quarta-feira, 15 de abril de 2009

Linha 18


Permito-me mais uma fuga da poesia à prosa e posto esse trecho do meu ensaio interpretativo "Alucinação e Morte de Maupassant". A rigor, a idéia do blog era concentrar-se no verso, mas isso me parece uma idéia um tanto redutora — além disso, o ensaio, embora seja relativamente antigo, está em sintonia com alguns dos outros posts, sobretudo aquele a respeito de Ortega y Gasset.

Seguindo nos apontamentos de Maupassant, porém, chega-se, no prefácio ao romance Pierre et Jean, à seguinte afirmação: "J'en conclus que les Réalistes de talent devraient s'appeler plutôt des Illusionnistes. Quel enfantillage, d'ailleurs, de croire à la réalité puisque nous portons chacun la nôtre dans notre pensée et dans nos organes. Nos yeux, nos oreilles, notre odorat, notre goût différents créent autant de vérités qu'il y a d'hommes sur la terre". Seria um equívoco considerar tais observações como revolucionárias ou contraditórias aos procedimentos ficcionais e críticos do autor. Em realidade, percebe-se que se trata de um desdobramento natural — através de termos como "yeux", "oreilles", "odorat" e "goût" vê-se que o Naturalismo, com toda a sua fixação nos instintos e sentidos humanos e animais, continua presente nas idéias de Maupassant. Há, contudo, uma individualização que o Naturalismo mais tradicional não abarca — o olhar, o olfato, a audição e o paladar são reconhecidos como variáveis, fato que torna o mundo (e, por conseqüência, as interpretações dos acontecimentos naturais e sociais) mais complexo do que supunham as teses do romance da época.

A rigor, é esta mesma prática que, na pintura francesa, provocará as revoluções protagonizadas por Monet, Degas e outros tantos — o Impressionismo, parece-me, rompe com o Realismo não necessariamente renegando a observação, mas aceitando as distorções provocadas pela variação que cada homem apresenta em seus sentidos, sobretudo a visão. No caso específico da ficção de Maupassant, tais distorções passam a ser constantes e, quando potencializadas, representadas por meio dos delírios e alucinações que permeiam os seus chamados contos fantásticos. É perceptível, portanto, a simultaneidade das revoluções que se deram, em graus diferentes, nos diversos campos artísticos da época.

Ainda no prefácio a Pierre et Jean, é esclarecedor ler que, para Maupassant, "Chacun de nous se fait donc simplement une illusion du mond, illusion poétique, sentimentale, joyeuse, mélancolique, sale ou lugubre suivant sa nature" — o que não significa, no entanto, que a ficção deva, necessariamente, ser construída a partir das idiossincrasias de cada autor. É exemplar o caso do próprio Maupassant: em seus contos, há ilusões poéticas que são sentimentais, outras que são alegres, algumas ainda melancólicas — difícil crer que isso se deva a uma natureza tão variada por parte do escritor e não a uma capacidade intelectiva e imaginativa de desenvolver personagens que não possuíam apenas as visões e tendências do próprio autor. É nesse fato, por sinal, que Maupassant revela certa impessoalidade, característica que tanto admirava na obra de Flaubert (a quem classificava como "le plus ardent apôtre de l'impersonnalité dans l'art"): dividindo-se, pretendia aniquilar a sua própria individualidade, tornando-se, portanto, impessoal. Procedimento que a nós, leitores de início do século XXI, não nos parecerá questionável ou mesmo surpreendente.

(...)

Se em contos como "Qui Sait?" e "Lui?" o fantástico decorre da alucinação que decorre da solidão dos personagens, nas obras dos autores modernos o irreal já é instaurado desde sempre. Maupassant retrabalha a realidade, fantasiando-a, através de uma técnica e de uma teoria que vêem as distorções como conseqüências de predisposições físicas e psíquicas determinadas (a solidão, a sífilis, etc.) — fator que serve, ademais, para religar o autor ao seu Naturalismo de origem. Assim, parece-me um tanto equivocada a idéia de que Maupassant tenha sido um precursor do realismo mágico: embora as fantasias existam em ambos, elas são de naturezas absolutamente distintas, auto-excludentes. Ainda por conta disso, é também um erro classificar os contos do autor francês como contos "de terror" - já que o medo, na sua obra, não é do sobrenatural, mas de si mesmo. Em "Lui?" o narrador confessa "Je n'ai pas peur d'un danger (...) Je n'ai pas peur des revenants; je ne crois pas au surnaturel. Je n'ai pas peu des mort (...) Eh bien! j'ai peur de moi! j'ai peur de la peur; peur des spasmes de mon esprit qui s'affole (...)" Parece-me, aliás, que tais procedimentos são desenvolvimentos naturais (e, de certa forma, previsíveis) da obra de Poe: o que uma época romântica classificava como fenômenos sobrenaturais, uma época cientificista percebia como fenômenos psíquicos passíveis de explicação.