domingo, 26 de julho de 2009

Linha 29


De início, afirmo que me ausentei desse espaço por motivos diversos e que nenhum deles merece ser citado. Pretendo retornar em breve. Por enquanto, ficam aí alguns pedaços de um ensaio sobre Roberto Bolaño. Mais um.

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Julio Cortázar jamais se recusou a ensaiar profecias, compartilhar quimeras e registrar suas singulares epifanias. Retorno, por ora, a uma breve declaração que se desloca entre essas três privilegiadas formas de conhecimento e intuição:
“El día en que América Latina cumpla su destino revolucionario, cualquiera leerá a Felisberto con la familiaridad que hoy falta en muchos lectores.” Refere-se a Felisberto Hernández, contista uruguaio, cuja narrativa, ainda hoje, parece estrangeira e incompreensível para tantos. Contudo, mais do que a referência à obra de Felisberto, interessa-me, agora, outro aspecto dessa frase: saber a que espécie de revolução se refere Cortázar. Como se percebe, existe também a idéia, central, de que a revolução, mais do que necessidade ou conveniência, é um destino — acontecerá, Felisberto será compreendido; resta-nos conjeturar acerca de datas e métodos. Não se explicita, contudo, se se trata de uma revolução política, estética, filosófica — sabe-se apenas que há algo diverso que aguarda o continente e pelo qual o continente também espera, num estado de suspensão e incompreensão de si mesmo. É, contudo, um processo continental, sem dúvidas supranacional. Superação de literaturas de nacionalidade, encerradas por fronteiras políticas.

Não é possível ignorar, porém, que o caminho inverso é tentador — sendo, paulatinamente, revigorado. Analistas e leitores, partindo do pressuposto equivocado de que a observação dos fenômenos latino-americanos enquanto latino-americanos é de procedência puramente européia ou norte-americana, fruto do olhar que ignora particularidades daquilo que despreza (o Uruguai, o México, a Guatemala, o Haiti, o Brasil), dão início a um discurso nacionalista, de viés claramente reacionário e anacrônico. Em certos momentos, na sua concepção algo defensiva, chegam também a ofender: minimiza-se o valor estético e mesmo político das obras do modernismo latino-americano. Jaime Alejandro Rodriguez Ruiz, por exemplo, afirma, a respeito dos modernistas, que

"Elogiaban lo universal y el cosmopolitismo, y precisamente por esto nosotros consideramos que aunque los modernistas dieron un visible empuje a la literatura hispanoamericana, no influyeron decididamente en la formación del concepto de la literatura nacional. Si es obvio que le garantizaron el vigor literario propio, pero únicamente en los aspectos formales".

Há, por trás de semelhante pensamento, a crença (que alguns poderiam imaginar ingênua, mas que me parece bastante pensada) de que a função primordial de romances, contos, dramas ou poemas é delimitar fronteiras, criar mitos fundadores de uma nação — crença que parecerá defasada em algumas centenas de anos. Não há qualquer tipo de apreciação ou consideração estética na afirmação de Rodriguez Ruiz: é puramente política. E é perceptível, ainda, um considerável menosprezo pelo valor político que as obras do modernismo hispano-americano possuíram: a súbita valorização que alcançaram autores como Cortázar, Onetti, Neruda, García Marquez, Vargas Llosa ou Borges também foi fundamental para a consolidação do peso histórico e político da América Latina.

(...)

Os detetives selvagens, nos dados de catalogação das obras de Roberto Bolaño, é classificado como mexicana enquanto que Amuleto é registrada e apresentada como "ficção chilena". A rigor, é de se esperar que México e Chile procurem enquadrá-lo no seu próprio cânone nacional — num ímpeto provinciano e orgulhoso. Cite-se, por exemplo, a enigmática (para dizer o mínimo) declaração do romancista espanhol Javier Cercas, segundo a qual Roberto Bolaño foi, acima de tudo, um "escritor espanhol". É uma luta vã, desperdício de tempo e força diante de uma literatura tão vasta e profunda quanto essa produzida por Bolaño, autor e cidadão latino-americano — como ele mesmo se declarou em entrevista à revista Playboy, quando questionado se se considerava "mexicano, chileno ou espanhol". A influência que Bolaño exerce na atual literatura em língua espanhola (e que não tardará a se transformar em paradigma a ser superado) deve-se, em parte, a esse seu desenraizamento, essa rara sensibilidade de tocar numa grande quantidade de temas, de não confinar-se aos tipos, problemas e paisagens de uma nação. Segundo Rodrigo Fresán, sua relação com Bolaño nasce, justamente, do fato de que não procuram "ser literaturas nacionais, porque as raízes foram postas na biblioteca e em sua leitura; eu sempre digo: a pátria é a biblioteca de um escritor, o DNA é a biblioteca". E não será difícil imaginar a profusão de livros do modernismo hispano-americano na biblioteca de Roberto Bolaño se acreditarmos na afirmação de Fresán — para quem Bolaño "em nenhum momento, trai os grandes temas da literatura latino-americana. (...) Lá estão o exílio, a derrota, os militares, a tortura, os desaparecidos, está tudo lá, os cavalinhos de batalha e todos os clichês (...)".