sábado, 11 de abril de 2009

Linha 16



Arte pela arte. Poesia pura.

Vez ou outra o debate poético retorna a essas questões. A meu ver, a maioria dos pontos de vista a respeito permanece no senso comum da impossibilidade de praticar uma arte ascética, auto-centrada. Há, no entanto, a necessidade de ir um tanto além: a idéia da arte pela arte revela um conceito de arte questionável, para dizer o mínimo. Parte da premissa de que arte/trabalho artístico resumem-se às particularidades formais — premissa que, embora questionável, ainda tem bases nas quais se amparar e erguer. O ideal conteudista, por seu turno, já não pode se manter — afora a persistência no gosto de diletantes, não encontra respaldo crítico que se possa tomar a sério.

No que se refere a um tipo de formalismo obtuso, no caso brasileiro, é fácil discernir a motivação para a sua persistência: o escasso debate estético que existe no país. Afinal, uma coisa é o crítico afirmar que a engenharia formal de João Cabral de Melo Neto penetra e desenvolve o conteúdo dos seus versos — outra, muito mais difícil, é propor um debate acerca das relações entre forma e conteúdo. O que qualifico de "obtuso", nesse caso, é a crítica formal que se contenta com fórmulas — afinal, se algo nos falta é exatamente crítica preparada e disposta a lidar com aspectos formais. Nosso debate continua sem resistir às tentações da síntese de um assunto numa sentença, do resumo de uma obra numa orelha, do esgotamento de um poema numa resenha. Trata-se do caminho natural e tranqüilo até o lugar-comum e a repetição de verdades que se tornaram verdades por preguiça intelectual.

Seria interessante, por exemplo, induzir os ideais da poesia pura até certas contradições. Pedro Salinas, na conferência Mundo real y mundo poético, escreve que "Mundo, demonio y carne son los enemigos del alma; la poesía, cosa del alma, tiene por gran enemigo al mundo". A rigor, essa é uma definição tão purista quanto romântica — afinal, que é o romantismo senão esse voltar-se completamente às "coisas da alma" (dentre as quais a poesia ocupa o lugar central), esse desprezo pelo mundo que, afinal, é o próprio aspecto sensível da vida, o aspecto formal da arte? Hegel, evocado no post anterior, indica como mérito da arte romântica a chegada à Idéia perfeita — muito embora esteja aí também a sua danação: do seu desprezo pelo mundo, da sua crença na impossibilidade de unir forma sensível e conteúdo ideal vem a sua incapacidade de entronar-se como arte definitiva e inquestionável (o anti-romântico Baudelaire, num ensaio que confesso não ter agora em mãos para citar, já percebia tudo isso nitidamente). É um conceito de poesia pura divergente do conceito de arte pela arte que se pensa e se ensina no Brasil (onde tomamos por base, sobretudo, a poesia parnasiana), embora muitos confundam os dois. Hugo Friedrich, por seu turno, conduz sua idéia de poesia pura pela suposta desumanização do poema, algo que, a meu ver, pode ser observado da forma exatamente oposta — baseando-se na declaração e na obra de Salinas ou mesmo de Guillén, outro artista caro às suas teorias.

No caso da pintura, a respeito da evolução do Impressionismo, Ortega y Gasset anota: "Em vez de pintar os objetos como se vêem, pinta-se o próprio ver. Em vez de um objeto, uma impressão, pode-se dizer, um montão de sensações. A arte, com isto, retirou-se completamente do mundo e começa a atender à atividade do sujeito". Trata-se, afinal, de um mesmo percurso — percurso que se costuma apontar como uma contundente resposta ao romantismo quando, em realidade, mais se assemelha a uma continuação.

O poeta Ricardo Domeneck, um dos editores da ótima revista Modo de Usar & Co., costuma insistir numa idéia resumida na grafia est-É-tica. Baseado na sentença de Wittgenstein, segundo a qual "Ética e estética são uma só", Domeneck propõe um debate crítico e filosófico que se situa além de questões meramente formais ou conteudistas. E que não se intua, por outro lado, nenhum desprezo pelo debate formal nessas posições — mas exatamente o oposto.

O que me agrada, nos seus textos e suas declarações, é a insistência em temas que a poesia e a crítica brasileira tradicionalmente ignoram. A visão de Wittgenstein, em que pese a sua simplicidade, não é de fácil assimilação: pode pender tanto para a politização explícita quanto para a alienação igualmente declarada. São as conseqüências de uma adoção desse preceito quando feita a partir de visões conformadas com a preguiça intelectual que apontei. Pois que assim se decidirá que ética confunde-se com política e que a escrita de Domeneck, presa, como em suas "Seis Canções Óbvias", ao inferno pessoal que é uma cama, revela sua alienação também através de uma linguagem hermética e fragmentada. Seria optar pelo óbvio.

Um óbvio que não pensa na frase de Wittgenstein com justeza: "Ética e estética são uma só" não é o mesmo que "Ética e estética são como uma só" ou algo que o valha. Essa posição pressupõe uma identificação absoluta entre os dois pólos — e não uma relação estreita que permita uma fácil decodificação ou separação. Algo como Orides Fontela a escrever que "Não há piedade nos signos". Observando a arte e a poesia dessa forma (e não como um monstro montado mecanicamente a partir de duas instâncias distintas), tanto a arte pela arte quanto a poesia pura não se configurariam como absurdos ou despropósitos: seriam o definitivo.

Não se trata de atacar ou atracar-se para a defesa de visões que irão permitir à poesia brasileira encontrar a definição inquestionável da arte e desenvolver-se em meio à calmaria — já que da calmaria pouco se desenvolve. A necessidade é de debate intelectual verdadeiro — mais do que polêmicas entre escolas e grupos.