quarta-feira, 29 de abril de 2009

Linha 20

Pensei num post de três parágrafos, mas fui me estendendo e terminei escrevendo esse breve ensaio.

A crítica de Octavio Paz é cheia de riscos. Segundo Sebastião Uchoa Leite, é crítica "de freqüente indagação do ato poético e do mundo em que está inserido" — e, embora seja difícil discordar dessa definição, é curioso perceber como os seus ensaios se desenvolvem, na verdade, por meio de afirmações constantes: uma profusão de sentenças curtas que, a princípio, denunciariam um questionável nível de certeza. As afirmações cortantes de Paz, no entanto, têm seu prosaísmo cercado e corroído por um posterior desenvolvimento que arrola significações e exemplos que, mais do que explicativos, são imagéticos, verdadeiramente poéticos. Talvez por isso sua prosa não se ofereça tanto ao debate e aos desdobramentos em textos de outros analistas. É Paz quem escreve "O sentido da imagem, pelo contrário, é a própria imagem: não se pode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que quer dizer." Assim funciona também a sua crítica: lemos "A imagem" ou "A consagração do instante" e nos sentimos desarmados como desarmados ficamos diante de um bom poema.

Seu texto, portanto, não é exatamente didático ou propositivo, mas esclarecedor. Ainda assim, o contato com a prosa crítica de Paz, aqui considerando um leitor sensível, não parecerá uma marcha da qual não se pode participar ativamente, restando a desagradável opção de ser empurrado ou, em casos extremos, esmagado — ao contrário: a leitura será, como a própria crítica, uma "freqüente indagação" (seja do ato poético, crítico ou filosófico do autor) da qual se poderá aproveitar, no mínimo, a experiência do criador, do erudito e do leitor atento de poesia. A principal busca de Octavio Paz é por uma unificação que não simplifique (aproximando-se, assim, do distante Auerbach). Essa atitude é nítida, por exemplo, na sua percepção da proximidade entre o romance moderno e a poesia, do percurso do verso inglês moderno em busca da latinização ou da unidade literária existente entre os países hispânicos.

Sebastião Uchoa Leite fala da "busca de relações analógicas entre os signos" e completa afirmando que "Por isso procede por superposições e paralelismos, parecendo perder-se num labirinto verbal". Trata-se de uma análise exemplar — à qual, no momento, eu pouco poderia acrescentar. Desvio-me, portanto, para um aspecto específico dessa sanha unificadora e analógica do pensamento e da poética de Paz — aspecto que, num determinado momento, modificou e ampliou profundamente a minha noção e a minha apreensão do fazer poético, desencadeando uma reformulação tanto crítica quanto artística que, pouco a pouco, gera tanto a crítica quanto a arte que me proponho a fazer.

Por uma decisão a princípio um tanto arbitrária, mas que depois percebi ser bastante plausível, resolvi que toda leitura de obra crítica que eu fizesse teria, em paralelo, a companhia da leitura poética. Octavio Paz, no caso, foi acompanhado pela experiência única de percorrer a Poesia Completa e Prosa de Murilo Mendes. A rigor, é possível alongar-se a respeito de diversas afinidades entre o pensamento de Paz e a poesia de Murilo. Uma das relações mais frutíferas se refere a uma possível união entre palavra poética e ação. No seu ensaio "Murilo Mendes ou a poética do visionário", José Guilherme Merquior toca brevemente no assunto ao citar o poema "A marcha da história" e, mais especificamente, o verso "E onde se fundem verbo e ação". Tanto Merquior quanto Paz indicam, como catalisador dessa união, o surrealismo, percebido enquanto movimento herdeiro e continuador de uma postura do romantismo. Discordam apenas quanto à vertente romântica original: para Merquior, a poética de ação dos surrealistas é fundada pelo romantismo francês de Hugo; Paz, ao contrário, acredita que o princípio de Breton e seus seguidores nasce "do projeto de Schlegel e seus amigos: tornar poética a vida e a sociedade". Ao leitor brasileiro, a visão de Merquior soará perfeitamente aceitável. Fruto, sobretudo, da experiência romântica nacional, na qual os poetas da chamada terceira geração são denominados hugoanos e definidos como autores engajados e ativos enquanto que os seus antecessores imediatos, os chamados ultra-românticos, costumam ser percebidos como poetas alienados em suas subjetividades e emuladores das tradições germânica e saxã.

No entanto, pretendo ater-me a um outro aspecto de ligação entre Murilo e Paz. No já referido "A imagem", o mexicano escreve que "toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si" para concluir, algumas páginas depois, que "[...] o poema não só proclama a coexistência dinâmica e necessária de seus contrários como a sua final identidade". Trata-se, afinal, daquilo que Uchoa Leite já explicou.

