segunda-feira, 6 de abril de 2009

Linha 14


Gosto de acreditar em Ortega y Gasset quando ele afirma que só os pintores conhecem pintura. E devo dizer que não sou pintor: minhas investidas plásticas estão longe dessa categoria chamada arte. A afirmação de Ortega, no entanto, não condena a pintura aos pintores: basta perceber que admirar alguma coisa não implica necessariamente em conhecê-la. Um extremista diria, ainda, que só é possível admirar o desconhecido — mas isso já não é idéia que me interesse; fico contente em me manter distante dessas espécies e subespécies de ditaduras que combatem pelo mesmo direito de subjugar e simplificar.

Toda a grande arte que conheço veio-me através de reproduções técnicas — e que Benjamin nos perdoe a todos. Graças a esse tipo de subterfúgio, tenho aqui um Van Gogh pendurado no meu quarto. Graças a esse tipo de subterfúgio, procuro reproduções pela internet e me desespero com as enormes diferenças de cor que um Vermeer apresenta de uma fotografia para outra — são as dificuldades necessárias. Ainda assim, acredito que construí um gosto relativamente sólido, consolidando até mesmo preferências que, em certos graus, irão interferir nas minhas visões e no meu discurso. Por exemplo: preferência pelo nu — do clássico até Modigliani e o hediondo Schiele; preferência pelas cidades e pelas árvores do próprio Schiele; atração sombria pelos desenhos de Van Gogh, pelos traços de Monticelli e pelos retratos de Singer Sargent; um gosto pouco cultivado por Miró e pelos rabiscos de Matisse. E, afinal, um respeito tremendo pela arte que me é mais incompreensível: Velázquez, Goya, Renoir, Caravaggio, El Greco.

A rigor, o parágrafo acima é apenas um itinerário do meu gosto pessoal. Algo também feito (com muito mais propriedade, naturalmente) por Ortega y Gasset no ensaio a que me referi anteriormente ("Adão no paraíso") — ao lado da humildade que demonstra ao reconhecer sua posição de não-pintor, está sua indicação de que não se trata de um orangotango, de que possui conceitos e preconceitos sedimentados com os quais pode lidar de maneira inteligente e proveitosa. Munido disso, aprecia a arte. Munido disso, compõe o fenomenal ensaio "Sobre o ponto de vista nas artes" — no qual traça um histórico particular e instrutivo da pintura no ocidente. Um desses raros textos obrigatórios.

"O tema ideal da pintura é, em conseqüência, o homem na natureza. Não este homem histórico, não aquele outro: o homem, o problema do homem como habitante do planeta. Reduzir esse problema a um tipo, o nacional, é rebaixá-lo à proporções de uma anedota" (de "Adão no Paraíso")


"El Greco deu a última pincelada na tela, e desde então uma das coisas mais reais do mundo, uma das coisas mais coisa, é o Homem com a mão no peito" (de "Adão no Paraíso")