pela rua. (...) O que nuca dormia de todo era uma certa idéia de magnólias. Embora as árvores onde viviam tivessem ficado no caminho, elas estavam por perto, escondidas atrás dos olhos.”

Há sempre a idéia de que a memória e o passado constituem-se de resquícios indeléveis.

Tais personagens, ademais, parecem sobreviver num desconforto absoluto, que não é apenas psicológico e sentimental, mas também físico — o jovem pianista aprendiz de "O cavalo perdido", por exemplo, chega a afirmar que sua professora lhe conhecia as mãos melhor do que ele mesmo. Trata-se de algo perceptível também na insônia e nas dúvidas gestuais que assolam o narrador de "Mi primer concierto" no momento de entrar, caminhar até o piano e saudar o público — “Después me encontré con otra dificultad grande: las manos”. Parece compreensível, portanto, que a maioria dos seus personagens demonstre certo encanto diante da imobilidade dos objetos, devotando-lhe atenção e certa inveja. Desde a infância, o memorialista de "O cavalo perdido" explicita sua curiosidade diante dos móveis da casa da professora de piano — curiosidade que, a certa altura, ganha conotações sensuais, francamente eróticas. No breve "Ninguém acendia as luzes" é uma estátua quem parece servir de figura de paixão ou, pelo menos, de alívio ao narrador; enquanto lê um conto de sua autoria, ele se obriga a desviar sua atenção dos bustos, olhos e cabelos dos convivas, procurando contemplar a placidez com que uma estátua feminina parece permitir que um grupo de pombas sobrevoe a sua cabeça. Não surpreende, afinal, que uma personagem de "O balcão" se declare apaixonada pelo balcão referido no título — ama, sobretudo, a fidelidade e a mansidão daquela varanda; e o encerramento trágico desse conto nasce exatamente de um movimento realizado pelo balcão, que desaba.