sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Linha 30

Gosto do conforto que o cinismo e a descrença oferecem. Mas não escrevo com intenção de buscar definições filosóficas ou existenciais para tais posturas: vou ser menor. Por menor, entenda-se que esse post busca apenas esclarecer (a mim e aos dois ou três que, por motivos que ignoro, se interessem pelo tema) a minha relação com o curso de Letras, sobretudo nos aspectos que, diante da reforma do ensino superior no Brasil, extrapolam a grade curricular e as preferências particulares e políticas dos que fazem a universidade. Extrapolam, a meu ver, com a intenção clara de tornar obsoleto o pensamento crítico e científico no que diz respeito aos estudos literários e aos estudos lingüísticos, respectivamente.

Antes que esqueça, segue uma explicação: falo de cinismo e descrença porque, por muito tempo, minha postura diante dos meus estudos universitários se baseou em cinismo e descrença. A rigor, fiz o caminho inverso da vida universitária típica — que se inicia sempre com ímpetos juvenis de renovação para acabar-se num lavar de mãos quase bíblico. Perto de encerrar o meu curso, percebi-me diante de certa responsabilidade — e não acho que a fuga seja uma atitude digna. Mas quero ir além de devaneios particulares, quero basear o meu texto no que, neste exato momento, ocorre no curso de Letras da Universidade Estadual de Feira de Santana — que, por sua vez, está apenas seguindo diretrizes dadas pelo MEC a todos os cursos de licenciatura em Letras do país.

A rigor, o MEC é visto e considerado sem desconfiança. Chega a ser espantoso: assumiu-se, de uma hora para a outra, que o Ministério da Educação tem uma história que lhe possibilita usufruir de um crédito quase ilimitado. Ainda não ouvi ninguém, na minha universidade, demonstrar algum discernimento diante dos documentos que devem guiar as graduações na área de Letras (e que não se esqueça, ainda, da atuação da CAPES no nível da pós-graduação). Óbvio que há uma sutileza no projeto do MEC, mas detectar especificidades de um discurso, sobretudo oficial, vindo de fonte com um histórico questionável, deveria ser especialidade nossa. Deixou de ser. Não se percebe mais nada.

O Ministério da Educação desejar tornar mais nítida a linha divisória entre a licenciatura e o bacharelado. Assim em Geografia, assim em Biologia, assim em Letras. Mas há uma armadilha clara nessa idéia: o curso de Letras tem um caráter específico — não encontramos letrólogos como encontramos geógrafos ou biólogos. O estudante formado em Letras, para atuar na área, vai ser quase que inevitavelmente professor. A idéia do MEC, então, continua: o curso de Licenciatura terá que, pouco a pouco, adequar as suas pesquisas, eliminando qualquer traço de "pureza", tornando-as pesquisas aplicadas ao ensino. Acredita-se, sabe-se lá como, que a pesquisa pura em Letras, seja lingüística ou literária, continuará sendo feita no âmbito do bacharelado, mas é óbvio que se trata de uma falácia: a tendência é que os cursos de bacharelado sejam ainda mais esvaziados. Pois não sei de muitas universidades brasileiras que poderão se dar ao luxo de financiar profissionais dedicados especificamente à pesquisa nos departamentos de Letras, esses marginais.

Daí que a conclusão é óbvia: o pensamento crítico na área de literatura e o caráter científico na área de lingüística estarão estagnados — ou, pelo menos, restritos a algumas poucas instituições nobres. A longo prazo, esse cenário indica, por exemplo, o fim da revisão crítica da obra de João Cabral de Melo Neto, Drummond ou Machado de Assis: em 100 anos, os professores brasileiros estarão ensinando, sobre esses autores, o mesmo que, hoje, nós ensinamos - o método será outro, o conteúdo será idêntico. Nenhuma visão nova surgirá. Óbvio que, no período de 100 anos, pode surgir um crítico que faça tal revisão — mas ele estará solitário e sua produção não encontrará eco no ensino superior e, portanto, não chegará aos níveis mais básicos da escola. Continuando nos exemplos, a pesquisa pura em lingüística, como o registro e a análise de particularidades da fala (que, para ser realizado, pressupõe a ida a campo), também vai parar no tempo — e ainda que isso soe mais estapafúrdio do que o exemplo literário, são idênticos, representam a mesma falência.

No meu convívio diário com os estudantes, percebo que a maioria corrobora a atitude do MEC. Partem do princípio absurdo de que o problema da educação no Brasil é um problema meramente didático e não estrutural, político ou mesmo conceitual. Crêem (e não duvidam sequer um instante) que a pesquisa pura não se reflete de forma alguma na sala de aula e que, por isso, é obsoleta, descartável. Tudo isso, naturalmente, é reflexo da nossa preguiça de pensar a educação em toda a sua significação e de acreditar que profissionalizar o professor é prepará-lo quase que fisicamente para ensinar nada.