segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Linha 3


Trecho do ensaio "e.e. cummings: ética, estética, etcetera":

Essa espécie de chamado à vida espontânea pode ser notada na maior parte de sua obra: está presente no poema "since feeling is first" (no qual a primavera reaparece) e, sobretudo, no enigmático "being(just a little)", ao longo do qual um casal, "too tired from kissing/ for thinking or anything/ except dreaming", sente-se integrado ou, mais que isso, tragado pela natureza (aqui representada no pôr-do-sol, no oceano, na terra, nas ondas e nas rosas). Estando em suspensão, "between the ocean and the world", cada um deles profere uma obscura e bela sentença. O homem afirma:

(...) of these five waves the wave

which waits is more great

Ela, então, diz:

of these nine roses,you
reply seriously,she who chiefly hides
herself is deepest

A despeito da multiplicidade de significações, que deve ser reconhecida e respeitada, as imagens citadas podem ser encaradas, de certa forma, como indicações ou convites às sensações, prazeres e conhecimentos que desafiam a obviedade — símbolo mesmo, afinal, da própria poesia de cummings, espécie de rosa escondida e profunda diante da qual o leitor deve perseverar e esperar, visto que não se trata de uma obra de fácil assimilação, muito embora esteja longe de ser uma produção estéril ou sem interesses além da originalidade estética.

Perceba-se, aqui, uma das principais características notadas por Hugo Friedrich na estrutura da lírica moderna: “A poesia (e a arte) moderna não é de se admirar nem de se rejeitar a priori. Como um fenômeno constante do presente, ela tem o direito de ser apreciada pelo reconhecimento”. As flores, utilizadas por cummings no seu poema, aparecem também nas produções de outros poetas do período associadas a essa espécie de obscuridade da poesia moderna. No caso específico da poesia brasileira, podem ser citados os versos de Ferreira Gullar, do poema “P.M.S.L.”, a respeito da difícil apreciação das orquídeas (sempre furtivas, insidiosas em suas verdades):

Na orquídea busca a orquídea
que não é apenas o fátuo
cintilar das pétalas: busca a móvel
orquídea: ela caminha em si, é
contínuo negar-se no seu fogo, seu
arder é deslizar

Símbolo e obscuridade, portanto, parecem se desenvolver em conjunto. No ensaio "Quatro tipos de obscuridade", do crítico italiano Alfonso Berardinelli, lê-se que “Simbolismo e hermetismo nascem da emigração dos poetas para as terras do mistério”. Em muitos casos, sobretudo nos provocadores movimentos da vanguarda européia (e nas experimentações das neo-vanguardas, já após os anos 1950), essa obscuridade resultou numa obra fadada à não-comunicação ou, ainda, à reflexão puramente lingüística — o que não passa de uma exacerbação ou desvirtuamento do modernismo, agora transformado em jargão e clichê, poesia de linguagem engessada e, mais que indecifrável, oca de significados.

E o já citado Berardinelli define tal situação: “A linguagem não é veículo, mas objeto obscuro, inquietante, misterioso e, finalmente, ornamental: decoração do habitat cultural pós-moderno”. Pois é aqui, portanto, que essa produção se distancia da poética de cummings: sua obscuridade e sua obra de “reconhecimento” (mais do que de “apreciação”) utilizam-se do símbolo e da imagética cifrada para instigar e multiplicar a significação — longe de ser mero ornamento, a linguagem não é pensada e questionada por meio de conceitos, mas da sua própria forma no poema. A flor oculta de cummings (assim como a de Paul Celan e a de Ferreira Gullar) não se esconde por inépcia ou abandono: sua função é acenar para a necessidade de convivência com a obra, povoar o mistério com possibilidades — que, como se percebe, são inúmeras.