sábado, 28 de fevereiro de 2009

Linha 7


Gosto de ter o Cancioneiro da Ajuda em mãos. As centenas de cantigas medievais disponíveis no volume permitem uma leitura prazerosa e prolongada, sobretudo pelas eventuais dificuldades de compreender o vocabulário ou certas particularidades da estrutura do galego-português (o mais engraçado, nesse caso, é que nós, falantes de português, podemos tirar dúvidas através das paráfrases alemãs na edição crítica organizada pela sra. Carolina Michaëlis de Vasconcelos).

Ainda assim, lamento só ter tido acesso a esse Cancioneiro — que é, notadamente, o menos completo. A falta das cantigas de escárnio e, sobretudo, das cantigas de amigo são defeitos quase imperdoáveis — visto que era aí que vicejava a maior originalidade dos nossos trovadores. Ainda assim estão lá, por exemplo, canções belíssimas como a "Cantiga da garvaya":

No mundo non me sey parelha
mentre me for como me vay
ca ja moyro por vos - e ay
mnha senhor, branca e vermelha,
queredes que vus retraya
quando vus eu vi en saya.
Mao dia me levãtey,
que vus enton non vi fea

O trovadorismo galego-português, porém, só parece ganhar a devida autonomia artística em relação à arte dos provençais nas cantigas de amigo. A superação do eu empírico e a voz dada à figura feminina produziram os poemas mais belos do nosso lirismo medieval. As duas cantigas de amigo mais conhecidas e debatidas, acredito, são a "Baylia das avelaneyras" e a "Flores do verde pino" — que por acaso, são também as minhas favoritas. Por motivos distintos, as duas se destacam e se tornam representativas da poesia que houve e da poesia que haveria. E foi "Baylia das avelaneyras" que me tornou um leitor do trovadorismo galego-português, fazendo-me compreender o seu valor artístico, mais do que a importância e a obrigação histórica de conhecê-lo superficialmente.

Baylemos nos ja todas tres, ay amigas,
so aquestas avelaneyras frolidas
e quen for velida, como nos, velidas,
se amig' amar
so aquestas avelaneyras frolidas
verraa baylar.

Baylemos nos ja todas tres, ay irmanas,
so aqueste ramo d' estas avelanas
e quen for louçana, como nos, louçanas
se amig' amar
so aqueste ramo d' estas avelanas
verraa baylar.

Por Deus, ay amigas, mentr' al nõ fazemos,
so aqueste ramo frolido baylemos
e quen ben parecer, como vus parecemos,
se amig' amar
so aqueste ramo so 'lo que baylemos
verraa baylar.

Esta cantiga, atribuída a Ayras Nunes de Sant'Iago, é surpreendente em sua simetria e em seu paralelismo — musicalmente, devia funcionar à perfeição. Sua estrutura rítmica é facilmente delineável. A sua fluência, parece-me, parte do fato de cada estrofe ser uma única sentença perfeitamente metrificada e acentuada — algo para o que contribui, ademais, a utilização magistral das vogais.

Dificilmente me esqueço de Roger Fry escrevendo, no ensaio Arte e Vida, que

"Quando contemplamos as obras de arte do passado, costumamos considerá-las não só como objetos de deleite estético, mas também como sedimentos sucessivos da imaginação humana. Essa concepção das obras artísticas como história cristalizada explica, na verdade, muito do interesse que a arte antiga desperta naqueles que possuem pouco senso estético e nada encontram de atraente nas obras de seus contemporâneos, nas quais a motivação histórica está ausente, pois diante delas encontram-se face a face apenas com valores estéticos."

Algo absolutamente verdadeiro. No entanto, assim como é importante enfrentar a produção contemporânea e buscar os seus valores, parece-me absolutamente imprescindível entrar em contato com as "obras artísticas como história cristalizada" e, além de compreender aquilo que, afinal, as tornou dignas de interesse tanto tempo após a sua produção, desvendar e desenvolver uma sensibilidade adequada às suas qualidades particulares. É uma questão essencial de originalidade.

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Há um site precioso dedicado ao cancioneiro do trovador Martin Codax. É possível lê-lo e ouvi-lo aqui.