sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Linh 33

Fenomenologia da laranja

Trata-se de um consenso crítico: Papéis avulsos, coletânea de contos publicada em 1882, é um marco fundamental na evolução literária de Machado de Assis. Lá estão, por exemplo, clássicos como "O alienista", "Teoria do medalhão" e "O espelho" (a respeito do qual aqui se escreve). Melhor, no entanto, é fugir dos consensos e lançar-se à obra: "O espelho" não é um conto que se submeta a qualquer espécie de análise esquemática baseada na evolução de Machado como artista e gênio solitário no século XIX brasileiro ou no desenvolvimento de uma corrente literária (muito mais tênue e enferrujada do que supõe uma crítica pouco comprometida com o texto) nesse mesmo século, sob esse mesmo gentílico.

Uma leitura que se ampare, por exemplo, na imagem de um Machado enquanto patrono das letras brasileiras, figura sisuda que impõe respeito e temor a quem quer que se aproxime dos seus escritos, estará sujeita a um equívoco costumeiro na apreciação da narrativa machadiana, qual seja, diminuir ou ignorar o seu humor e a sua ironia. Essa ironia, naturalmente, já se revela em seu próprio estilo, sobretudo na escolha dos adjetivos e no tom utilizado por seus personagens, que muitas vezes falam como se discorressem sobre os temas mais graves da existência humana quando, em realidade, despejam obviedades e observações pretensamente filosóficas.

Já no parágrafo inicial, não se pode deixar de ter a percepção de que Machado procura ridicularizar os "quatro ou cinco cavalheiros", "quatro ou cinco investigadores de cousas metafísicas" que, segundo o narrador, estavam "resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo". Ora, ainda que, a princípio, não se considere ridícula a situação de um grupo de amigos que discute temas filosóficos noite adentro, é impossível ignorar que o referido narrador transforma essa cena em algo patético porque ele mesmo a observa como algo patético. Seu tom é nitidamente sarcástico, o que se percebe por meio da já referida adjetivação extremada (vide "os mais árduos problemas").

Seguindo a leitura, logo se perceberá que a figura central da narrativa é Jacobina, o mais calado dos investigadores. Quando encontra a explicação paradoxal para o posicionamento passivo de Jacobina, o leitor está habilitado a perceber a amplitude da ironia machadiana, pois tanto são ridículos os que investigam o universo quanto o que se exime de investigá-lo amparando-se em justificativas obtusas. Quando resolve falar, Jacobina apresenta uma longa reflexão sobre a alma humana, que ele afirma não ser apenas uma, mas duas: uma interior e outra exterior. Trata-se, obviamente, de uma idéia estapafúrdia — ou melhor: o narrador a trata como uma idéia estapafúrdia. Todo o despropósito da teoria de Jacobina se condensa numa afirmativa sua, segundo a qual o homem è "metafisicamente falando, uma laranja". Nesse absurdo, Jacobina reduz o homem e a metafísica a uma laranja e dá a medida exata da profundidade do seu pensamento.

Não se trata de um expediente raro na ficção de Machado de Assis: lembre-se, por ora, de Quincas Borba, inventor de todo um sistema filosófico (intitulado Humanitismo) que se resume no famoso "Ao vencedor, as batatas". A filosofia de Humanitas, no entanto, se desenvolve de forma inversa, sobretudo porque Quincas é um representante feroz de uma espécie de darwinismo social, um arranca-rabo existencial que sempre propõe e valoriza o combate e a superação. Jacobina, por sua vez, é profundamente pacífico: exime-se de qualquer tipo de discussão e quer, ao contrário de Quincas (que encontra justificativa até mesmo para a guerra) evitar a "bestialidade" humana que um debate, segundo ele, representa. Seja como for, as duas filosofias se encerram em imagens que se relacionam: a batata e a laranja; e, seja batata ou laranja, seja Quincas ou Jacobina, tudo se revela, para esse narrador, como exemplos de falsa erudição e de filosofia barata.

Embora aqui se considere impossível uma discussão séria das propostas filosóficas de Jacobina, é necessário, para a compreensão do conto, que se busque compreendê-las e relacioná-las à personalidade delineada nos trechos iniciais da narrativa. Como muitos dos personagens de Machado, Jacobina é um homem obcecado por títulos e por sua reputação. Não é, de forma alguma, tema estranho à tradição literária brasileira: no século XX, por exemplo, esse traço seria fundamental na construção dos personagens de Lima Barreto, a maioria deles preocupada com o título de bacharel ou doutor. No caso de Machado, escrevendo num país ainda sem universidades, o personagem anseia por uma nomeação militar: torna-se alferes e a perspectiva de sua observação (seja de outras pessoas, como os escravos, ou de si mesmo) se altera e se reconfigura de forma a partir sempre do posto de oficial que agora ocupa.

Jacobina se enxerga apenas enquanto portador de um cargo militar: não há homem, só há o alferes. Nasce daí, portanto, a sua filosofia tortuosa, que caminha e se desenvolve de maneira a justificar a sua condição de homem puramente exterior, esvaziado de intelecto e de espírito. Durante o conto, ele mesmo afirma que "O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primeira cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade". Não há, no entanto, nenhuma observação sua de que isso se trate de algo a se lamentar ou combater, ao contrário: o fato de vestir a farda para reconhecer-se no espelho e situar-se outra vez no mundo e no seu próprio corpo indica a sua desistência de buscar, por si mesmo, uma personalidade que o amparasse em momentos de desespero. Daí que sua filosofia é a da acomodação, do contentar-se com aquilo que está mais à mão, do aviltamento tanto do caráter quanto da propensão humana à dúvida e à experimentação — e assim se esclarecem o seu mutismo e as suas teorias.

Mas que não se tenha certeza a respeito do que aqui se afirma. Pois que certeza só interessa aos Jacobinas.