quinta-feira, 2 de julho de 2009

Linha 27


Decidi parar de ler ficção e, por seis meses, estive longe de romances e contos. Retornei semana passada, li A noite dos cristais, de Luís Fulano de Tal, e estou lendo Putas assassinas, coletânea de contos assombrosos de Roberto Bolaño. O exílio sempre influencia e, no retorno, tudo nos sabe melhor. Lembro que, em janeiro, li Joyce de forma automática e estúpida. Agora posso ler Lazarillo de Tormes com os olhos devidos. Mas quero chegar a Alfonso Berardinelli, crítico literário e ensaísta italiano. Polemista, gosta de escrever contra qualquer tipo de uniformização. É conhecido o seu elogio do provincianismo. Também a sua desconfiança diante da obscuridade. É bom lê-lo quando ironiza Umberto Eco ou quando desconstrói Hugo Friedrich. Verdade que, vez ou outra, comete o mesmo pecado dos seus alvos e tende à uniformização, sobretudo no que diz respeito à poesia norte-americana — mas não serei eu a exigir santidade e ausência de pecados na conduta intelectual de quem quer que seja. E é do romance que quero falar. Mais propriamente, das idéias de Berardinelli sobre o romance. O italiano parece assustado diante da profusão de livros desse gênero e dos números expressivos em suas vendas. É justo: quem já conversou com escritores, quem conhece um pouco que seja do mecanismo e da relação entre artistas e editoras, sabe que o romance é a meta, que o romance é a exigência e que, caso haja encomenda, será encomendado um romance. É fácil discernir a situação quando se fala em best-seller, gênero consumido pela burguesia semiculta, mas desprezado pelos semi-intelectuais — os mesmos semi-intelectuais que, quando o assunto é distanciado das listas de vendas, têm a visão obliterada e já não percebem mais o engodo. Entenda-se: basta um leve verniz para que se tome Daniel Galera como exemplo de romancista absolutamente oposto à Fernanda Young. Entenda-se ainda: essa separação se baseia num critério inválido, que julga a obra a partir do escritor, da imagem pública do escritor, excluindo-se por completo qualquer consideração acerca da qualidade do que está escrito. Trata-se, obviamente, de um argumento ilusório que serve para preservar e aguçar a vaidade dos leitores jovens e semi-intelectuais, no caso de Galera, mas que pode servir também aos adultos semi-intelectuais, aos velhos semi-intelectuais ou a qualquer outro grupo semi-intelectual que se reúna em torno de Bernardo Carvalho, Daniel Galera ou João Paulo Cuenca — para fechar com três nomes. Escreve Berardinelli sobre o otimismo com o romance que ele é "parte daquela disseminada democracia cultural, fatalmente hipócrita, que deve oferecer a todos a possibilidade ou a ilusão de ser tudo: até romancistas. Ou seja, a democracia mata o romance ao incentivá-lo; ou o incentiva tanto assim porque sabe que já o matou." Diz o italiano que aquilo que falta é autocrítica. Por outro lado, é inevitável perceber, sobretudo no caso brasileiro, que antes disso falta mesmo a crítica: não é incomum, por exemplo, ouvir acadêmicos afirmando que não se pode julgar obra alguma a partir de um critério (que eles julgam impossível) de qualidade. Há que se entender as diferenças e respeitá-las. Transforma-se o crítico num compreensivo e passivo leitor que, nos seus escritos, tece exegeses desnecessárias e óbvias sobre o lido. As considerações estéticas resumem-se em clichês que tomam cerca de três linhas do texto. De resto, elucubrações sobre um vago sentido da obra. A última polêmica sobre o romance brasileiro foi levantada por Décio Pignatari. Há muito de exagero: sua fixação por um romance urbano e industrial é tão vaga e supérflua quanto a idéia, que ele diz ser disseminada entre os escritores brasileiros, de que o romancista só precisa contar uma história. É simples: levar esse preceito urbanóide ao extremo é a mesma coisa que avaliar o romance pela história contada, pela ambientação da história que se conta, pelo caráter típico do personagem que compõe a história contada. Pignatari usa o mesmo método, modifica apenas os objetos: sai o mato, entra o asfalto; sai o cavalo, entra o ônibus, etc. Acredito que isso dê a medida justa do momento que a prosa brasileira atravessa: romancistas que se tornam celebridades, celebridades que se tornam romancistas, professores que se eximem covardemente da crítica, críticos que desistem de ensinar. É o cenário, o ambiente ideal para perpetuar o romance quase bom, feito sob encomenda, cujo estilo ordinário se justifica pela secura do tema e cuja data de validade só não vem indicada na quarta-capa por pudores incompreensíveis dos editores e por desleixo das entidades de defesa do consumidor.