segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Linha 2


Ao fim da segunda seção de A verdade da Poesia, intitulada justamente "A verdade da poesia", Michael Hamburguer surpreende com a seguinte observação:

"Um grau extraordinário de alienação quanto à linguagem, mesmo como um meio de comunicação simples, tornou-se cada vez mais difundido nas sociedades 'avançadas', como se pode ver nas entrevistas na tevê com jovens incapazes de articular uma oração simples e curta sem apoiar-se em expressões como 'tipo' e 'entende?'. As causas dessa falta de articulação podem muito bem estar estritamente ligadas ao "ceticismo da palavra" que fundamenta muitas das práticas dos poetas modernos (e que Hofmannsthal atribuiu a uma cisão básica entre as convenções da linguagem e a realidade das coisas particulares)."

Anteriormente, fala-se do que se convencionou a chamar "função social da poesia". Ezra Pound, citado por Hamburguer, afirma que "Quando essa obra se corrompe — com isso não quero dizer quando eles expressam pensamentos indecorosos, mas quando o próprio meio, a própria essência de sua obra, a aplicação da palavra à coisa, se corrompem, i.e., se tornam sentimentais e inexatos, excessivos ou inflados —, toda maquinaria do pensamento social e individual e da ordem se perdem". A rigor, percebe-se que Hamburguer e Pound observam o mesmo fenômeno de formas distintas: o primeiro concebe uma relação paralela entre a poesia e a sociedade; o segundo, a seu modo, condiciona a sociedade à poesia.

A concepção do poeta norte-americano pode parecer, a primeira vista, uma tolice romântica — e essa primeira impressão é o equívoco fundamental da crítica e da poesia contemporânea: o poeta educador é, em essência, o poeta grego, clássico. O pensamento binário que caracteriza a crítica e a história literária brasileiras, ao que parece, não permite a percepção e a aceitação de tendências contraditórias dentro de um único contexto — e o exemplo maior, nesse caso, é o ensino de poesia dominante no país, esse método grosseiro que impõe a escola literária ao poeta e ao leitor. O classicismo, portanto, é ascético, cerebral e, no seu limite, constrói o parnasiano, o artista puro; o romantismo, passional e descerebrado, cresce arraigado àquilo que é visceral. Para desmontar tais clichês (que são, diga-se, inversões criminosas), basta recordar-se de Borges indicando a índole clássica de Poe e a índole romântica dos gregos: o primeiro privilegia o cálculo, os segundos inspiram-se nas Musas. Trabalhar com conceitos errados de classicismo e romantismo é errar todo o resto.

A relação de Pound com as tradições grega e românica talvez esclareça o seu posicionamento — e seu questionável desdém pela tradição germânica, tão identificada com o romantismo. Em Paidéia, Jaeger afirma que "A concepção do poeta como educador do seu povo — no sentido mais amplo e profundo da palavra — foi familiar aos Gregos desde a sua origem e manteve sempre sua importância" e "A não-separação entre a estética e a ética é característica do pensamento grego primitivo. (...) Para Platão, ainda, a limitação do conteúdo de verdade da poesia homérica acarreta imediatamente uma diminuição no seu valor." A poesia de Pound, nesse sentido, desenvolve-se em sua sanha histórica e educativa — desde "Hugh Selwyn Mauberly" até seus "Cantos", sua trajetória contradiz as famigeradas características essenciais da poesia moderna (entre elas, o suposto desprezo pela realidade e pela verdade), engessadas por estudos como os de Hugo Friedrich.

Pouco importa se o projeto de Pound foi bem-sucedido ou se revelou um fracasso absoluto: sua visão de poesia e sociedade não foi apenas sua (em menor medida, também está presente em William Carlos William ou, no Brasil, em certas facetas de Murilo Mendes e Drummond). Hugo Friedrich, em suas generalizações, simplifica e, portanto, distorce uma poesia (a moderna) que não resiste diante de diminuições. Michael Hamburguer, muito mais abrangente e disposto a reconhecer cisões significativas numa teoria do poema moderno, preserva essa variedade que, ao fim, é a essência mesma das produções modernistas. Pound, com sua obra infindável, permite-se demonstrar, escrever e viver suas próprias contradições — pois é ao poeta, mais que à crítica, que cabe definir o seu poema.