sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Linha 34



Um dos motivos da minha ausência prolongada, se é que a alguém isso interessa, foi uma quantidade surpreendente e inesperada de trabalhos acadêmicos. Acho justo, portanto, que alguns desses trabalhos (os menos obtusos, aqueles que não são feitos simplesmente na base de repetição basbaque para posterior aprovação) acabem sendo publicados aqui. O semestre foi bom porque voltei a especular sobre Machado de Assis. Como resultado, posto aqui dois textos menores em tamanho e pretensão: interpretações pouco comprometidas de "Missa do galo" e de "O espelho". Por fim, um ensaio mais extenso sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas.


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Questões de estilo


É possível afirmar que ninguém lê Machado de Assis. Que, para conhecê-lo, a releitura, mais do que uma opção, é expediente inevitável. Lê-lo e abandoná-lo é contentar-se com uma impressão forte, mas pouco segura. Isso se deve, na maior parte das vezes, à sua sutileza. É verdade que, vez ou outra, sobretudo em contos mais pesados e longos como "O alienista", a releitura se impõe por conta da densidade de suas idéias e da profusão de temas que abarca. Mas é a sutileza sua marca maior: ela está, por exemplo, em "Um homem célebre", em "Uns braços" e, sobretudo, em "Missa do galo". Pois ser sutil é também isso: escrever um conto como se o escrevesse para que não haja interpretação, para que o leitor e o crítico se restrinjam às paráfrases e aos resumos do enredo. Não pela obra ser desinteressante ou vazia, mas por se configurar como insondável. Debruçar-se sobre as interpretações de "Missa do galo" só pode ser uma atividade demorada e exaustiva: existem possibilidades sociais, psicanalíticas, religiosas e mais outras tantas. Caberá ao leitor, mais do que escolher uma delas e descansar como se tudo houvesse sido desvendado, compreender a grandiosidade de Machado justamente na sua capacidade de sugestão. Nesse sentido, "Missa do galo" é Dom Casmurro: é a obra da discussão perene, da inconclusão.

O conto foi editado em 1889. Àquela altura, Edgar Allan Poe já estava morto há meio século. Tchekhov e Maupassant ainda publicavam seus contos. O formato da narrativa curta, a partir das obras do norte-americano, do russo e do francês ganhava contornos definitivos, formando regras e receitas: o conto será conciso e justo; nele, nada pode sobrar, nada pode faltar; alguns seguirão Poe em seus jogos e enigmas intelectuais; outros serão certeiros e contundentes como Maupassant; alguns, ainda, adotarão a leveza e a inconclusão de Tchekhov. A contística de Machado não se prende a uma única tendência, mas "Missa do galo" filia-se claramente à linha tchekhoviana. Mas, explique-se: o termo é tchekhoviana por contingências políticas, econômicas e idiomáticas que, embora não venham ao caso, existem e são irrefutáveis. Pois, assim como Poe, Tchekhov e Maupassant, Machado é inventor: seu texto curto situa-se no mesmo nível das referências estrangeiras aqui citadas. No entanto, "invenção", no que concerne à literatura, é tema por demais espinhoso para que seja tratado nesse breve texto. Fique-se, portanto, com uma variante da afirmação feita: assim como Poe, do mesmo modo que Tchekhov e tal qual Maupassant, Machado é bom.

Uma análise da qualidade estética do conto deve iniciar-se, nesse caso, por considerações estilísticas. "Missa do galo" é prosa clara, demarcada aqui e ali por um coloquialismo de época que, à nossa leitura atual, soa humorística, de um humor leve e agradável, sobretudo nos diálogos evocados pelo narrador:

"- Não! qual! Acordei por acordar."

ou

"- Que velha o quê, D. Conceição?"

Não há obscuridade no estilo de Machado. Sabe-se perfeitamente aquilo que o narrador escreve: não resta dúvida sobre a situação, sobre aquilo que é dito e aquilo que é feito. No entanto, ao lado de toda essa simplicidade e dessa clareza, crescem as dúvidas acerca do que não é dito e do que não é feito — o conto se funda naquilo que é latente ou possível. Daí a profusão de interpretações: se Machado não determina, o leitor está livre para fazer suas próprias associações e desvendar o motivo que leva o narrador, após tantos anos, a lembrar-se, ainda com espanto e curiosidade, do acontecimento daquela noite de natal. O fato de ser um conto feito de memória, aliás, também é importante: com tantos anos passados, há que se desconfiar das impressões e das reminiscências de quem narra — sobretudo se considerarmos, como o próprio Nogueira faz questão de anotar, que muito daquilo fica à conta dos seus dezessete anos.

À suposta banalidade da situação e das conversas entabuladas durante o conto, chegam também certo panorama e certa ambientação que não se restringem à sala onde conversam Conceição e o nosso narrador: recorde-se, por ora, do marido infiel e do iminente retorno de Nogueira à roça. Os personagens não estão suspensos e, mesmo entre essas duas figuras centrais, que se encontram num momento de tanta intimidade e solidão, a condição anterior se impõe. Tome-se o seguinte exemplo: o epíteto de "santa", dado à Conceição, parece vez ou outra nublar as possibilidades e obliterar a compreensão plena do que poderia ocorrer naquela noite.

É perceptível, portanto, que a condição "fotográfica" do conto, narrativa localizada, não é inteiramente fechada: a todo momento, por diversas frestas, sejam elas sociais, psicológicas, religiosas ou mais outras tantas, o conto se reveste de sentidos e possibilidades novos e insuspeitos.

Mais do que da arguta percepção social ou da investigação fina que faz da mente e do comportamento humanos, o mérito de Machado é o do artífice que, por meio de um trabalho estético invejável (conciliando obscuridade temática e nitidez estilística), dá ao leitor uma chance rara: o privilégio de participar ativamente da fruição intelectual de sua obra.