É natural que Paz também tenha a sua definição particular de imagem — que está distante da idéia que os leitores imaturos costumam possuir (equívoco perfeitamente compreensível, por sinal) e que, por isso, precisa ser considerada. Imagem não é (ou melhor: não é apenas) a reprodução verbal de uma realidade pictórica, mas a criação verbal que concerne à poesia. Nas suas palavras, "toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que unidas compõem um poema". Assim que, no famoso "The red wheelbarrow", William Carlos Williams não produz imagens apenas nas últimas três estrofes:

so much depends
upon

também é imagem.

Pode-se afirmar que não há originalidade no que Paz afirma. Que se trata, basicamente, da idéia baudelaireana das correspondências. Que a diluição de traços na pintura moderna e, num outro sentido, a decomposição de formas complexas em direção às formas geométricas mais simples trabalham nesse mesmo esquema. É possível, a partir dessa acusação, iniciar um debate interminável acerca de "originalidade" — que iria desde a etimologia do termo (que, se considerada, indicaria uma originalidade inegável na idéia de Paz) até a visão pertencente ao senso-comum de originalidade como inovação. Por um lado, recebe o apoio de Hegel (que chegou a afirmar que "Não possuir maneira própria foi sempre a única grande maneira e foi porque assim procederam que Homero, Sófocles, Rafael, Shakespeare podem ser considerados originais"); por outro, a justificativa num sem número de desentendimentos gerados pela assimilação (ou, em certos casos, mesmo pela proposta) equivocada dos movimentos de vanguarda. De qualquer modo, as leituras de Paz não parecem se interessar pela inovação — pois é ele mesmo quem traça a história daquilo que desenvolve em termos próprios, amparando-se no seu sólido conhecimento de filosofia e poesia (tanto ocidentais quanto orientais). Motivo suficiente, aliás, para pensar a sua relação com a tradição, a ruptura e a tradição da ruptura, temas aos quais dedicou tanto tempo e atenção.


Toda essa rede de signos análogos, feita ao longo de "A imagem", mostrou-se real e acertada durante a leitura paralela de Murilo Mendes — particularmente no "Poema da tarde", do ótimo Poesia Liberdade:

A tarde move-se entre os galhos de minhas mãos.
Uma estrela aparece no fim deste meu sangue,
Minha nuca recebeu o hálito fino de uma rosa branca.
Todas as formas servem-se mutuamente,
Umas em pé, outras se ajoelhando, outras sentadas,
Regando o coração e a cabeça do homem:

E dentre os primeiros véus surge Maria da Saudade
Que, sem querer, canta.

A ligação é clara e inegável.

(Mas, antes, um aparte: é impressionante a sonoridade de "Poema da tarde" e o modo como Murilo se aproveita das consonâncias. Através de mãos/sangue/branca/mutuamente e de sentada/homem/canta, acentuadas ainda pela recorrência dos pronomes possessivos da primeira pessoa nos três primeiros versos, marca a utilização das consoantes nasais. Ao mesmo tempo, aproxima ainda os tt e dd de mutuamente/sentadas e Saudade/canta. São, portanto, dois caminhos sonoros que, em diversos momentos, se confundem.)

Murilo trabalha explicitamente a relação entre "as formas": os galhos das mãos, a estrela no fim do sangue, o hálito da rosa — cada uma das imagens reflete "a coexistência dinâmica", explícita no verso "Todas as formas servem-se mutuamente". Algo idêntico pode ser lido no já citado "A marcha da história":

Onde o homem e a mulher são um,
Onde espadas e granadas
Transformaram-se em charruas,
E onde se fundem verbo e ação.

É compreensível, sobretudo no caso de Murilo, que tais procedimentos se liguem ao surrealismo, movimento geralmente situado no limite dessas relações. Leia-se, a título de exemplo, um verso magnífico de "Le miroir d'un moment", de Eluard:

L'oiseau s'est confondu avec le vent,

É necessário esclarecer, no entanto, que não se trata de uma prática essencialmente surrealista. Não está ligada a uma corrente literária ou a uma poética específicas — segundo Paz, é próprio da poesia, de toda poesia, encontrar relações semelhante: "Nossa poesia é consciência da separação e tentativa de reunir o que foi separado". Essa, por exemplo, é uma das obsessões de alguns dos melhores poetas italianos da modernidade. Cesare Pavese, na última fase de sua produção, compôs uma série de poemas no qual observa essa união elementar:

Anche tu sei collina
e sentiero di sassi
e gioco nei canneti,
e conosci la vigna
che di notte tace.
Tu non dici parole.


