sexta-feira, 3 de julho de 2009

Linha 28


Toquei nesse assunto ao longo do ensaio sobre Catulo. É mesmo o centro do referido texto, eu diria. Por isso, então, retorno. Há um verso de Calímaco, no Epigrama "XIII: 43", assim traduzido por José Paulo Paes:

"me aborrece tudo quanto seja público."

Não recordo o motivo, mas não citei esse verso no ensaio. A bem dizer, não recordar o motivo pode indicar uma falta de memória que me fez, também, esquecer do verso. Depois recordei-me, agora cito-o:

"me aborrece tudo quanto seja público."

Antes, o seguinte:

"Odeio também o amado a varejo, não bebo da fonte;"

Catulo enche sua obra de referências sarcásticas e depreciativas ao público. Assim se desenvolve sua lírica amorosa — sempre a caminho de poucos; no limite, a caminho dele e de Lésbia. Haveria uma óbvia contradição entre tal posicionamento e a construção de uma obra poética, mas aqui entra-se nos limites da poesia como representação direta e ingênua de desejos e sentimentos de um poeta ególatra e exilado em si mesmo. Essa não me parece ser a situação de Calímaco ou Catulo. Assim como não é a posição de Ricardo Reis, que escreve

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos. Tudo é alheio
ssssNem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
Onde esconder-nos, tímidos do insulto
ssssDo tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
ssssSeja sacro por nosso.

O Horácio grego que escrevia em língua portuguesa, como foi definido por Pessoa, tem essa obsessão casual. Catulo e Lésbia, Reis e Lídia: elevados, tornam-se estrangeiros diante da vulgaridade do que é alheio ao amor que sentem. Recordo-me ainda da engenhosa ode 84 — que quase é, ela mesma, a confusão que Catulo propõe em alguns dos seus versos. A bem dizer, a ode 84 tem uma lógica discernível, não se enquadra na movimentação moderna de poetizar de forma caótica — seria um despropósito ligar algum dos poetas aqui citados a esse fenômeno.

Se há indicação de um percurso que busca conduzir ao hermetismo puro e simples, ela não é central. Daí que é perfeitamente compreensível (no sentido de não ser obscuro) o poema amoroso de Catulo ou de Reis. Vai mais longe, no entanto, a indicada ode 84:

Quantos gozam o gozo de gozar
Sem que o gozem o gozo, e o dividem
sssEntre eles e o que os outros
Vêem que gozam eles.

E, mesmo assim, não se trata de caos, mas de uma lógica algo rara e baseada na repetição do termo gozar e variantes que, a princípio, soa aborrecida e desnecessária. Mas são bons os versos que encerram:

Cada um é ele só, e se com outros
Goza, dos outros goza, não com eles.
sssAprende o que te ensina
sssTeu corpo, teu limite.

É possível perceber, inclusive, que é um caminho absolutamente diverso do percorrido pela poesia modernista, que busca liquidar limites — o fato dessa busca conduzir até a obscuridade e a limitação da poesia a um número bastante restrito de leitores é assunto diverso. O problema no qual se concentrar, por ora, é outro: o verso modernista, o obscuro e pessoalíssimo verso modernista, é o verso do eu que não quer limites. Mas, a bem dizer, já tenho pudores em me referir a um verso "modernista".

***

Dirceu Villa, no já famoso "Como diz o tenente Columbo: I’m just tying up some loose ends here, that’s all" dá certas alfinetadas no ensino literário brasileiro:

"A peculiar infelicidade, no Brasil, quando pensamos (supondo que se pense nisso, que alguém o faça) numa educação literária, poderia ser, de início, o fato dela simplesmente não existir.

Mas vou evitar toda espécie de fatalismo, & direi que é, em uma palavra, o culto do típico."

Certo. Daí meu pudor em falar de modernistas — pudor que existe também ao falar de parnasianos, simbolistas, barrocos, etc. Há uma justificativa para tudo: dividir a literatura em escolas é facilitar o trabalho em sala de aula. Mas é também torná-lo tedioso e desvirtuado. Sei de algumas necessidades — como, por exemplo, a de estudar enquanto escolas os movimentos que se pretenderam, de fato, escolas, inclusive definindo marcos e escrevendo manifestos. Justo. Mas daí a estudar os ditos poetas barrocos dessa forma vai um passo e tanto.

Pois então, se a escola literária é um empecilho para o ensino e quase inútil para a crítica, deve-se insistir? Sua função, a princípio unificadora, facilitando o entendimento superficial de diversos autores com base em ligações legítimas entre eles, torna-se tanto simplificadora quanto desagregadora, visto que impede o jovem leitor de provocar um contato verdadeiro entre Camões e um poeta do romantismo, entre Camões e Pessoa — assim como desabilita a demarcação de diferenças e contradições entre o Camões de um soneto e o Camões de outro soneto.

***

Mas é que o caminho que interessa e que cabe ao aluno, que é o da dúvida, infeliz e hipocritamente não pode ferir a dignidade e a pretensa sabedoria do professor. Mas retorno aos poemas.

***

Há que se atentar às aparentes ou verdadeiras contradições que, inevitavelmente, serão encontradas no desenvolvimento e mesmo na origem das diversas linhas da poética ocidental. Há o profundamente subjetivo que se espalha, o essencialmente objetivo que se isola. Tal constatação, ainda que traga confusão à percepção do leitor, é necessária e útil para que sejam derrubadas as noções estanques e tediosas acerca do lirismo, gênero que, desde o batismo, já se destinava à confusão.