segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Linha 1


Lembro-me que, enquanto encerrava a leitura de uma tradução de Madame Bovary, inspirado na histórica declaração de Flaubert ("Madame Bovary c'est moi") e em outras boutades que à época ocupavam a minha mente, resolvi também eu criar a minha sentença eterna. Pois foi assim que, ao final da leitura, fechei o livro e falei às paredes: "Eu nunca li Madame Bovary". Não foi eterna, naturalmente, mas refletia o segundo ou terceiro assombro da minha vida de leitor: eu, que me nutria basicamente de literatura estrangeira traduzida, desconfiei de que, em realidade, nenhuma dessas leituras tinham acontecido de fato.

Desse impasse, iniciei meus estudos irregulares de línguas estrangeiras. Logo em seguida, munido da arrogância típica do aprendiz dos vernáculos alheios, considerei inútil e impossível a tradução — e foi preciso muito José Paulo Paes, muito Augusto de Campos e muito Paulo Rónai para que eu me convencesse do contrário. Hoje em dia, cuido um respeito pela atividade tradutória — sobretudo por conta da minha incapacidade de praticá-la. Exercício de paciência e de inteligência, a tradução é parte essencial da cultura poética de uma língua — do mesmo modo que a crítica e a criação.

Reconhecer a sua importância, no entanto, não pode ser desculpa para louvá-la de forma exagerada ou equiparar a sua leitura à leitura do original. Poucas coisas me marcaram tanto quanto ler "The Love Song of J. Alfred Prufrock" em inglês — coisa que fiz muito tempo depois de ter conhecido a tradução de Ivan Junqueira. A certa altura, ficou-me a impressão de que não conhecia aquele poema — impressão absolutamente correta: a opção de Junqueira (que, afinal, é válida) tira do poema toda a sua musicalidade e fluência.

As minhas malogradas experiências na tarefa de traduzir também me serviram para compreender o valor dessa atividade — proporcional à sua dificuldade. E é por isso que apresento, nesse post, tentativas mais ou menos mal-sucedidas de verter para o português poemas escritos originalmente em espanhol, inglês e francês e tento, em comentários, apontar equívocos, possibilidades e impossibilidades. Não se trata, de forma alguma, de um exercício de modéstia pública (repito: não sou tradutor, nunca o serei), mas de contato com formas e tradições alheias — algo que sempre nos enriquece.

====

Tradução do poema "Vaso".


A porta
aberta para a noite,
e o pássaro sonâmbulo nos bosques
bebe
estas auroras rubras.

Os deuses brancos de tua boca
afogando-se no copo.

Aquele mar é tão profundo
que se agitavam os barcos.
Sigamos.

Meus olhos entre a fumaça.
E nas margens do mundo,
tua mão
estendida aos naufrágios.

Agora ninguém canta.

O planeta vazio que dormia na taça
está em minha garganta.
Pequeno rouxinol.


Esse poema do chileno Vicente Huidobro (que você pode ler, no original e com a disposição correta dos versos, aqui) atesta uma obviedade: não se perde tanto ao verter do espanhol para o português. Essa obviedade, contudo, costuma ser potencializada, desenvolvendo certas inverdades.

A primeira é a de que não existe perda alguma: considere-se, por exemplo, os dois primeiros versos deste poema. No original, lê-se:

La puerta
abierta hacia la noche,

A sequência de ditongos (puerta, abierta, hacia) é absolutamente impossível em português, assim como a inexistência de um vocábulo específico que traduza perfeitamente a palavra "hacia" no contexto específico deste verso. É verdade que um tradutor experiente poderia encontrar uma saída muito mais eficaz do que esse ordinário "para", mas não chegaria à correspondência absoluta.

Do verso "estas auroras rubras" resta-me uma dúvida. No original o poeta escreve "estas auroras rojas" e, a princípio, existe a perda da aliteração do r vibrante castelhano, mas a opção pelo termo "rubras", a seu modo (deslocando a aliteração para a sílaba seguinte) a conservaria.

Uma outra inverdade, por fim, é a de que a tradução da poesia em espanhol é desnecessária. Aqui, no entanto, a discussão sai do campo poético e artístico para chafurdar na ignorância pura e simples, motivo pelo qual que não me alongarei nessa questão.

====

Tradução do poema "The Warning"


Por amor-eu poria
uma vela atrás dos olhos
após partir
a sua cabeça.
O amor morre em nós
se esquecemos
as virtudes de um amuleto
e rápida surpresa.


"The Warning", de Robert Creeley, já foi devidamente traduzido por Rodrigo García Lopes (responsável por ótimas versões lusófonas de Walt Whitman e Sylvia Plath) e você pode lê-lo aqui. A minha tradução, como se percebe, já começa questionável: ninguém fala ou escreve "poria" — muito menos um poeta como Robert Creeley.

Procurando conservar a localização exata das rimas, inverti a ordem do segundo, do terceiro e do quarto versos — o que me parece, ainda, uma boa idéia, embora má realizada. Fiquei indeciso se considerava "o amor morre" uma solução de mau gosto ou, pelo menos, aceitável — mas, no caso específico, não me parece uma boa saída. Por fim, gostaria de apontar um elemento mínimo que demonstra a autonomia do verdadeiro tradutor: no verso

the virtues of an amulet

eu traduzo "as virtudes de um amuleto", algo literal, enquanto Rodrigo García Lopes opta pela definição do artigo, que transforma o verso em "as virtudes do amuleto", algo muito mais condizente com o ritmo original, embora não exatamente fiel.

====

Tradução de "Familiale"


A mãe faz o tricô
O filho faz a guerra
Mas isso é natural pensa ela
E o pai o que o pai espera?
Ele trabalha
Sua mulher faz tricô
Seu filho a guerra
Ele trabalha
Isso é tudo o que ele espera
E o filho e o filho
O que pensa o filho?
Não pensa absolutamente nada o filho
O filho sua mãe faz tricô seu pai trabalha ele batalha
Quando acabar a guerra
Trabalhará com seu pai espera
Continua a guerra a mãe tricotando
O pai continua vai negociando
O filho está morto já não seguirá
Pai e mãe vão ao cemitério
Isso é natural pensam os velhos
A vida continua a vida com tricô e guerra e trabalho
O trabalho a guerra o tricô a guerra
O comércio o comércio o comércio
A vida com o cemitério

Trata-se de um pequeno poema do menosprezado (não se enganem: por mim também) Jacques Prévert. Traduzi-o há uns quatro anos e, embora tenha continuado estudando o francês, jamais procurei aperfeiçoá-lo — por motivos óbvios de desinteresse pela obra do poeta e por minhas próprias traduções. A despeito de tudo isso, é um poema perfeito para ilustrar as dificuldades do tradutor.

Há uma versão feita por Silviano Santiago, que tampouco me agrada e que pode ser lida aqui. Nesse caso, Silviano aposta numa tradução fiel, mais literal, enquanto eu procuro conservar rimas e sons, por vezes deixando o poema com tom ainda mais coloquial. Acho engraçado como "Ils trouvent ça naturel le père et la mère" se transforma em "Isso é natural pensam os velhos".

No mais, ainda que eu tenha buscado a equivalência dos sons, ela não existe: no original, todas as palavras mais recorrentes insistem no som "aire"/"ere", enquanto na tradução há mais variação — o que significa que a unidade sonora original que compõe o poema inteiro foi dividida em pequenas células na versão brasileira.