A visão de Paz (unificadora, como sempre) não se constrói no vazio. Ainda que se ignorasse todas as referências que traz, acredito que a natureza poética de coexistência, correspondência e analogia se revela e se afirma num nível ainda mais elementar, que está na própria definição da poesia. Trata-se, obviamente, das relações entre som e sentido e entre conteúdo e forma. Não a investigação semântica da relação entre formas naturais, mas o trabalho formal e estético efetuado ainda na própria linguagem. No ensaio, Paz não chega a investigar profundamente esse aspecto — o que não deixa de ser surpreendente, visto o nível avançado que a análise som-sentido já havia alcançado (vide Jakobson) e o eterno e polêmico debate acerca do conteúdo-forma.

Quanto ao primeiro nível citado, o "Poema da Tarde" é exemplar — e o próprio Paz insinua outra possibilidade ao afirmar que o ritmo do poema é o sentido do poema; é o mesmo princípio de Tao, que o autor analisa no seu ensaio: isto é aquilo. Quanto ao segundo, é preciso dizer que o ensaísta mexicano indica um caminho possível para discuti-lo ao refletir sobre a impossibilidade da verdadeira imagem desfazer-se em arbitrariedade e gratuidade de correlações. Considere-se, no caso, que a arbitrariedade semântica implicaria, necessariamente, na impropriedade da forma.

A justa apreciação da teoria (de correspondências, coexistência, afinidades ou o que for), ao contrário, indica a condensação da forma. Não se confunda, porém, condensação e pobreza — muito embora, no limite (aceito por Paz), esse caminho conduza ao silêncio. A título de exemplo, tome-se o seguinte soneto de Kilkerry, intitulado "Ritmo eterno":

Abro as asas da Vida à Vida que há lá fora.
Olha... Um sorriso da alma! — Um sorriso da aurora!
E Deus — ou Bem! ou Mal — é Deus cantando em mim,
Que Deus és tu, sou eu — a Natureza assim.

Árvore! boa ou má, os frutos que darás
Sinto-os sabendo em nós, em mim, árvore, estás.
E o Sol, de cujo olhar meu pensamento inundo,
Casa multiplicando as asas deste mundo...

Oh, braços para a Vida! Oh, vida para amar!
Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar...
Alvor, turquesa, ondula a matéria... É veludo,

É minh'alma, é teu seio, e um firmamento mudo.
Mas, aos ritmos da Terra, és um ritmo do Amor?
Homem! ouve a teus pés a Natureza em flor!

Em que pese a sua perfeita ligação semântica às idéias de Octavio Paz, o poema, no qual Augusto de Campos vê a ênfase do "seu acento panteísta" (notável em outras composições suas como "O muro" e a obra-prima "É o silêncio..."), interessa ainda por sua estrutura formal que também se ajusta à teoria.

O poeta baiano, na maioria dos versos, em todas as estrofes, adota um procedimento de reiteração bastante sutil. Perceba-se, já no primeiro quarteto, as repetições de "Vida" e "sorriso" nos dois primeiros versos e de "Deus" nos dois últimos; o mesmo princípio continua com "árvore", na segunda estrofe, "vida" e "mar" (no belíssimo "Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar...") no primeiro terceto e "ritmo" na estrofe final. É notável, ademais, que mesmo nos versos onde essa repetição não é tão explícita, o processo de reiteração se dê de uma outra forma, sobretudo sonora: é o caso de má/darás e casa/asa no segundo quarteto (asa repete-se ainda ao início e ao fim dos quartetos), as assonâncias eu uu no verso final do primeiro terceto e no verso inicial do segundo terceto; ao fim, outra sutil assonância, dessa vez com oo fechados (homem/ouve/flor).

Esse procedimento, a rigor, serve para acentuar, de forma bastante incisiva, a coexistência daquilo que as palavras nomeiam. Não por acaso, as palavras que se repetem são indicativas, sobretudo, de elementos da natureza: mar, árvore, etc. Trata-se de uma realização justa e extrema do princípio taoísta: "Isto é aquilo" — que é ainda mais simplificado e condensado por Kilkerry: isto é isto; o poeta se dispõe a reunir aquilo que, em verdade, já é parte de uma mesma matéria, apenas percebido de formas separadas: o sorriso da alma é o sorriso da aurora, a Vida particular é também a vida que há lá fora, todas as ilusões, do homem ou do mar, são as mesmas. Tudo, enfim, num compasso semelhante, no ritmo igual e eterno indicado no título. Acredito que o poema dê a medida de que a aplicação do sistema indicado por Paz leva, ao contrário do que se imaginaria, à correção formal.

A crítica de Octavio Paz, portanto, fornece ao leitor um princípio de leitura e análise — que, naturalmente, ninguém acreditará ser o único. Impossível, no entanto, é descartá-lo como fruto de abstrações desinteressadas: seu método nasce de uma nítida experiência constante e profunda com a arte poética, seja através da prática ou da análise. E é essa, afinal, a teoria que importa conhecer.