quinta-feira, 23 de abril de 2009

Linha 19


A certa altura de um dos ensaios de O último leitor, Ricardo Piglia propõe esta definição do personagem-leitor de Borges: "alguém perdido numa biblioteca, alguém que passa de um livro para outro, que lê uma série de livros e não um livro isolado. Um leitor disperso na fluidez e no rastreamento e que tem todos os volumes a sua disposição. Vai atrás de nomes, fontes, alusões, passa de uma citação para outra, de uma referência para outra". Na página seguinte, completa: "A versão contemporânea da pergunta 'o que é um leitor?' se instala nesse lugar. O leitor perante o infinito e a proliferação. Não o leitor que lê um livro, mas o leitor perdido numa rede de signos". Queimar bibliotecas, portanto, é libertar-se. Eu completaria afirmando que uma biblioteca é pouco: incendiar a internet é libertar-se.

O exagero de citações não será gratuito: adiante, lê-se que "Nesse universo saturado de livros, em que tudo está escrito, só é possível reler, ler de outro modo. Por isso, uma das chaves desse leitor inventado por Borges é a liberdade no uso dos textos (...) Uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossíveis." Quem já teve contato com a obra crítica e ensaística de Borges sabe que esse procedimento não é privilégio de seus personagens, sendo assumido também pelo autor. Caso clássico: Kafka reinventando Bartleby.

O ensaio de Piglia, no entanto, mais do que esclarecer certas particularidades da ficção borgeana, provoca reflexões inevitáveis sobre a situação e a formação do leitor contemporâneo. Há alguns posts, fiz anotações sobre o leitor esporádico de poesia — baseado puramente em observações descompromissadas, percebi sua insegurança e exagero ao lidar com a poesia. Dessa vez, no entanto, utilizo a minha própria experiência de leitor — e tudo isso para concluir, afinal, que o leitor contemporâneo é, de fato, o leitor criado por Borges. Não me refiro, nesse caso, somente à situação de estar perdido entre signos, mas sobretudo à construção e à percepção histórica de quem lê.

Assim que a história da literatura é montada ao revés, num movimento curioso: da modernidade à antiguidade. Exemplifico: sempre fui um leitor exageradamente fiel de T.S. Eliot. Entre as minhas preferências, como é fácil imaginar, estava "The Waste Land": lia o poema e lia a respeito do poema. Dele, alguns versos me comoviam mais do que os outros:

Unreal City,
Under the brown fog of a winter dawn,
A crowd flowed over London Bridge, so many,
I had not thought death had undone so many.

Tempos após lê-los e relê-los, deparei com a Comédia — óbvio: deparei com os versos de onde Eliot havia retirado os seus versos.

e dietro le venía sí lunga tratta
di gente, ch'i non averei creduto
che morte tanta n'avesse disfatta
.

O primeiro pensamento que me ocorreu foi o de que Dante citava Eliot. No entanto, mais do que essa impressão absurda e passageira (que, acredito, também tem seu valor — ao menos como anedota), importa que toda a minha leitura da Comédia se deu num compasso determinado por Eliot. É como Kafka e Melville — que, no meu caso, foi idêntico: primeiro Kafka, depois Bartleby.

Leitores se fazem sozinhos. Portanto, não há sentido em acreditar que a inversão cronológica parta de sistema de ensino ou coisa que o valha. A escola não forma leitor algum e, lá dentro, a literatura é ensinada de maneira cronologicamente sensata: a comparação entre as canções do exílio parte de Gonçalves Dias, tudo segue em seu curso óbvio. Descartando a participação do colégio, resta apenas a biblioteca.

E, nas prateleiras imaginárias das quais peguei emprestados meus primeiros livros, as obras modernistas estavam mais à mão. Motivos, diversos: certo desprezo pelo antigo, um deles; meu fascínio pelo novo, outro; e o maior, provavelmente, essa necessidade de identificação imediata do leitor imaturo e a constatação óbvia (e também imatura) de que tal ligação seria mais natural e fácil numa obra escrita no século que, embora se encerrasse, ainda era o meu. Não se trata, afinal, de assumir uma postura conservadora: ao conhecer posteriormente as obras mais antigas, não me enfureci contra as modernas. Acredito, aliás, que postura semelhante denunciaria, ao contrário, uma leitura um tanto arbitrária e tendenciosa dos antigos — tendenciosa na medida em que credita reacionarismo ao que, cronologicamente, antecede ao contemporâneo; na medida em que despreza as relações e as conexões entre os dois pólos — se é que faz algum sentido perceber a história da literatura de forma tão binária e estratificada.

Não sei até que ponto é possível observar essa formação como "defeituosa". Prefiro percebê-la, na verdade, como inevitável. A quantidade de páginas que nos separa dos antigos cresce desenfreadamente (e ler também é questão física, questão de espaço): será cada vez mais natural começar onde, supostamente, se deve encerrar. As páginas não serão seguidas à risca — mas é difícil saber até que ponto isso indica atemporalidade ou apenas outra forma particular de cronologia.

Resta, portanto, assumir e trabalhar a situação de forma a torná-la frutífera e confiável — assim considerado, Borges segue como antecipador ou, no mínimo, disseminador de uma nova forma de conceber a literatura e as suas relações históricas. Um novo leitor formado, faz-se conseqüentemente um novo escritor — e aí, então, surge a necessidade de formar também uma nova crítica, uma maneira diversa de escrever a própria história. Isso, no entanto, não se dá ou dará de forma pacífica: não será um leitor, em sua solidão, conhecendo Villon através de Pound. Restam, enfim, as opções de perceber contextos e se renovar ou de ignorar mudanças e seguir um curso orgulhoso de conservadorismo datado e autismo intelectual.